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Sobre a militância (17): Embrutecimento e esperança

Valerio Arcary

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

O ódio contra a baixeza, também endurece os rostos! A cólera contra a injustiça faz a voz ficar rouca! Infelizmente, nós, que queríamos preparar o caminho para a amizade, não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos. Mas vocês, quando chegar o tempo em que o homem seja amigo do homem, pensem em nós com um pouco de compreensão.

Bertolt Brecht, Aos que virão depois de nós

Precisamos conversar sobre o perigo de nosso embrutecimento, porque estamos cercados de brutalidade. Surgiu no Brasil uma corrente neofascista com influência de massas sobre dezenas de milhões de pessoas que defende ideias absurdas, cruéis, grotescas. Provavelmente, todos conhecemos alguém assim, quiçá, em nossos círculos mais próximos. A luta política ficou muito mais dura. Ficou implacável. O que leva a que muitos se perguntem se a militância vale a pena. Afinal, ser militante é se expor de, alguma maneira, publicamente. Quem se expõe corre mais riscos.

Embrutecimento é uma forma de apatia, insensibilidade, indiferença, agressividade, alienação ou, quando realmente muito grave, boçalidade. Sei que em algum momento já nos perguntamos se a militância não favorece, também, o embrutecimento. Sim, há militantes que, infelizmente, embrutecem. Nenhum de nós está imune, portanto, é um problema real.

Mas renunciar à militância em tempos sombrios tem, também, severas consequências. A ansiedade que deságua na desmoralização ou desespero é um perigo imenso. A expectativa de uma vida plena não é possível quando nos rendemos às pressões reacionárias que nos cercam.

O argumento destas linhas é que o embrutecimento pode ser evitado. A condição humana tem uma dimensão trágica: estamos cercados pelo medo, desgosto, injustiça, violência, loucura, doença e morte. Mas a vida é também, o trabalho, a luta, o amor e a amizade. E podemos nos maravilhar com o encanto da natureza, a mágica do amor, a beleza da arte, a inteligência da ciência, a força da paixão política, e tudo aquilo que oferece sentido à vida e que as palavras não alcançam. A incerteza da luta socialista não diminui sua grandeza.

Na verdade, a militância é, em primeiro lugar, um ato de doação, desapego, e altruísmo que é o contrário do egoísmo e individualismo. É inspirador que a esquerda procure emulação na frase poética de Che Guevara no clássico: “Há que endurecer, mas sem jamais perder a ternura”.

As duas ideias parecem contraditórias, ou até incompatíveis, mas não são. A luta nos transforma. Toda luta envolve o risco da derrota, da perda, da desmoralização. Endurecer é ganhar resiliência e solidez e, por isso, é árduo, difícil. Mas não precisamos ficar amargos, ásperos ou azedos virar impiedosos, ressentidos ou desumanos. Podemos ficar mais fortes, sem perder o afeto.

Mudar é deixar de ser. Deixar de ser não é indolor. E sim, a dor nos endurece. Porque temos medo das perdas. Não há como manter um engajamento sério sem perder ilusões ingênuas. Endurecer é amadurecer. Não há mudança pessoal sem crise. Mas é possível crescer, sem embrutecer. Alguns se aproximam da causa socialista, porque se posicionam em oposição ao mundo existente, mas não aderem a uma perspectiva coletivista.

O coletivismo é uma dos pilares graníticos da causa socialista. Integramos um movimento ou organização de esquerda com a disposição de construir relações de cooperação e solidariedade, portanto, aceitando a nossa transformação pela interação com os outros. Alguns se unem à esquerda a partir de uma radicalização até extremista contra a ordem do mundo, mas desconfiam da pressão coletivista que é inerente a um programa igualitarista. Pode prevalecer uma atitude individualista semi-anarquista imatura, “silvestre”.

Militância é entrega e aposta, compromisso e voluntarismo, mas não é indolor. Ninguém se transforma sozinho. Isso é uma ilusão de omnipotência. Não há transformação doce, suave, meiga, indolor. Só mudamos quando entramos em crise, e ficamos insatisfeitos, em primeiro lugar, conosco mesmos. O gatilho da mudança é a interação com os outros, e a disposição interna, subjetiva, de querer ser melhor. Crises são perda e oportunidade. Querer que os outros nos aceitem tal como somos é um anseio justo,  porque a liberdade individual é um valor intrínseco de respeito mútuo da dignidade dos outros, mas é, também, ingênua.

Militância é luta e transformação permanente. Quando nos transformamos, nos separamos de quem éramos. Mas gostamos de pensar que somos sempre nós mesmos. Não somos. Não é possível uma militância consistente sem mudar. A idealização de que somos quem somos é uma idealização narcisista. Isso é verdade enquanto as mudanças são quantitativas, mas a partir de determinado ponto são qualitativas. Uma romantização do passado é sempre atraente, mas ingênuo. Estamos sempre diante de uma mudança que nos faz avançar ou recuar.

São quatro os fatores chaves que condicionam uma militância consistente na longa duração. A opção de classe, a força moral, a clareza político-ideológica, e a participação na luta popular. A opção de classe é natural para aqueles que nasceram e cresceram em um ambiente proletário-popular. A força moral depende, fundamentalmente, da integridade de caráter. A clareza político-ideológica se aprende pela educação. A auto-organização em um movimento é uma decisão política.

A origem de classe não é um destino, é uma condição que favorece, mas não é suficiente, porque é inevitável querer melhorar de vida. A força moral se adquire com a indignação que aflora diante da injustiça que nos cerca, mas não é suficiente, porque mesmo pessoas bacanas se cansam. A formação teórica se aprende, mas as ideias poderosas não são mais fortes que a pressão dos interesses. O que é decisivo é a imersão na luta de classes, porque compartilhamos com os outros os medos, riscos e sacrifícios, mas também, as alegrias, ousadias e entusiasmos.

A expectativa socialista repousa na esperança.

Ela é o sopro da vida que nos faz respirar.

Leia também a série de textos sobre a militância socialista escrita por Valério Arcary:

Sobre a militância 1

Sobre a militância 2

Sobre a militância 3 –

Sobre a militância 4 – A esquerda e a diferença política

Sobre a militância 5 – Não somos maniqueístas

Sobre a militância 6 –

Sobre a militância 7 – Militância não é religião

Sobre a militância 8 – O olhar da militância socialista para a religiosidade

Sobre a militância 9 – A esquerda precisa de finanças

Sobre a militância 10 – Militantes de esquerda não precisam ser amigas, mas precisam ser camaradas

Sobre a militância 11 – Militância não precisa ser sacrifício; deve ser realização plena, mas não é indolor

Sobre a militância 12 – A renovação de líderes na esquerda

Sobre a militância 13 – A segurança da esquerda está em perigo

Sobre a militância 14 – o fracionalismo é uma doença política perigosa

Sobre a militância 15 – A esquerda e o escracho pessoal

Sobre a militância 16 – A militância e a saúde mental

Sobre a militância 17 – Embrutecimento e esperança 

Sobre a militância 18 – Contra o anti-intelectualismo