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Sobre a militância (18): Contra o anti-intelectualismo

Valerio Arcary

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Precisamos refletir sobre um assunto delicado, mas inescapável, o anti-intelectualismo entre os trabalhadores e na própria esquerda. Ganhou repercussão uma pesquisa que revelou que 11 milhões, ou 7% dos brasileiros, acreditam que a terra é plana [1]. Ainda é muito grande a desconfiança com vacinas, e o negacionismo do aquecimento global. Algo em torno de 35% da população diz desconfiar da ciência [2]. As desigualdades educacionais e culturais no Brasil são tão abismais quanto as econômico-sociais. A escolaridade média está em torno de oito anos, e um terço da população com 15 anos ou mais é semiletrada [3].

É inescapável por muitas razões. A primeira é que uma esquerda que não esteja implantada entre os trabalhadores não tem futuro. Mas o mais importante é que uma militância séria não se sustenta muito tempo, se não nos educamos. As organizações de esquerda precisam ser centros de formação. É, porém, delicado porque, embora a imensa maioria dos ativistas seja consciente da debilidade de sua formação, admitir a nossa ignorância é sempre constrangedor.

Todas as grandes organizações socialistas da história foram um encontro de trabalhadores, jovens e intelectuais. Militantes de origem operária devem se transformar em intelectuais populares. E intelectuais precisam se transformar em ativistas militantes. Todos podem se alimentar do entusiasmo, ousadia e coragem dos jovens. Ninguém é inferior a ninguém.

O que é o anti-intelectualismo? O anti-intelectualismo é uma mentalidade e uma atitude. Manifesta-se, em graus maiores ou menores, em duas reações opostas, porém, complementares. Por um lado, fascínio, espanto e até deslumbramento e, por outro, suspeita, rancor, pé-atrás ou até aversão à ciência e cultura. Concretiza-se, sobretudo, porque as pessoas, não as ideias, despertam sentimentos poderosos. Desconfiança ou até hostilidade em relação aos intelectuais profissionais que são percebidos como arrogantes, pretensiosos, pedantes. Acontece que isso não é incomum. Intelectuais de esquerda estão refugiados nas universidades. O ambiente favorece um idioma próprio, obscuro, ininteligível, hermético, “talmúdico”.

Há muitas formas de conhecimento, e o preconceito é um péssimo critério. Todas as formas de conhecimento são úteis entre socialistas. A mente humana está sempre ativa, e um fluxo de consciência contínuo, ininterrupto e indivisível associa ideias a emoções. Essa é a linguagem da inteligência em todos nós, independente de uma instrução maior ou menor. Ativistas com pouca educação formal podem ter uma brilhante capacidade de concentração e reflexão, habilidades decisivas para a solução de problemas. O conhecimento começa, também, como uma intuição, ou associação de uma herança cultural com a experiência concreta. A ciência se distingue, essencialmente, pelo seu rigor de método. Esse procedimento é muito útil.

O anti-intelectualismo é uma dos fatores das desmoralizações, renúncias, quebras na militância. O cansaço diante de uma luta de longa duração, com suas inevitáveis inflexões desfavoráveis, é inevitável. Descansar é uma necessidade humana, e não diminui ninguém. Desistir não é uma solução contra o cansaço. É uma rendição diante das derrotas. Acontece que as derrotas, mesmo as mais severas, são sempre transitórias. A perseverança e a resiliência se aprendem. Podemos nos apoiar no impulso das lutas quando a situação é de ascenso. Mas precisamos da força das ideias quando estamos em um refluxo. Os intelectuais não são superiores, porém, são indispensáveis.

A questão não é secundária porque na luta pelo socialismo há lugar para todos. Precisamos de mais intelectuais simpáticos à luta contra o capitalismo. Intelectuais são um grupo social. As classes não são homogêneas. Têm estratificações variadas. A mais homogênea das classes do mundo contemporâneo é a trabalhadora, mas ainda assim tem importantes estratificações internas. O marxismo reconheceu a existência de grupos sociais que, pela sua especificidade, desenvolvem interesses próprios e, também, uma atitude mais ou menos comum diante do mundo, como os religiosos, os policiais, os lumpens e os intelectuais.

