Precisamos conversar sobre a nossa saúde mental nestes dias de pandemia e confinamento. Ninguém é de ferro. A subjetividade de cada um de nós, ou a compreensão de nosso lugar no mundo e dos nossos sentimentos, tem enorme importância. Seria ingênuo imaginar que aqueles engajados na militância estariam imunes diante de todas as pressões que nos cercam. O tema tem importância por si só. Mas nas circunstâncias atuais passou a ser prioritário.
O isolamento no casulo doméstico, e as condições extremas impostas por uma nova disciplina social aumentam a sensibilidade, a irritabilidade e a vulnerabilidade. O perigo real de que uma tragédia anunciada, senão um holocausto com um número medonho de vítimas está no horizonte próximo é inquietante. Vai agravar nossa percepção de desamparo, solidão, e fragilidade. A depressão pode atingir qualquer um.
Nosso equilíbrio psíquico e disposição emocional dependerão de como nos adaptamos às novas circunstâncias. Devemos ser conscientes das mudanças inevitáveis na dimensão afetiva da vida. Ninguém está livre de algum grau de sofrimento mental. Vai doer, infelizmente. Sentiremos ansiedade, angústia, e até desespero. E temos que aprender a nos proteger para que nossas neuroses não se agravem como transtornos.
A pandemia e as restrições do distanciamento social incidem em nossos humores. A resiliência de todos e cada um de nós vai ser posta à prova. Este tema não pode ser tabu. Podemos e devemos nos cuidar. Entramos em um período que nossas relações sociais só são possíveis pelo mundo virtual.
Muitas demandas afetivas serão frustradas. A frustração tem consequências. Uma reação possível é o hiperativismo na internet, o estado de reunião permanente. Não é razoável passar ininterruptas horas em frente de uma tela de computador ou celular com leituras e interações monotemáticas. É necessário estabelecer limites.
É indispensável construir uma rotina saudável. Além do trabalho doméstico e da atenção com aqueles que dependem de nós, é preciso reservar tempo, também, para nós mesmos: tempo para falar com pessoas do núcleo íntimo dos nossos afetos, de fazer exercícios físicos, de tomar um pouco de sol na janela ou na varanda, de descontração na leitura de um livro, ou de ver um filme ou série. Como temos muitos inimigos, e a luta cansa, estamos exaustos Descansar é preciso. O descanso faz bem. A militância socialista é para maratonistas.
Há o perigo da desistência. O impacto dos acontecimentos fará muitos ativistas que tinham se organizado desde 2013 se interrogarem sobre as escolhas que fizeram ao assumirem a militância. Alguns passaram a ser ativos nos sindicatos, no movimento estudantil ou popular, de mulheres, negros, LGBT’s. Não serão poucos os que se perguntarão nas próximas semanas se não deveriam ir cuidar de suas vidas. O contexto da situação reacionária já era muito ruim antes do coronavírus e deixou muito desgaste. As derrotas sociais e políticas pesam sobre os destinos de todos.
O desgosto, amargura e aflição da militância de esquerda engajada na luta de classes foi muito grande nos últimos cinco anos. Aumentou o desânimo, a desesperança, e o desalento. Não fosse o bastante, nossas vidas materiais vão piorar. Portanto, o contexto em que estamos não ajuda. Há vários anos, desde 2015, por variadas razões, viemos acumulando derrotas. Mas uma militância séria exige consistência. Não podemos sustentar um compromisso apoiado somente na expectativa de vitórias iminentes.
Não devemos nos enganar a nós mesmos. Admitir que a situação é reacionária não deveria abater nossa força moral. As conjunturas mudam. O pessimismo é mal conselheiro. Análises não devem ser nem pessimistas nem otimistas, mas realistas. O objetivo de uma análise é compreender a realidade. Análises não podem ser instrumentais para manter o ânimo da militância. Militância é máximo voluntarismo apoiado em um projeto. A força da vontade é muito poderosa. Ela repousa em uma aposta. Sim, há incerteza. Só a luta muda a vida.
Só os indiferentes não irão sofrer. Um grau de indiferença que revela incapacidade de compaixão é um sintoma de distúrbio psíquico. Quando se consolida como uma mentalidade política esta doença é uma monstruosidade. Infelizmente vivemos em uma sociedade que não é somente injusta, mas doente.
Mas não é verdade que os reacionários são loucos. A doença mental não escolhe ideologia. Reacionários são aqueles que defendem a preservação da ordem atual, por interesse e ou por ideologia. Acreditam que o maior problema do Brasil é a desonestidade, a delinquência e a corrupção, não a desigualdade e a injustiça. Têm uma percepção de que a sociedade está dividida entre as pessoas do “bem”, e os outros. Defendem que o capitalismo funciona e as regras são corretas, mas as pessoas decepcionam. Defendem que há muitos direitos e poucos deveres. Devemos dizer o contrário. Há muitos deveres e poucos direitos. As regras são injustas. Há que mudar as regras, e defender as pessoas.
Isso hoje significa defender a quarentena total. E aguentar firme. Vai passar. A questão decisiva é o que virá depois. Porque a luta continua. E vamos precisar de toda a militância para o que virá. Cuidemo-nos.
Leia também a série de textos sobre a militância socialista escrita por Valério Arcary:
Sobre a militância 4 – A esquerda e a diferença política
Sobre a militância 5 – Não somos maniqueístas
Sobre a militância 7 – Militância não é religião
Sobre a militância 8 – O olhar da militância socialista para a religiosidade
Sobre a militância 9 – A esquerda precisa de finanças
Sobre a militância 10 – Militantes de esquerda não precisam ser amigas, mas precisam ser camaradas
Sobre a militância 12 – A renovação de líderes na esquerda
Sobre a militância 13 – A segurança da esquerda está em perigo
Sobre a militância 14 – o fracionalismo é uma doença política perigosa
Sobre a militância 15 – A esquerda e o escracho pessoal
Sobre a militância 16 – A militância e a saúde mental
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