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BRASIL

Sobre ciência, buracos negros e a audácia indômita do espírito humano

Glailson dos Santos

Concepção artística de um buraco negro.

Dez de abril de dois mil e dezenove acaba de entrar para a história como o dia em que a humanidade obteve a primeira evidência direta da existência de buracos negros, objetos astronômicos bizarros que têm intrigado algumas das mentes mais brilhantes dos séculos XX e XXI, cientistas como Albert Einstein e Stephen Hawking. Essa nova conquista científica demonstra não só o fantástico poder de predição da ciência, mas o incrível potencial do esforço coletivo da humanidade para superar até mesmo os maiores desafios do universo.

Muito tem se falado sobre como a imagem desfocada atesta o brilhantismo daquele que foi considerado o maior gênio do século XX, o físico alemão Albert Einstein. A verdade, porém, é que esta é mais uma conquista de uma longa sucessão de esforços de incontáveis homens e mulheres que contribuíram para o avanço de nossa compreensão sobre a realidade.

Às vésperas do Natal, em 22 de dezembro do distante ano de 1915, Albert Einstein, já consagrado pela publicação de seus artigos sobre o efeito fotoelétrico, movimento Browniano e a teoria especial da relatividade, uma década antes, recebia com agradável surpresa os manuscritos de seu colega Karl Schwarzschild, considerado atualmente um dos fundadores da moderna astrofísica.

Nessas anotações, Schwarzschild demonstrava-se capaz de solucionar, de forma exata, as equações de campo de gravitação propostas por Einstein a partir de sua teoria da relatividade geral. Até aquele momento, o próprio Einstein só havia sido capaz de produzir soluções aproximadas. Ainda no inicio de 1916, Einstein escreveria uma carta, reconhecendo o brilhantismo da solução proposta por Schwarzschild:

“Li a sua carta com o máximo interesse. Não esperava que se pudesse formular a solução exata do problema de maneira tão simples. Gostei muito do seu tratamento matemático sobre o assunto. Na próxima quinta-feira apresentarei o trabalho à Academia com algumas palavras de explicação”. [1]

Foi esta solução matemática “exata” e “tão simples”, capaz de surpreender o pai da relatividade geral, que permitiria aos astrofísicos posteriores preverem com rigor científico e matemático a existência de buracos negros, um fenômeno que só agora, em 2019, viria a ser confirmado através de evidencias diretas.

Há décadas, buracos negros foram previstos como resultado da morte de estrelas super massivas, onde o fim do processo de fusão nuclear do hidrogênio deixaria de ser capaz de equilibrar sua tremenda atração gravitacional fazendo-as implodir sob o próprio peso em uma espécie de buraco no próprio tecido do espaço-tempo, um buraco do qual nem mesmo a luz seria capaz de escapar uma vez dentro dele. Embora, ainda mais recentemente, uma hipótese proposta por Stephen Hawking preveja que, devido a efeitos quânticos, os buracos negros sejam capazes de emitir um tipo curioso de radiação, batizada de radiação Hawking em sua homenagem. Se tivesse vivido apenas mais um ano, Hawking certamente ficaria fascinado pelo feito envolvendo aquele que foi o objeto de estudo no qual investiu grande parte de sua carreira.

A impressionante semelhança entre a imagem obtida por simulação, a partir das equações da gravitação da Relatividade Geral, e a imagem obtida pela sobreposição dos dados dos radiotelescopios do EHT.

A ciência é um esforço coletivo que une pessoas através do tempo e do espaço

Muito antes de Einstein e Schwarzschild, a ideia de um corpo super massivo do qual nada poderia escapar foi inicialmente proposta, de forma meramente especulativa, pelo geólogo John Michell em uma carta escrita ao químico britânico Henry Cavendish ainda em 1783. Poucos anos depois, em 1796, o matemático Pierre-Simon Laplace promoveu essa mesma ideia na primeira e segunda edição do livro Exposition du système du Monde, embora ela viesse a ser removida nas edições posteriores. Contudo, a sugestão de algo semelhante ao que chamamos hoje de buracos negros foi amplamente ignorada pela comunidade científica até o advento da relatividade geral, afinal, até então, não haviam evidências plausíveis para crer que radiação sem massa, como a luz, pudesse ser influenciada pela gravidade. Sem evidências à favor, essas suposições ficariam relegadas ao rodapé da história enquanto a nosso entendimento sobre a realidade avançava.

