Precisamos conversar na esquerda sobre os conflitos pessoais entre militantes, e a importância da paciência entre nós. Mais do que nunca, diante de um governo como o de Bolsonaro, a militância em um coletivo precisa ser um trabalho em equipe. Trabalho em equipe em uma situação defensiva exige mais reuniões. A discussão coletiva consome mais tempo. Aprender a fazer boas reuniões é uma arte. Uma reunião mal preparada, uma intervenção intempestiva, uma ironia inoportuna, podem ser o bastante para que a aspereza alimente antagonismos, depois, irrefreáveis.
Uma organização saudável deve estimular seus membros a se cuidarem física, e emocionalmente. Basta que um militante esteja, mentalmente, adoecido para que uma equipe inteira se desestabilize, ou até destrua. Ainda há muita incompreensão, desconhecimento e preconceito sobre as diferentes condições de sofrimento psíquico. Nenhum de nós está resguardado, protegido, blindado diante das aflições da vida. Trabalho em equipe só é possível com respeito mútuo, tranquilidade, e alguma alteridade: a capacidade de se colocar no lugar do outro.
Sim, as pessoas se desentendem, nem sempre por razões políticas, ou seja, pela defesa de ideias. A discórdia pode ficar amarga, muito facilmente, quando aumenta a ansiedade. A angústia aumenta na esquerda porque viemos de derrotas. Diante de derrotas é inescapável a busca de culpados, ainda que em diferentes graus de responsabilidade. Preservar a capacidade de trabalhar juntos tem importância estratégica.
Somos diferentes, até muito diferentes uns dos outros. Quando entramos em uma organização nos transformamos. Sem a disposição de autotransformação para melhor não há militância. A militância é um aprendizado. Ninguém nasce socialista. Isso exige uma revisão de valores, critérios, e juízos que pode ser conflitada e, não poucas vezes, contraintuitiva. Contraintuitivo é algo que contraria o que pensávamos que era certo.
Trabalho em equipe é colaboração. Nos organizamos para conquistar maior eficácia em uma luta titânica contra inimigos muito poderosos. Os trabalhadores só podem vencer se conseguirem se organizar: nos sindicatos, nos movimentos, nas correntes, nos partidos. Toda organização popular é, em primeiro lugar, uma ferramenta de luta. Mas é, também, um grupo social.
Quando uma organização política supera a condição de um núcleo fundacional e ganha alguma audiência, perde em homogeneidade. Quando se supera a escala das dezenas, e se passa para a escala das centenas ou milhares de militantes ativos, os estranhamentos, as desavenças entre os membros se acentuam. Os ganhos e proveitos políticos do crescimento são evidentes. Coletivos mais implantados e heterogêneos são mais fortes e, potencialmente, mais úteis, porque tendem a errar menos. Mas se perde, também.
Perde-se o nível elevadíssimo de confiança pessoal que só é possível entre aqueles que se conhecem há muito tempo. Nada substitui a confiança. A confiança pessoal repousa na intimidade. Mas uma organização de lutadores é um grupo social diferente de outros, porque o que deve unir os seus membros é o acordo com o programa. A confiar em um projeto, em ideias, é algo muito mais abstrato, porém, mais sólido, do que confiar em uma pessoa. As pessoas mudam, e nem sempre para melhor. Seguir um programa exige, portanto, mais maturidade.
A maioria da militância adere ao projeto socialista muito jovem, quando ainda estamos em processo de formação. É plausível que se expressem fortes pressões narcísicas. O excesso de amor por si próprio, ou por sua própria imagem, limita uma boa relação com os outros, e impulsiona mal entendidos, confusões, brigas, e rivalidades. Há um lugar para todos e cada um na luta socialista. Basta somente termos a paciência de conseguir uma boa divisão de papéis e tarefas.
Não há nada de errado em criticar o que alguém fez. Mas é preciso aprender a criticar sem ofender. Ninguém é do tamanho dos seus erros. Somos todos maiores e mais complexos do que nossos deslizes, falhas, enganos ou bobagens. A imaturidade pessoal pode ser um grave fator de agigantamento de conflitos, eventualmente, desnecessários, porém, ao final, insolúveis. Porque as intrigas são destrutivas.
