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Bolsonaro continua de pé após 600 mil mortes. Por que?

Scarlett Rocha | EOL

Direita Volver

Coluna mensal que acompanha os passos da Nova Direita e a disputa de narrativas na Internet. Por Ademar Lourenço.

Em março e abril deste ano, morreram mais de 130 mil pessoas de Covid-19 no Brasil. O país perdeu aproximadamente um a cada 1.500 habitantes em dois meses. É como se uma pessoa morresse em cada vizinhança em 60 dias. Mas a população saiu para trabalhar normalmente neste período. Existia uma saída coletiva. Se os trabalhadores se mobilizassem, poderiam arrancar do governo um plano para garantir renda e emprego por 28 dias, viabilizando um lockdown nacional. Mas os trabalhadores estavam convencidos de que sair de casa, arriscar a vida e lutar pela sobrevivência apenas de forma individual era a melhor escolha.

A realidade é feia, chata e pelega. Mas ela tem uma qualidade: é a única realidade que temos. E temos que encará-la de frente. Bolsonaro venceu a disputa de narrativas em relação à pandemia. Se ele tivesse perdido, seria impensável um assassino em massa ainda se manter na presidência com uma popularidade de cerca de 20% e com a rejeição de apenas metade da população. O relatório da CPI da Covid-19 foi um prêmio de consolação. Refresca um pouco a memória da população sobre o que aconteceu. Um dia o genocida pode ser punido, mas não vai ser em função do documento votado pelo Senado nos últimos dias. 

E agora a pandemia virou passado. Todo mundo saindo de casa normalmente. Máscaras no queixo apenas por hábito. Ainda morrem umas 200, 300 pessoas por dia, mas isso já faz parte do cotidiano. A Covid-19 provavelmente vai para o esquecimento e quem tocar no assunto no dia-a-dia vai ser visto como antipático. Nós vivemos em um país menos civilizado que antes do primeiro caso da doença, em fevereiro de 2020. A vida aqui vale menos do que valia em fevereiro de 2020.  Somos menos humanos do éramos em fevereiro de 2020. Perdemos. Simples assim. 

Porque perdemos?

Desde junho de 2020, o isolamento social se tornou inviável no Brasil. O número de mortes já passava dos mil por dia. E menos de 20% da população realmente ficava em casa. Esse patamar jamais se reverteu. Perdemos a oportunidade única dos primeiros dias de pandemia, quando a maioria realmente se mostrou disposta a fazer o isolamento. A culpa, com certeza, é do governo Bolsonaro. 

Por cerca de dez meses, entre o desmonte do isolamento e os grandes atos de maio de 2021, a esquerda ficou em um impasse. Logicamente, foi correto defender o distanciamento social. Mas o que fazer se o governo não decreta o lokcdown e todo mundo já está saindo de casa?

Alguns achavam que tínhamos que ficar em casa por obrigação moral. Outros achavam que diante da realidade, tínhamos que ir às ruas. Todos erramos em algum momento. Todos. Sem julgamentos. Ninguém foi herói ou vilão. Ninguém sabia direito o que fazer. 

Ainda bem que o movimento negro acabou com o impasse e foi para as ruas no dia 13 de maio de 2021. Foi a partir daí que começamos a reagir. Fizemos grandes atos entre maio e outubro deste ano. Mas era tarde demais. O estrago já estava feito. Perdemos 10 meses “batendo cabeça”. Nesse intervalo, o bolsonarismo tomou as ruas e conseguiu emplacar suas narrativas em boa parte da população.  

Em alguns casos, o discurso era abertamente eugenista. Os mais fracos deveriam morrer para garantir a liberdade de quem tinha “histórico de atleta”. Em outros, o discurso era fatalista.  A morte de alguns milhares era o preço a se pagar para que milhões não morressem de fome. O fundamentalismo religioso ajudou muitos a aceitarem a doença como vontade divina. O individualismo e a cultura da indiferença foram estimulados e a solidariedade social foi minada. 

Boa parte da população acabou sendo ganha para o negacionismo. Em alguns casos, o negacionismo era total. Baseado no conforto em acreditar que tomando cloroquina a doença seria evitada. Em outros casos, era o negacionismo era parcial. A pessoa sabia do risco, mas achava melhor não se lembrar do quanto ele era grave.

Bolsonaro usou o aparato do governo para desmontar o distanciamento, só dando ajuda financeira para a população quando as pessoas já estavam saindo de casa. Enquanto isso, a rede de comunicação e mobilização negacionista foi eficiente e a esquerda ficou desorientada. 

Estamos em um período reacionário 

Certamente interferiu para esta situação os anos de fragilidade da esquerda em sua atuação nas periferias das grandes cidades. São nelas em que moram boa parte dos trabalhadores precarizados, que não tiveram escolha a não ser sair de casa para trabalhar. 

Mas foi determinante para a nossa derrota o fato de estarmos em um período reacionário. Se o individualismo, a indiferença social e o fatalismo foram usados para desmontar o distanciamento, é porque são valores enraizados na nossa cultura e fortalecidos no momento histórico em que vivemos. Depois da derrota das mobilizações de junho de 2013 e da onda reacionária de 2015 e 2016, a ideia de que a vida das pessoas possa melhorar pelo esforço coletivo ficou mais desacreditada. 

O movimento sindical se enfraqueceu muito nos últimos anos. Vamos supor que todo o aparato dos sindicatos fosse girado para uma construir uma greve geral em defesa de um lockdown com garantia de emprego e renda para todos. Mesmo assim, essa greve não seria viável. A esquerda e os movimentos sociais estavam como o moral baixo. 