A maioria da intelectualidade desconfia, também, das camadas operárias e populares. As dúvidas e inseguranças são, portanto, mútuas e recíprocas. Mas é, também, verdade que há várias décadas, pelo menos nas últimas quatro gerações, uma parcela da intelectualidade, ainda que minoritária, se uniu à causa do socialismo. Centenas de escritores, cientistas, atores, advogados e arquitetos, médicos e artistas se aproximaram das lutas operárias e populares. Como explicar, então, a influência do anti-intelectualismo na militância? Por quê?

Há um abismo entre uma minúscula minoria que tem acesso à alta cultura, e um terço da sociedade que é iletrada. Os trabalhadores se sentem embaraçados com sua pobreza material, porém, ainda mais constrangidos com sua pouca instrução. Os intelectuais parecem ser pessoas diferentes. A semelhança é confortável e facilita confiança, empatia, identidade. A diferença é incômoda e alimenta estranheza, cautela e sobreaviso.

No entanto, o mundo mudou, felizmente, desde meados do século XX. A maioria dos trabalhadores manuais elevou em muito a sua escolaridade. Assalariados jovens podem ter feito até estudos pós-secundários. E a maioria dos intelectuais do século XXI não tiveram origem social burguesa como no passado. São filhos das classes médias, são assalariados, e vieram sofrendo muito com a terrível queda do seu salário médio. Podemos ser otimistas sobre essa colaboração. Que não poderá ser uma relação sem conflitos. Mas dela depende, também, o futuro.

 

NOTAS

[1] A crença de que a Terra é plana se revelou inversamente proporcional à escolaridade. Enquanto 10% das pessoas que deixaram a escola após o ensino fundamental defendem o chamado terraplanismo, essa parcela diminui entre os que estudaram até concluir o ensino médio (6%) ou superior (3%). https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2019/07/7-dos-brasileiros-afirmam-que-terra-e-plana-mostra-pesquisa.shtml Consulta em 22/04/2020

[2] https://oglobo.globo.com/sociedade/um-terco-dos-brasileiros-desconfia-da-ciencia-23754327 Consulta em 22/04/2020

[3] Três em cada dez jovens e adultos de 15 a 64 anos no país (29% do total, o equivalente a cerca de 38 milhões de pessoas) são considerados analfabetos funcionais. Esse grupo tem muita dificuldade de entender e se expressar por meio de letras e números em situações cotidianas, como identificar as principais informações em um cartaz de vacinação ou fazer contas de uma pequena compra. https://veja.abril.com.br/educacao/tres-em-cada-dez-sao-analfabetos-funcionais-no-pais-mostra-estudo/ Consulta em 22/04/2020

 

Leia também a série de textos sobre a militância socialista escrita por Valério Arcary:

Sobre a militância 1

Sobre a militância 2

Sobre a militância 3 –

Sobre a militância 4 – A esquerda e a diferença política

Sobre a militância 5 – Não somos maniqueístas

Sobre a militância 6 –

Sobre a militância 7 – Militância não é religião

Sobre a militância 8 – O olhar da militância socialista para a religiosidade

Sobre a militância 9 – A esquerda precisa de finanças

Sobre a militância 10 – Militantes de esquerda não precisam ser amigas, mas precisam ser camaradas

Sobre a militância 11 – Militância não precisa ser sacrifício; deve ser realização plena, mas não é indolor

Sobre a militância 12 – A renovação de líderes na esquerda

Sobre a militância 13 – A segurança da esquerda está em perigo

Sobre a militância 14 – o fracionalismo é uma doença política perigosa

Sobre a militância 15 – A esquerda e o escracho pessoal

Sobre a militância 16 – A militância e a saúde mental

Sobre a militância 17 – Embrutecimento e esperança