A eleição de Bolsonaro trouxe de novo para o primeiro plano, de forma mais ou menos séria, a discussão do lugar da insanidade na política. Bolsonaro é, politicamente, um neofascista. Não sabemos qual é o quadro de sua saúde mental. Mas as ideias que defende são tão obtusas, absurdas, disparatadas, irracionais, e seu comportamento tão provocativo que há dúvidas, suspeitas que não são infundadas, sobre o seu equilíbrio mental.
Incontáveis vezes, ao longo da história, psicopatas conquistaram a posição de líderes políticos e chegaram ao poder. A psicopatia é um transtorno de personalidade patológico caracterizado por comportamentos antissociais. Comportamento antissocial é o conceito científico para o mau caráter. Psicopatas não têm temor algum de manipular pessoas. Não sentem culpa. Não têm respeito, cautela, ou escrúpulos. Mas podem ser muito astutos, audaciosos, destemidos, decididos, inteligentes. Podem ser inspiradores. Podem ser brilhantes.
Hitler era, inequivocamente, um psicopata, maníaco, doido. Mas não foi somente nas fileiras do fascismo que psicopatas chegaram à liderança. Stalin era um psicopata paranoico. A OMS (Organização Mundial da Saúde) avalia que a psicopatia atinge, pelo menos, 1% da população mundial. Isso é muita gente. Só no Brasil são mais de um milhão de adultos.
O tema da loucura ainda é um tabu entre nós. Ainda é um constrangimento no tempo em que vivemos. Temos reservas ou restrições em discutir, de maneira adulta, madura e aberta sobre a saúde mental. Ficamos acanhados.
Tudo é uma questão de grau. Ridicularizamos, caçoamos, e até achincalhamos comportamentos que nos parecem absurdos, mas, sobretudo, na brincadeira. Os níveis de tolerância na esquerda com atitudes incoerentes, meio bobas e tolas são muito grandes, o que é compreensível. Ainda bem que é assim. Afinal, estamos imersos nas lutas populares, onde a experiência do sofrimento é enorme, e há muitas pessoas machucadas entre nós. Somos e devemos ser pacientes.
Embora não discutamos com tanta frequência como deveríamos a dimensão subjetiva da vida, temos consciência das dores que nos cercam
Embora não discutamos com tanta frequência como deveríamos a dimensão subjetiva da vida, temos consciência das dores que nos cercam. Todos conhecemos pessoas com graus variados de desconexão com a realidade. Ou seja, com momentos de delírio, frenesi, desatino, ou até mesmo, em situações extremas, alucinação. Ponderamos, corretamente, esses momentos de insensatez como transitórios.
Entretanto, desenvolvemos na esquerda o hábito de chamar aqueles que defendem ideias diferentes das nossas de malucos. Os loucos são sempre os outros. Não saberia dizer quando começou esta onda. Lembro ainda de um tempo em que não era assim.
No entanto, não é um bom critério diminuir aqueles com quem não concordamos como um atalho para desqualificar suas ideias. Virou uma mania inferiorizar o mensageiro para envenenar a mensagem. É assim, porque é mais difícil debater com argumentos, seriamente, examinando as diferentes propostas.
Isso não quer dizer que não haja militantes em sofrimento psíquico na esquerda. Claro que há, infelizmente, e são muitos. Muita gente que está em torno de cada um de nós, sobretudo, em um quadro de depressão, embora as situações sejam as mais variadas [1]. Também é verdade que, por distintas razões, há muita gente que não se cuida e procura apoio especializado, ainda que haja tratamentos, comprovadamente, eficazes. Uma grande parte abusa no consumo de medicamentos, drogas variadas e, sobretudo, uso nocivo do álcool. O adoecimento individual é indivisível do contexto social. Não faz sentido, portanto, que não haja lugar na militância para camaradas com distúrbios de humor. Não exigimos atestado médico de ninguém. Devemos ser uma fraternidade de lutadores. Quando alguém entre nós adoece, e não importa qual seja a enfermidade, pressionamos para que se cuide, e respeitamos o tempo de recuperação.
Quando alguém entre nós adoece, e não importa qual seja a enfermidade, pressionamos para que se cuide, e respeitamos o tempo de recuperação.
O sofrimento mental não autoriza concluir que as ideias políticas de um militante estejam erradas. As pessoas não se dividem na forma simples de dois grupos: sãos e enfermos. A ciência descobriu que somos todos neuróticos, em algum grau. É, portanto, muito mais complicado. Os distúrbios emocionais têm muitos e variados níveis de intensidade.
Evidentemente, a esquerda não pode ser um consultório psicológico. Organizações são ferramentas de luta. São instrumentos coletivos dedicados à formulação e defesa de um programa, uma estratégia, um projeto. Por isso, não devem clinicar os seus membros. Tampouco devem emitir opiniões sobre a saúde mental maior ou menor dos ativistas de outras correntes. Podemos ser melhor do que isso. Devemos ser mais solidários uns com os outros.
Mas devemos ser, também, muito criteriosos no processo de seleção das lideranças. Precisamos estar atentos e vigilantes. Porque nas nossas fileiras aparecem, também, pessoas de mau caráter. Toda organização tem o direito de se proteger de psicopatas. Pessoas perigosas não podem ter responsabilidade.
NOTAS
[1] O número de pessoas que vivem com depressão aumentou 18% entre 2005 e 2015. É o que aponta um novo relatório global lançado nesta quinta-feira (23) pela Organização Mundial da Saúde (OMS). De acordo com a publicação “Depression and other common mental disorders: global health estimates”, há 322 milhões de pessoas vivendo com esse transtorno mental no mundo. O novo relatório global mostra ainda que a depressão atinge 5,8% da população brasileira (11.548.577). Já distúrbios relacionados à ansiedade afetam 9,3% (18.657.943) das pessoas que vivem no Brasil.
Consulta em 16/08/2019
…
Leia também a série de textos sobre a militância socialista escrita por Valério Arcary:
Sobre a militância 4 – A esquerda e a diferença política
Sobre a militância 5 – Não somos maniqueístas
Sobre a militância 7 – Militância não é religião
Sobre a militância 8 – O olhar da militância socialista para a religiosidade
Sobre a militância 9 – A esquerda precisa de finanças
Sobre a militância 10 – Militantes de esquerda não precisam ser amigas, mas precisam ser camaradas
Sobre a militância 12 – A renovação de líderes na esquerda
Sobre a militância 13 – A segurança da esquerda está em perigo
Sobre a militância 14 – o fracionalismo é uma doença política perigosa
Sobre a militância 15 – A esquerda e o escracho pessoal
Sobre a militância 16 – A militância e a saúde mental
Comentários