Desde então, nossa compreensão sobre a natureza da radiação, da gravidade, do espaço-tempo e da própria ciência e tecnologia, avançou tão vertiginosamente ao ponto que pudemos acompanhar, na última quarta-feira, através de uma postagem no Facebook, a reação de Katherine Bouman, líder da equipe responsável por renderizar a imagem, ao olhar pela primeira vez um buraco negro no coração incrivelmente distante da galáxia Messier 87. Enquanto uma legião de leigos, entusiastas da ciência em todo o mundo, pôde encarar com fascínio uma fotografia borrada, por ter ao menos uma noção de sua enorme importância.

A M87, também conhecida como Virgo A, é uma galáxia elíptica localizada a aproximadamente sessenta milhões de anos-luz da Terra, que hospeda o buraco negro mais massivo conhecido, com massa em torno de 6,5 bilhões de vezes a massa do nosso Sol.

Embora buracos negros, por definição, não possam ser visto, o gás que cai neles é aquecido a milhões de graus e emite radiação que pode ser captada por nossos radiotelescópios. Contra essa “iluminação” de fundo há uma silhueta escura que é a sombra do buraco negro, o que pode ser observado, ainda que desfocado, porque o alvo está tão distante que o tamanho da imagem excede a resolução máxima do EHT, sigla em inglês para Telescópio de Horizonte de Eventos.

Observar um objeto tão distante, por métodos convencionais, exigiria um telescópio do tamanho do diâmetro da terra, por isso, o EHT não é um telescópio, mas uma rede internacional com oito radiotelescópios espalhados pelo mundo, sincronizados por relógios atômicos e auxiliados por um intrincado programa de inteligência artificial que, através de uma técnica chamada Interferometria, sobrepõem dados obtidos a partir da captação de ondas eletromagnéticas para além do espectro da luz visível.

Originalmente, previa-se, também para o dia 10 de abril, a apresentação da imagem de outro buraco negro, Sagitário A*, o corpo massivo no centro da nossa própria galáxia, a Via Láctea, porém, a renderização dessa nova imagem exigirá ainda mais esforços dos cientistas, pois, embora esteja muito mais próximo de nós, este segundo buraco negro é mais de mil vezes menos massivo, e muito mais agitado, que aquele na distante galáxia M87, cuja “fotografia” desfocada agora podemos contemplar.

O anel “luminoso” que envolve a sombra do buraco negro em M87 é assimétrico porque está em rotação. Na região inferior, a radiação se move em direção ao observador e aparece mais brilhante, enquanto na parte superior ela se afasta e aparece mais tênue. Isso permitiu determinar que o buraco negro gira no sentido horário. Esta imagem nos fornece uma forte evidencia de que as equações da gravidade das quais dispomos se sustentam até mesmo sob as condições extremas na borda de um buraco negro.

Desde abril de 2017, quanto uma janela de observação de 10 dias permitiu que os alvos dessa observação estivessem visíveis ao mesmo tempo para todos os oito radiotelescópios com os quais a equipe do EHT trabalha, a enorme quantidade de dados coletados por cada observatório, durante cincos dias interruptos de observação, foi enviada em discos rígidos para uma central nos Estados Unidos, milhões de gigabytes de informação. Foram dois anos apenas para tratar esse volume gigantesco de dados.

“Nenhum de nós conseguiria fazer isto sozinho. A imagem surgiu graças a muitas pessoas diferentes, de vários campos.” [2], disse Katherine Bouman (29 anos), doutora em engenharia elétrica e ciência da computação pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), chefe da equipe responsável pelos algoritmos nos permitiram obter a imagem inédita. Para celebrar, o MIT compartilhou em suas redes sociais uma imagem de Katherine Bouman ao lado de Margaret Hamilton, a cientista do mesmo instituto que escreveu o código necessário para levar o Homem à Lua e que, como Katherine, possibilitou um feito histórico. Contudo, feitos como estes exigem a cooperação imediata de dezenas de pessoas e o conhecimento técnico e científico acumulado ao longo de gerações. Cerca de 200 cientistas de todo o mundo que fizeram parte da equipe que nos presenteou, neste dia 10 de abril, com a singela imagem que emergiu dos algoritmos supervisionados por Bouman.

À esquerda, Margaret Hamilton posa ao lado do código de programação que escreveu para a Missão Apolo, responsável por levar o primeiro ser humano à Lua. À direita, Katherine Bouman posa ao lado dos HDs armazenando os milhões de gigabytes que permitiram renderizar a primeira imagem real de um buraco negro.

Mas afinal, o que temos à aprender com imagem desfocada de uma estrela morta?

