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TEORIA

Relativismo epistemológico no contexto de pandemia

John Aquino*, de Fortaleza, CE
Sayonara Moreno/Agência Brasil

A teoria transforma-se em poder material logo que se apodera das massas

Karl Marx, Crítica da filosofia do direito

Em 13 de abril, o Brasil contabilizava 1328 mortes por coronavírus e quase 25 mil casos confirmados. Apesar disso existem setores da sociedade que mantém fortemente o apoio ao governo Bolsonaro. Ele possui 33% de aprovação pelo modo como está gerindo a crise sanitária, comprovando que mesmo em meio à pandemia ele foi capaz de manter sua base social que oscila entre 25 e 30% da população. São o que denomino de “bolsonaristas convictos”, com o qual não é possível diálogo algum, pois votaram por convicção em Bolsonaro. Votaram sabendo que ele seria um governo entreguista, irresponsável e com fortes tendências fascistas. Ele era exatamente o que eles queriam.

Essa base conservadora que sustenta socialmente Bolsonaro e que se dispõe a fazer carreatas pelo fim do isolamento social, além do seu conservadorismo, se caracteriza pela profunda desconfiança em relação ao conhecimento e pelo desprezo à universidade pública. Eles tendem a relativizar tudo que a ciência afirma e são céticos em relação ao conhecimento produzido nas Instituições de Ensino Superior (IES). O problema é que esse relativismo e desconfiança que caracterizam a “nova direita” (que de nova não tem nada) podem ter sido alimentados em certa medida por um discurso descuidado de uma parcela da esquerda que tendeu durante as últimas décadas a relativizar o conhecimento e duvidar da razão. Estou falando do discurso pós-moderno.

Com o fim das experiências socialistas na década de 80 e a derrocada da União Soviética em 1991, a esquerda sofreu uma derrota histórica de impacto mundial. A crise do socialismo real levou ao descrédito e crise do marxismo[1], que acabou deixando de ser a principal referência teórica da esquerda. Nos anos 90, ficamos órfãos na teoria e na prática. Precisávamos de uma reorientação teórica, pois não era possível aceitar a tese do “fim da história”, esta não podia ser a única narrativa possível.

Em meio à crise do marxismo e para preencher o vazio teórico existente, a esquerda brasileira foi cada vez mais assumindo um discurso filosófico importado da França que dizia que não existia uma “verdade absoluta”, que toda grande teoria emancipatória levava necessariamente a projetos políticos totalitários e que era preciso valorizar as outras faculdades humanas que haviam sido eclipsadas devido o “autoritarismo da razão iluminista”. A razão era acusada de ser burguesa, conservadora, além de ser avessa ao corpo e a sensibilidade, em suma, seria castradora. A razão, a verdade e a emancipação – aspectos essenciais da herança iluminista da teoria marxista – eram vistas com desconfiança e no lugar das expectativas iluministas da esquerda marxista se propunha uma valorização da sensibilidade, da estética e da resistência.

O discurso que vinha para ocupar o espaço perdido pelo marxismo era o discurso pós-moderno. O que defino como pós-moderno se baseia nas definições de Jean-François Lyotard, para o qual pós-moderno é acima de tudo a “incredulidade em relação às metanarrativas”[2], sendo metanarrativa uma teoria com pretensão de explicação totalizante e de validade universal. Para ele o que existem são múltiplas narrativas, todas com a mesma validade, implicando, portanto, não na negação da verdade (niilismo), mas na defesa da pluralidade de verdades, isto é, na relativização da verdade. Para David Harvey o que mais caracteriza o discurso pós-moderno é a negação de qualquer “noção de que possa haver uma metalinguagem, uma metanarrativa ou uma metateoria mediante as quais todas as coisas possam ser conectadas ou representadas”[3] e consequentemente a negação de qualquer noção de verdade universal. Em síntese, a teoria pós-moderna é acima de tudo relativista do ponto de vista epistemológico. Ela não nega a verdade, ela simplesmente a relativiza. Não existiria uma única verdade, mas a verdade do negro, a verdade da mulher, a verdade do latino, todas silenciadas pela pretensão universalizante da verdade europeia, incluindo aí a “metanarrativa marxista”[4].

