Pular para o conteúdo
Colunas

Massacre no Jacarezinho e contaminação de rebanho: a morte como solução fácil

Gabriela Mika tanaka

Direita Volver

Coluna mensal que acompanha os passos da Nova Direita e a disputa de narrativas na Internet. Por Ademar Lourenço.

Sara Winter: branca, mora em bairro de classe média, “cidadã de bem”. Acusações: Ameaçar uma pessoa de agressão em público, xingar policiais e organizar uma milícia contra a democracia. Veredicto: Inocente.

Morador do Jacarezinho: negro e morador de favela. Acusações: ter uma anotação criminal por desacato e seguir pessoas envolvidas com o tráfico nas redes sociais. Veredicto: condenado à pena de morte por execução sumária. 

Este é o sistema de Justiça defendido por Bolsonaro e seus apoiadores. De acordo com este novo “Código Penal”, ter uma passagem pela polícia, por qualquer motivo, é algo que deve ser punido com a morte. Claro, se a pessoa for negra e moradora de favela. O “cidadão de bem” continua tendo o direito inalienável de espancar a esposa, não pagar pensão alimentícia, dirigir de forma perigosa, contaminar os outros com Covid-19 ou ser nazista. 

Não há nenhuma novidade nesta “doutrina jurídica”. O livro “Rota 66”, do jornalista Caco Barcelos, descreve com riqueza de detalhes a prática de setores da polícia que fazem o que alguns chamam de “limpeza social”. Mas na época em que a obra foi escrita (anos 90) os policiais tinham o pudor de adulterar a cena do crime e forjar uma suposta troca de tiros. O assassinato era oficialmente registrado como legítima defesa. Agora os comandantes da operação no Jacarezinho abriram mão das formalidades. Praticamente assumem que foi execução. 

Uma boa parcela da população apoiou o massacre. Se antes eram necessárias justificativas, como a legítima defesa, agora o discurso da “limpeza social” é explícito. Não importa se alguns dos que eram perseguidos tenham se entregado à polícia. Não importa se alguns não estavam diretamente envolvidos no tiroteio. Se tem passagem pela polícia, é “CPF cancelado com sucesso”. 

Matar uma solução fácil, rápida e barata 

Vamos ao números. No Brasil, há cerca de 750 mil pessoas presas ou monitoradas pela Justiça em função de processos. Outras dezenas de milhares nunca foram presas, mas têm anotação criminal em suas fichas. Para o Brasil ficar seguro, todas devem assassinadas. Talvez um milhão de mortos seria o ideal. Esse número nos lembra de algo?

Se um milhão de pessoas morressem logo de Covid-19, o “cidadão de bem”, que toma cloroquina e tem histórico de atleta, não precisaria passar pelo desconforto de usar máscara. Essa é a teoria da “imunidade de rebanho”, em que a solução para a doença é que todos se contaminem, criando imunidade ou falecendo. 

Imagine o que pode ser feito em outras áreas? O Brasil tem cerca de 220 mil pessoas em situação de rua? Fogo nelas. Política para pessoas com HIV? Que nada! Vamos fuzilar os 920 mil brasileiros soropositivos. O próprio Bolsonaro já disse que eles são uma despesa e que só estão com o vírus porque “tem um comportamento sexual diferenciado”. 

Um Brasil livre de “mendigos”, “aidéticos”, “bandidos” e pessoas fracas para a “gripezinha” custaria cerca de 3 milhões de mortes. Menos de 2% da população do país. Se nós já temos que “aceitar que alguns vão morrer mesmo”, como os bolsonaristas estão falando sobre a Covid-19, porque não usar este tipo de solução de forma generalizada? 

Por exemplo, se apenas uns 5 milhões de aposentados forem fuzilados, o alívio nas contas públicas seria enorme. Esta “reforma da previdência” pode parecer ridícula, mas o ministro Paulo Guedes já disse que aqueles que querem viver até os 100 anos atrapalham a economia do país. 

Se esta política tiver aceitação, pode ser ampliada. A solução para os 55 milhões abaixo da linha da pobreza no país seria fácil. Mandar todo mundo para a vala. E os 45 milhões de brasileiros com deficiência? Bom, é gente com comportamento “diferenciado” e que dá despesa para o governo. Bala neles. 

Até agora, pelas contas, cerca de 100 milhões de brasileiros devem morrer. Mais ou menos metade do país. E aí, que tal? Achou um absurdo? Aqueles 30% que apoiam o Bolsonaro já estão prontos para aceitar a ideia. Basta exterminar um grupo por vez e ir subindo o tom da violência de pouco em pouco. 

O valor da vida é fruto de disputa política 

O apoio ao massacre em Jacarezinho e à “imunidade de rebanho” tem um único objetivo, convencer as pessoas de que algumas vidas não valem a pena. Assim, não é necessário reivindicar direitos. É só matar a pessoa que tem problema que o problema acaba. A cada um, resta rezar para não ser o próximo sacrifício em nome da segurança ou da economia. 

Todo ser humano, com exceção dos psicopatas, é capaz de sentir empatia por pessoas do próprio círculo afetivo. Isto é um fenômeno natural, explicado pela neurociência. Já o valor da vida em abstrato, a ideia de que a morte deve ser evitada ao máximo possível, independente de quem está em risco, é diferente. Depende de fatores históricos e culturais. 

A escravidão já foi considerada “normal”, o massacre de cidades ou países inteiros já foi considerado “normal”, todo tipo de atrocidade já foi “normalizada”. A justificativa sempre foi que alguns devem morrer para que outros consigam viver. Ou seja, sem um massacre de vez quando, não tem como a economia progredir, o crime ser combatido ou o mundo prosperar. 

De fato, algumas mortes são justificáveis. Ninguém deve ser condenado por ter agido em legítima defesa. Quando falta leitos em uma UTI, o médico é obrigado a escolher o paciente com mais chances de sobreviver. A Guerra é necessária em algumas circunstâncias excepcionais da História. Mas isto é diferente de causar mortes de forma desnecessária. 

Usar o extermínio como solução fácil para problemas difíceis tem duas consequências ruins. Em primeiro lugar, quem tem o direito de decidir aqueles que vão morrer ou viver? Não existe, nem nunca vai existir, um grupo de “iluminados” capaz de usar este poder apenas de maneira justa e sábia. A História ensina que ele é usado, geralmente, para se obter vantagens. 

O segundo problema é que a máquina de exterminar pessoas não tem botão de desligar. Hoje estamos matando os “fracos para doença” e aqueles considerados “perigosos”. Depois, quando as pessoas se acostumarem, será quem? Os soropositivos? Os moradores de rua? Os aposentados? Os pobres? As pessoas com deficiência? Cada massacre vai ser a justificativa de outro massacre ainda maior. 

O “cidadão de bem” de hoje pode ser o “doente”, o “bandido”, o indesejável de amanhã. Mas infelizmente uma parte da população brasileira se acha invulnerável. Alguns vão acabar descobrindo a verdade da pior forma.