Pular para o conteúdo
TEORIA

O espetáculo de Nicolelis

 Alvaro Bianchi

Para a comunidade científica brasileira as imagens mais importantes na abertura da Copa do Mundo deveriam ser aquelas nas quais um paraplégico, vestindo um exoesqueleto comandado por sinais cerebrais, daria o chute inicial. Faltou combinar com a Fifa. Apenas sete segundos foram transmitidos pela televisão, o chute não inaugurou a partida e a decepção tomou conta de todos.

Ainda assim, o chute ocorreu. Façanha de Miguel Nicolelis, neurocientista brasileiro radicado nos Estados Unidos. A façanha não é inédita. Segundo Stefano Pupe, vários grupos de pesquisa estão realizando pesquisas na mesma área e obtendo resultados importantes. Mais de dez protótipos de exoesqueletos já foram testados com humanos e quatro deles são vendidos comercialmente. Ao menos dois projetos utilizaram de maneira bem sucedida sinais cerebrais para controlar o exoesqueleto, um na Universidade Livre de Bruxelas, chamado de Mindwalker, outro, o NeuroRex, criado na Universidade de Houston (cf. PUPE, 2014).

O ineditismo, entretanto, é irrelevante. Na ciência contemporânea vários grupos de pesquisa independentes trabalham procurando resolver problemas similares utilizando modelos teóricos e técnicas de investigação diferentes. A descoberta científica tende a ser uma combinação dos diversos achados aos quais cada grupo chegou. Os laboratórios científicos são muito diferentes da caverna do alquimista. Não basta o cientista mostrar o “milagre” da descoberta. Ele precisa provar como chegou até ela, usando que meios. E faz isso publicamente nas revistas cientificas. O conhecimento avança por meio da comparação dos resultados públicos dessas investigações.

Mas se o ineditismo não é relevante para o avanço do conhecimento, por que era tão importante a exibição desse feito na abertura da Copa? Se lembrarmos a crise pela qual passou recentemente o Instituto Internacional de Neurociências de Natal – Edmond e Lily Safra (IINN-ELS) talvez fique mais evidente o que estava em jogo. Criado por Nicolelis juntamente com professores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, dentre os quais Sidarta Ribeiro, o IINN-ELS recebeu substanciais recursos privados e publicos. Em 2011, entretanto, os pesquisadores contratados pela UFRN se retiraram do Instituto acusando Nicolelis de agir de maneira autoritária em um episódio descrito com detalhes pela imprensa brasileira (cf. ESTEVES, 2011 e ANGELO; LOPES, 2011).

Na crise do Instituto ficou clara a relação promíscua existente entre financiamento privado e recursos públicos. Durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, Nicolelis se aproximou da administração. Recebia verbas vultuosas para seus projetos e oferecia em troca propaganda do governo nas páginas de Scientific American. A divulgação de suas pesquisas nas páginas dessa revista cedeu lugar à exaltada apologia do governo cuja eleição teria acompanhado, segundo escreveu, “em frente a uma TV de 60 polegadas, comprada para assistir os jogos de futebol” (NICOLELIS, 2008).[1]

Além de aguçado senso de oportunidade política e do pendor para a autopropaganda, Nicolelis demonstrou, também, uma impressionante capacidade de arrecadar fundos e arregimentar apoios. Aplicou em Natal o que aprendeu nas universidades americanas e atuou como um eficaz fund riser. Como deixou claro em vários artigos, Nicolelis criou uma associação privada para gerir os recursos mobilizados, a Associação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa (AASDAP). Foi por meio dessa associação que Nicolelis assinou um convênio com o Hoispital Sirtio Libanês e, mais tarde, recebeu de Lily Safra “uma das maiores doações privadas já feitas para um projeto científico brasileiro” (NICOLELIS, 2008). Depois arrancou 100 hectares da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e mais R$ 42 milhões do governo federal para seu projeto (NICOLELIS, 2008). As contas não são transparentes. Mas é de se supor que esses não tenham sido os únicos recursos.

Embora os recursos públicos fosse volumosos, o neurocientista se sentiu plenamente livre para utiliza-los como bem entendia de acordo como critérios privados. Esse modelo de administrações privada de recursos públicos fez com que os problemas não tardassem em aparecer, principalmente com outros pesquisadores envolvidos no projeto. Apesar da UFRN ter conseguido as vagas para pesquisadores serem contratados pelo Instituto estes tinham que se submeter à disciplina e às vontades de seu diretor. Rapidamente começaram a protestar contra essa situação.

A liderança dos dissidentes foi Sidarta Ribeiro. Foi com ele que Nicolelis assistiu o resultado das eleições de 2002 naquela enorme TV. Mais acostumado com o financiamento público das universidades brasileiras, Sidarta esclareceu as razões das diferenças: “O que existe é um problema que envolve uma parceria público-privada que precisa ser resolvido” (ANGELO; LOPES, 2011). O tamanho do problema ficou evidente quando a UFRN tentou reaver os equipamentos adquiridos com recursos da Finep. Na ocasião Nicolelis afirmou que “o valor monetário daqueles equipamentos é de R$ 232 mil e não R$ 6 milhões como foi veiculado em alguns veículos de comunicação” (NICOLELIS, 2011). No fim das contas, apesar das vultuosas quantias que órgãos públicos colocaram no Instituto, a Universidade recuperou apenas estufas, centrífugas, câmaras e outros equipamentos obsoletos ou de menor valor.