Uma parte da esquerda brasileira deixou de lado a tradição marxista e acabou abraçando a teoria pós-moderna. Esse setor da esquerda relativizou o conhecimento, desconfiou da razão e promoveu um perigoso ceticismo em relação à ciência. Os mais diversos pesquisadores das mais diversas áreas onde tal discurso proliferou passaram a advogar o relativismo epistemológico e por isso se tornou comum ouvir nos corredores das universidades, nas conferências e ler nos artigos científicos a relativização do conhecimento científico, dizendo que tudo é válido e que não existe discurso verdadeiro ou falso, mas discursos diferentes. Foram décadas de relativização do conhecimento científico, valorização da opinião em detrimento da ciência e ceticismo em relação à razão. Tal discurso acabou penetrando também nas organizações políticas da esquerda que iam pouco a pouco deixando de lado o marxismo para aderir à última moda parisiense. O marxismo foi considerado ultrapassado e montamos um “museu de grandes novidades” em que era aceito tacitamente como verdade absoluta que “não existe verdade absoluta”.

Foi essa esquerda pós-moderna que foi pega de surpresa quando a extrema-direita teve coragem de sair do armário e dizer inverdades como a que o “nazismo é de esquerda” ou que “não existiu ditadura militar, mas regime militar” etc. Como o discurso pós-moderno que relativiza a verdade pode negar as opiniões dessa direita obscurantista? Afinal pode ser que o nazismo seja de esquerda para eles, é uma verdade “diferente” ou como disse Kellyanne Conway[5] seriam “fatos alternativos”.

A esquerda, sem perceber, preparou em partes o terreno para a “nova direita” brasileira que não deixa de ser uma “direita pós-moderna”[6] que relativiza a verdade e desconfia da ciência. É essa direita, esses 30% da população brasileira que apoiam Bolsonaro, que assumiu o relativismo epistemológico (mesmo sem saber o que diabos é isto) e encontrou uma esquerda desarmada sem saber o que dizer diante de uma opinião falsa, mas que de acordo com seus pressupostos teóricos não podia ser declarada como tal, mas aceita como uma “verdade” inconveniente entre outras, caso contrário seria incoerente. Diante de um setor reacionário e obscurantista que ataca a ciência e a filosofia em favor de teorias da conspiração e que não acredita na verdade nem em evidências científicas, mas apenas na “sua verdade” (leia-se opinião equivocada), a esquerda pós-moderna se viu obrigada a relativizar seu relativismo, anunciando seu canto do cisne.

O lema do jornal do camarada Antônio Gramsci era que a “verdade é revolucionária”, um lema que nada tem a ver com o relativismo pós-moderno que ainda permeia, mesmo que moribundo, uma parcela da esquerda. As consecutivas derrotas que a esquerda brasileira vem sofrendo desde 2013 nos obriga a repensar nossa teoria e nossa prática, principalmente quando o inimigo começa a mobilizar um discurso parecido com o que usávamos hegemonicamente até 2018, quando, a meu ver, o discurso e prática da esquerda pós-moderna chegou ao limite.

Na segunda metade do século XIX na Alemanha se iniciou um movimento filosófico que exigia o retorno a Kant (Zurück zu Kant!). Guardadas as profundas diferenças não estaria na hora de realizarmos nosso retorno a Marx (Zurück zu Marx!)?

* Professor de filosofia do Instituto Federal do Ceará (IFCE) filiado ao PSOL.

Notas:

[1] ANDERSON, A crise da crise do marxismo, p. 22-24.

[2] LYOTARD, O pós-moderno, p. 3.

[3] HARVEY, Condição pós-moderna, p. 49.

[4] LYOTARD, O pós-moderno, p. 65-66.

[5] Assessora de comunicação de Donald Trump.

[6] Cujo maior representante seria justamente o mentiroso compulsivo Olavo de Carvalho. Vide:. https://outraspalavras.net/outrasmidias/por-que-a-direita-escolheu-olavo-de-carvalho/.