Foi um azar muito grande a combinação de uma crise sanitária inédita, um período reacionário e um governo negacionista. Uma esquerda enfraquecida depois do golpe de 2016 não foi capaz de mobilizar a classe trabalhadora. E a própria classe trabalhadora não tinha disposição de se mobilizar. 

Foi uma derrota parcial, tivemos algumas vitórias 

Temos que fazer uma análise objetiva da realidade. E a realidade nunca é só desgraça. Existem os elementos positivos. O objetivo de Bolsonaro era que todos se contaminassem, centenas de milhares morressem rapidamente e a economia do país andasse sem nenhum contratempo. E ele não cumpriu essa meta inicial. 

Mas foi inteligente e fez um recuo tático.  Não publicou uma medida provisória determinando toda atividade econômica como essencial. Ele chegou a ameaçar fazer isso, mas deixou o desgaste do distanciamento nas mãos de prefeitos e governadores, enquanto fazia falas em defesa da abertura do comércio. O genocida soube usar em seu favor a decisão do Supremo Tribunal Federal que determinava a divisão de responsabilidades no combate à Covid-19 entre União, estados e municípios. De acordo com sua narrativa, o Presidente não era responsável pelas mortes porque o distanciamento era atribuição de governadores e prefeitos. E não era responsável pelos impactos na economia porque defendia a abertura do comércio. 

Ele não conseguiu sua sonhada carnificina, mas sabotou aos poucos as medidas de prevenção. Poderia ter sido pior. Poderia ter sido uma hecatombe com mortos encontrados em caçambas de lixo ou jogados de janelas de edifícios. 

Além disso, alguns movimentos sociais souberam se contrapor à cultura da indiferença com a distribuição de cestas básicas para a população de baixa renda. Não foi o suficiente para resolver o problema da fome, mas deu uma boa ajuda. 

Outra vitória que tivemos foi em relação às vacinas. A maioria da população se vacinou. A pressão da oposição fez o governo abrir mão de sua política antivacina e deixar o Sistema Único de Saúde (SUS) trabalhar. Graças a isso, o número de mortes caiu e evitamos o que seria uma nova onda do vírus. 

Uma última vitória que tivemos, apesar do quadro geral de derrotas, foi o auxílio emergencial. Bolsonaro se elegeu dizendo que os programas sociais tornavam as pessoas preguiçosas. No início da pandemia, a proposta de auxílio era três parcelas de R$ 200,00. Foi a oposição no Congresso que obrigou o governo a mudar de política. Hoje o Presidente quer aumentar o valor do bolsa-família e mudar o nome do programa para se reeleger. A política de distribuição direta de renda, bandeira da esquerda, se tornou um consenso nacional. A proposta de renda básica universal hoje é discutida por todos. 

Agora é evitar outra derrota e impedir a reeleição de Bolsonaro

Não sabemos se Bolsonaro vai terminar o mandato. O Brasil é cheio de imprevistos e tudo pode acontecer. Mas se o genocida disputar as eleições de 2022, ele provavelmente vai estar no segundo turno. E tem chances reais de ganhar. 

O fato dele ter sido parcialmente vitorioso na disputa de narrativas em relação à Covid-19 nos ajuda a armar nossa política para o próximo ano. Dizer que Bolsonaro matou 600 mil pessoas não é o suficiente para convencer os eleitores a não votarem nele. 

O genocida tem uma base ideológica sólida, de pouco mais de 10% da população. Se Bolsonaro der um tiro na cabeça de uma criança ao vivo em cadeia nacional, essa parcela vai continuar apoiando ele. E alguns vão militar em seu favor, ir às ruas e pedir votos. 

Isso se soma à popularidade que o Presidente pode ganhar se conseguir aumentar o valor do bolsa-família e inaugurar algumas obras de infraestrutura. Ele pode ser ajudado também pela sensação de que a pandemia acabou e talvez por uma pequena, ilusória, mas existente recuperação econômica. 

Esses fatores são o suficiente para que o genocida chegue ao segundo turno. Se o adversário for Lula, o antipetismo vai acrescentar votos ao Presidente. A maior parte da classe dominante deve fazer campanha para alguma “terceira via” no primeiro turno. Mas no segundo, as elites, junto com a bancada do boi, da bala e da bíblia, vão se mover pela reeleição de Bolsonaro. Isso significa currais eleitorais, dinheiro e mídia. Muitos dos que hoje respondem nas pesquisas que vão votar em Lula podem mudar de voto diante da influência desses agentes.  

Se Bolsonaro participar das eleições de 2022, será uma disputa difícil. Não podemos confundir as intenções de voto hoje com o a votação real depois de uma campanha que será suja, tensa e feita com uso de máquina pública e privada. E mesmo que o genocida perca, é muito, mas muito provável, que ele tente um golpe. E existem chances reais dele ser bem sucedido. Para isto, basta que seus bandos milicianos instalem o caos no país, levando as forças armadas a agir. 

A realidade é feia, chata e pelega. Mas é a realidade. Temos uma batalha duríssima pela frente. E não há nenhuma garantia de que vamos vencer. Tampouco há garantia de que vamos perder. Não há tempo para chorar pela derrota de tivemos. Urge trabalharmos para que o futuro seja diferente. Não sabemos quantas vidas podemos perder se formos derrotados de novo. À luta! 

 

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