Somos todos, em maior ou menor grau, pelo menos, um pouquinho individualistas. Ninguém está imune às pressões do tempo e espaço em que vive. Humildade é reconhecer os nossos limites e erros. A imaturidade recorre, às vezes, à falsa humildade, que é uma dissimulação. Humildade não é a recusa ao exercício de responsabilidade, ou de autoridade, isso é um tipo de vaidade. Autopiedade tampouco é humildade. A luta socialista é um projeto ambicioso, e uma das tarefas centrais de uma organização séria é a formação de lideranças.
Líderes são movidos por muitos impulsos, entre eles, ambições. Não há nada errado em si em ter ambições. Ter ambições políticas, ou ser determinado, comprometido, não é incompatível com ter desapego pessoal. Tudo na vida é uma luta. Quando dentro de um coletivo as ambições pessoais podem ser equilibradas, contrarrestadas, freiadas pelo autocontrole, o respeito, a lucidez, e ela cumpre um papel dinâmico. O que é desagregador é o excesso de orgulho, arrogância ou prepotência.
Falar mal dos outros traz alívio e é algo, socialmente, aceito. Mas deve prevalecer o respeito. Parece haver algum consenso científico de que os desabafos, até as fofocas são, em algum grau, uma forma de manter os conflitos pessoais dentro de limites toleráveis. Seriam um tipo de solução para preservar a convivência em um grupo social, relativamente, fechado, em um nível aceitável. Em resumo, parece que os mexericos seriam funcionais.. Mas tudo tem seus limites.
Um ambiente de intrigas permanente resulta em desmoralização pessoal, e até em fragmentação política. Desmoralizações provocadas por derrotas politicas e sociais são, em grande medida, inevitáveis. Em uma luta de longa duração há um processo de desgaste pessoal. Nossas vidas passam por incontáveis desafios, e ninguém tem energias ilimitadas. Nossa capacidade de entrega e doação oscila, aumenta e diminui, avança e recua. Mas a desmoralização provocada por disputas pessoais é deplorável, e muito triste.
Reuniões são a forma de funcionamento de trabalho em equipe. Sim, a luta pela revolução impõe a necessidade de reuniões em que debatemos ideias e dividimos tarefas. Por isso, são insubstituíveis.
Os dez critérios mais simples de bom funcionamento de organismos são: (1) só funcionam os organismos que têm um responsável pela preparação da reunião; (2) toda reunião bem-sucedida deve ser um processo de aprendizagem e formação coletivo; (3) só são produtivas as reuniões que têm uma pauta adequada; (4) só são boas as reuniões em que a participação é possível, portanto, o tamanho dos organismos não é aleatório; (5) trabalho em equipe exige disciplina, e isso se aprende; (6) não é razoável participar em reuniões estando doente, com fome ou com sono; (7) reuniões não devem ser nem um bate papo ligeiro, nem um seminário infindável, e não podem terminar sem divisão de tarefas; (8) não se deve repetir o que já foi dito; (9) não é preciso falar sobre todos os assuntos; (10) só é possível o trabalho em equipe respeitando as regras de boa conduta.
Não precisamos ser todos amigos pessoais uns dos outros.
Mas devemos ser camaradas.
Leia também a série de textos sobre a militância socialista escrita por Valério Arcary:
Sobre a militância 4 – A esquerda e a diferença política
Sobre a militância 5 – Não somos maniqueístas
Sobre a militância 7 – Militância não é religião
Sobre a militância 8 – O olhar da militância socialista para a religiosidade
Sobre a militância 9 – A esquerda precisa de finanças
Sobre a militância 10 – Militantes de esquerda não precisam ser amigas, mas precisam ser camaradas
Sobre a militância 12 – A renovação de líderes na esquerda
Sobre a militância 13 – A segurança da esquerda está em perigo
Sobre a militância 14 – o fracionalismo é uma doença política perigosa
Sobre a militância 15 – A esquerda e o escracho pessoal
Sobre a militância 16 – A militância e a saúde mental
Sobre a militância 17 – Embrutecimento e esperança
Sobre a militância 18 – Contra o anti-intelectualismo
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