Já naquela época ficou evidente que o conflito era decorrente de diferentes visões a respeito da ciência e da produção do conhecimento. Nicolelis concebia e concebe a ciência como um negócio. No site do IINN-ELS é possível ler:

“mais de 500 empresas, somente nos EUA, estão concentrando suas pesquisas nas diversas maneiras de tratar doenças neurológicas. Essas empresas vêm investindo em pesquisa de ponta e desenvolvimento tecnológico desde o início dos anos 90. Nosso propósito é trazer esse novo campo de desenvolvimento industrial ao Brasil e criar joint-ventures entre o IINN-ELS e lideranças internacionais interessadas em investir na criação e no desenvolvimento da Indústria Brasileira do Cérebro’.” (NICOLELIS, 2011)

O chute inicial da Copa dado por um paraplégico foi concebido para ser o maior lance publicitário do projeto de Nicolelis. Transmitido via satélite o chute justificaria os milhões gastos perante uma opinião pública pouco afeita a entender a lentidão com a qual a ciência procede. Mas ele também atrairia novos investidores e doadores interessados nos efeitos diretos e indiretos que essa façanha científica poderia ter em seus negócios ou em suas imagens públicas. A ciência somava-se, assim, ao grande espetáculo do futebol. O resultado esperado desses dois espetáculos simultâneos era o mesmo: mais dinheiro.

Mudança de rota

A comunidade científica brasileira tem todo o direito de perguntar: qual o significado desse espetáculo para o avanço do conhecimento cientifico? E ela também tem muitos motivos para achar que esse resultado foi nulo. A apresentação na Arena São Paulo não foi um experimento científico válido que permitisse refinar o conhecimento já obtido, comprovar hipóteses ou simplesmente realizar uma observação adicional. Nada disso. E essa comunidade científica pode também, legitimamente, questionar se a apresentação  era necessária para o avanço do conhecimento ou se ela não passou de perda de tempo, propaganda eleitoral ou, simplesmente, publicidade para atrair novos investidores .

Há razões científicas para ter dúvidas. O exoesqueleto foi comandado por ondas cerebrais captadas por meio da tecnologia da eletroencefalografia (EEG). Até poucos anos atrás Nicolelis considerava essa tecnologia inadequada e, por esse motivo, advogou em favor de técnicas mais invasivas como o uso de mircoeletrodos implantados diretamente no córtex cerebral. Em 2001, o neurocientista escreveu na prestigiada revista Nature:

“Infelizmente, métodos eletrofisiológicos menos invasivos como os registros de EEG  que reflitam a atividade elétrica comum de milhões de neurônios em vastas áreas do córtex, carecem de resolução para fornecer o tipo de sinais motores variáveis no tempo necessários para controlar o braço de um robô em tempo real” (NICOLELIS, , 2001, p. 404).

Por essa razão, sua aposta estava em “microelétrodos cirurgicamente implantados no cérebro” (idem), uma técnica considerada muito invasiva e muitas vezes questionada eticamente. Em 2009 a conclusão de suas pesquisas era a mesma: “ICMS [intracortical microstimulation – microestimulação intracortical] transportada por meio de redes de multi-eletrodos cronicamente implantados deverão ser incorporadas em muitas BMI [brain–machine interfaces – interfaces cérebro-máquina]” (O’DOHERTY; LEBEDEV; HANSON; FITZSIMMONS; NICOLELIS, 2009, p. 9). E ainda em 2011 esse parecia ser o caminho mais seguro ( cf. LEBEDEV;  NICOLELIS, 2011 e NICOLELIS, 2011).

Mas esse caminho, que parecia ser o mais seguro foi abandonado pela equipe no meio do projeto. O desenvolvimento de eletrodos capazes de cumprir a função esperada iria requerer mais tempo do que Nicolelis tinha. E havia também barreiras éticas, uma vez que esses implantes seriam extremamente invasivos e os organizadores do projeto temiam que os comitês de ética das agências de fomento vetassem o projeto. A prudência recomendaria continuar pelas linhas de investigação nas quais muitos anos haviam sido investidos e bons resultados começavam a ser obtidos. Mas isso inviabilizaria o espetáculo.