O quão longe poderíamos chegar se tivéssemos mais radiotelescópios cooperando para gerar imagens fascinantes como essa? E se em cada país pelo mundo houvesse pelo menos um grande centro de formação e desenvolvimento científico e tecnológico como o MIT que formou Katherine Bouman ou a Caltech, onde ela dá aulas e desenvolve seu trabalho inovador? Quais seriam os limites se em todo o mundo, os maiores especialistas em cada área pudessem cooperar livremente sem obstáculos de interesses políticos tacanhos de seus governos, sem o direcionamento pelos interesses mesquinhos de seus patrocinadores privados e sem as barreiras impostas pela lógica sovina das patentes e da propriedade intelectual? Ou se pelo menos não tivéssemos de suportar a morte lenta por inanição da pesquisa científica no Brasil, que apenas nesse histórico ano de 2019, sob o governo Bolsonaro, sofreu um corte de 42% no seu já combalido orçamento?

Foi Einstein quem disse: “Toda a nossa ciência comparada com a realidade, é primitiva e infantil — e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos”[3]. Na atualidade, diante do avanço assustador do obscurantismo, que frequentemente busca coloca em cheque o valor da ciência e a própria realidade dos fatos, é reconfortante poder presenciar a constatação do incrível poder de predição do método científico. Mais reconfortante ainda é saber que, mesmo com tantas evidências a favor da relatividade geral, acumuladas ao longo do último século, cientistas em todo o mundo aguardavam ansiosos por evidências diretas que comprovassem a existência de buracos negros e testassem o nível de precisão das previsões feitas pelos cálculos. A relatividade geral passou por mais este teste.

Mas e se não houvesse passado? E se, como aconteceu recentemente com as fotos tiradas da superfície de Plutão pela sonda New Horizons, em 2015, a realidade que encontramos simplesmente não se enquadrasse em nossas expectativas?

Bem, neste caso, estaríamos de volta à prancheta. Nos veríamos diante do desafio de nos desapegar de velhas certezas, propor novas teorias, buscar por novas evidências e seguir avançando em nossa compreensão sobre a realidade, tal qual fizeram um dia o próprio Einstein e inúmeros outros físicos anônimos ao se depararem com os limites da Teoria da Gravitação proposta por Newton no século XVII. Afinal, como ressalta Carl Sagan, outro reverenciado astrofísico:

“Algumas pessoas consideram a ciência arrogante, especialmente quando pretende rebater opiniões arraigadas ou introduz conceitos bizarros que parecem contraditórios ao senso comum. Como um terremoto que confunde a nossa confiança no próprio solo que estamos pisando, pode ser profundamente perturbador desafiar as nossas crenças habituais, fazer estremecer as doutrinas em que aprendemos a confiar. Ainda assim, sustento que a ciência é, em essência, humildade. Os cientistas não procuram impor as suas necessidades e desejos à Natureza; ao contrário, interrogam-na humildemente e levam a sério o que descobrem. Sabemos que os cientistas reverenciados cometeram erros. Compreendemos a imperfeição humana. Insistimos na verificação independente e, na medida do possível, quantitativa dos princípios propostos. Com frequência estimulamos, desafiamos, procuramos contradições ou pequenos erros residuais persistentes, propomos explicações alternativas, encorajamos a heresia.”[4]

Os limites da teoria da Relatividade voltarão a serem testados no futuro, eventualmente, eles poderão ser forçados além do ponto de ruptura, quando se tornará inevitável buscar uma compreensão ainda mais profunda sobre a natureza do universo. Se, até lá, formos capazes de assimilar os ensinamentos sobre humildade, rigor, sensibilidade e colaboração que nos inspira a ciência, talvez sobrevivamos a nossa própria infância enquanto espécie e possamos deixar de apenas observar as estrelas para mergulharmos no espaço profundo e, finalmente, cruzarmos esta corda, entre o animal e o genuinamente humano, estendida diante de nós sobre o abismo da ignorância e da inexistência. Sigamos, de olhos bem abertos e com o espírito indomável para questionar o Cosmos.

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[1] EISENSTAEDT, J. The Early Interpretation of the Schwarzschild Solution. In HOWARD, D. STACHEL, J. Einstein and the History of General Relativity: Einstein Studies, Vol. 1, pp. 213–234. Boston: Birkhauser, 1989.

[2] BOUMAN, K. Segundo matéria do Portal Sabado. Disponível em https://www.sabado.pt/ciencia—saude/detalhe/katie-bouman-a-mulher-que-conseguiu-a-primeira-imagem-de-um-buraco-negro. Acessado em 11 de abril de 2019.

[3] EINSTEIN, A. Letter to Hans Muehsam (9 July 1951), Einstein Archives 38–408. etter to Hans Muehsam (9 July 1951), Einstein Archives 38–408. Quotes in CALAPRICE, A. The Ultimate Quotable Einstein (2010), p. 404.

[4] SAGAN, C. O Mundo Assombrado pelos Demônios: A Ciência Vista Como Uma Vela No Escuro. São Paulo, Companhia de Bolso, 2006.

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