Ao optar pela tecnologia da eletroencefalografia a equipe de Nicolelis precisaria compensar os limites dos sinais cerebrais decodificados com a tecnologia robótica. O neurocientista sempre soube que para o experimento dar certo seria necessário que os circuitos eletromecânicos do exoesqueleto ajustassem o movimento sem nenhuma interferência cerebral (cf. p. ex. NICOLELIS, 2012, p. 62). Andrew Schwartz, da University of Pittsburgh, poucos meses antes da Copa, questionou os resultados que poderiam ser obtidos dessa maneira:  “Tudo o que você verá na demonstração será uma fantasia robótica, não o controle do cérebro, e provavelmente ela ser toda pré-programada” (apud REGALADO, 2014). Até o momento o momento não se sabe ao certo se o exoesqueleto se moveu na Arena São Paulo predominantemente devido aos sinais emitidos pelo cérebro do paraplégico ou devido aos comandos previamente programados pela equipe.

Perguntas (até agora) sem respostas

A façanha de Nicolelis dividiu a opinião pública brasileira. Por um lado, os cavaleiros do apocalipse tucano festejaram sua irrelevância. O primeiro foi Reinaldo Azevedo, que em seu twitter disparou: “torço para que os feitos de Nicolelis, um dia, estejam à altura de sua capacidade de gerar notícia”. Diego Mainardi foi atrás:  “exatamente como Santos Dumont, Nicolelis inventou o que já havia sido inventado”. Roger Moreira seguiu a fila fazendo, encarnando, como sempre, o papel de bufão da corte: “Que sucesso esse exoesqueleto, heim? Tem que colocar a tábua embaixo sempre? Não é muito prático, né? Show de bola… Cientista arrogante”. Nicolelis, ativista virtual, rebateu freneticamente e com o mesmo vigor, seus acusadores.

O ato seguinte era previsível. O Brasil dividiu-se de novo entre petralhas governistas defensores de Nicolelis e coxinhas opositores recalcados; os argumentos tornaram-se cada vez mais irracionais; e o Brasil exibiu ao mundo, em vez dos avanços de sua ciência, mais um espetáculo de miséria intelectual no qual não foram poucos os cientistas envolvidos. Os temas que precisavam ser discutidos e as questões que deveriam ser respondidas para que houvesse um efetivo incremento no conhecimento cientifico e um melhor esclarecimento da opinião pública brasileira, estes ficaram à margem. Enumero aqui cinco interrogações que, a meu ver, poderiam estimular um debate mais rico a respeito dos eventos. Embora tenha opiniões a respeito deixo-as sem resposta para que cada um possa elaborar as suas:

1)  No quadro em que se encontra a pesquisa cientifica brasileira, as investigações de Nicolelis são prioritárias?

2) Quem ganha quando a ciência se converte em instrumento da propaganda política?

3) O que ganha a ciência quando se converte em espetáculo?

4) O que acontece quando a ciência passa a ser mais um empreendimento financeiro?

5) Como Nicolelis responderia a essas preguntas?

Referências bibliográficas 

ANGELO, Claudio; LOPES, Reinaldo José. Grupo de cientistas liderado por Miguel Nicolelis sofre cisão.  Folha de S. Paulo, 26 jul. 2011.

ESTEVES, Bernardo. O chute. Piauí, n. 63, dez. 2011.

GRILO, Margareth. Jovens cérebros em favor da ciência. Tribuna do Norte, 6 ago. 2011

IINN-ELS. Sobre o Instituto. Disponível em: http://bit.ly/1ra4mAO

LEBEDEV, Mikhail A.;  NICOLELIS, Miguel A. L.. Toward a whole-body neuroprosthetic. Progress in Brain Research, v. 194, 47–60, 2011

NICOLELIS explica a saída dos neurocientistas. Diário de Natal, 29 jul. 2011

NICOLELIS, Miguel A. L. Actions from thoughts. Nature, v. 409, n. 6816, p. 403-407, 2001.

NICOLELIS, Miguel A. L. Building the Knowledge Archipelago. Globalization of a development model. Scientific American Web Features, Jan. 17, 2008. Disponível em: http://bit.ly/1m0YVz6

NICOLELIS, Miguel A. L.. Mind in Motion. Scientific America, n. 307, p. 58-63, 2012.

NICOLELIS, Miguel A. L..  Mind out of Body. Scientific America, n. 304, p. 80-83, 2011.

O’DOHERTY, Joseph E.; LEBEDEV, Mikhail A.; HANSON,  Timothy L. FITZSIMMONS, Nathan A.; NICOLELIS, Miguel A. L.. A Brain-Machine Interface Instructed by Direct Intracortical Microstimulation. Frontiers in Integrative Neuroscience, v. 3, article 20, 2009.

PUPE, Stefano. O voo de Nicolelis. Piauí, n. 93, jun. 2014.

REGALADO, Antonio. World Cup Mind-Control Demo Faces Deadlines, Critics. MIT Technological Review. 15 Apr. 2014. Disponivel em: http://bit.ly/1is3bKD

SILVA, Luiz Inácio Lula da Silva; HADAD,  Fernando; NICOLELIS, Miguel A. L. Brazil’s Option for Science Education. Scientific American, n. 298, p. 33 2008).



[1] O ponto alto dessa campanha publicitária é um ufanista artigo assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro Fernando Haddad e o próprio Nicolelis (SILVA; HADAD, NOICOLELIS, 2008).

Marcado como:
ciência