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BRASIL

Ciência e política em confluência: Covid-19 e futuros medicamentos

Bernardo Boris Vargaftig*, São Paulo, SP.
ScientificAnimations.com/Wikimedia Commons

A pandemia do Covid-19 tornou-se, além de drama sanitário, um escândalo político, graças às declarações estapafúrdias do Presidente Jair Bolsonaro. Este fora eleito pela estranha aliança de um setor dos mais pobres com os mais ricos. De fato, o programa ultraliberal recebeu o apoio involuntário de um setor popular enraivecido pelo fracasso da política de aliança de classes do PT, consequência da queda das vendas do agronegócio, até então aliado de Lula, à China.

Lembro que Hitler ganhou poder em 1933 na Alemanha através de uma aliança parecida, onde o nazifascismo, que a grande burguesia conservadora e militarista relutava em apoiar, subitamente tornou-se o mal menor. Sabemos o que aconteceu nos 12 anos seguintes e que, até o final em 1945, a maioria da população ainda apoiava Hitler.

Até agora, a luta contra o Covid-19 emprega métodos sanitários de higienização e de confinamento das populações, política essa prescrita pelos ciência e pela intervenção dos epidemiologistas. Os tratamentos modernos dependem de práticas e aparelhagem complexa, são obrigatórios e são o oposto do que está sendo pregado pela área federal, que prefere sacrificar a saúde e a vida das populações ao prejuízo material. Ao final, ao persistirem, teremos ambos, as mortes e o desastre econômico.

Todos se interrogam, entretanto, sobre o porquê da inexistência de medicação que suprima a moléstia, eliminando o vírus.

Os coronavírus formam a terceira causa de infecção respiratória viral. São os maiores vírus a ácido ribonucleico (ARN), identificados em 1965 e descritos em 1967. Como o SARS, que em 2003 teria provocado 880 mortes antes de desaparecer bruscamente no verão, o Covid-19 surgiu em dezembro de 2019, em Wuhan, na China, sob forma de pneumonia. Os chineses conseguiram, em curtíssimo tempo, descobrir o vírus, testar sua sensibilidade a medicamentos e afinar as técnicas de diagnóstico. Talvez o depositário viral seja constituído por animais selvagens lá consumidos, como os morcegos – passando do morcego para felinos e canídeos e depois para os humanos.

As infecções respiratórias bacterianas e virais, algumas das quais causadas por outros coronavírus, causaram a morte de 4.5 milhões de pessoas há 30 anos e hoje matam 2.6 milhões, devido à melhora das condições higiênicas e do uso amplo de antibióticos.

A nenhum destes foi atribuída atividade contra o Covid-19, mas recentemente a equipe de Didier Raoualt, em Marselha, França, reportou efeitos na redução e até mesmo supressão da chamada carga viral – quantidade de vírus no sangue dos pacientes – com o antipalúdico hidroxicloroquina, o que foi criticado pelos especialistas por se tratar de grupo pequeno de pacientes, com ausência de grupo placebo (P. Colson, Rolain, J. M., Raoualt D., Chloriquines for the 2019 novel coronavirus, IJAA, fevereiro de 2020).

A hidroxicloroquina é também utilizada contra o lúpus eritematoso, moléstia autoimune muito grave. Sua toxicidade e as doses eficazes são bem conhecidas. Aliás, contrariamente ao uso prolongado no lúpus, os resultados preliminares da equipe de Marselha apontam para um uso por dias, quando os efeitos colaterais são minimizados. Esta modalidade de tratamento integra agora um ensaio clínico europeu denominado Discovery, iniciado em 22 de março. Os primeiros resultados são esperados em abril. Um estudo da OMS (Solidarity) também estaria em curso. Outros, como o laboratório VirPath em Lyon, também na França, avaliaram diversas moléculas disponíveis, e teriam identificado uma que aumenta os efeitos benéficos dos anti-virais.

O recente sequenciamento genético do novo coronavirus – determinação da sequência de amino-ácidos em sua molécula – por cientistas brasileiros em dezenove pacientes, mostra que o vírus já sofreu mutações no país, com características distintas dos coronavírus introduzidos. As mutações reforçam a necessidade da quarentena, o que vem sendo negado por Jair Bolsonaro. Ele  alega que não se pode deixar o país quebrar por causa de uma “gripezinha”, e que o confinamento vertical é o modelo suficiente.

Outras pesquisas avaliam o uso de anticorpos monoclonais, produzidos por métodos de engenharia genética que reconhecem parte da estrutura viral responsável pela entrada do virus nas células.

Certamente serão desobertos procedimentos e moléculas de uso terapêutico. Enquanto isto não ocorre, é preciso notar algumas conclusões do drama em curso.

Assim, a estrutura desenvolvida pela pesquisa brasileira ganhou solidez com o passar dos anos e os esforços de financiamento. Qualquer interrupção, como os absurdos cortes dos créditos de pesquisa e do ensino superior, interromperão fatalmente este processo: o que não avança, recua ou cai. Qualquer ciclista sabe que se a bicicleta parar, cai. Na pesquisa, perde-se todo esforço passado e o poder de enfrentamento de desafios novos e súbitos enfraquece.

O exemplo em curso é revelador. Uma política de desenvolvimento deve prosseguir a despeito das dificuldades. Lembremos que existem fontes alternativas para cobrir os déficits anunciados, como a taxação dos lucros indecentes dos grandes bancos e empresas, ou mesmo sua estatização, imposição fiscal das grandes fortunas, imposto sobre herança etc. Em seu lugar, foi até proposto não pagar salarios dos trabalhadores por quarto meses.! A pandemia se dá num contexto social regressivo que deve ser denunciado. Saúde (e ensino) e situação social estão intimamente conectados.

Nesse sentido, muitos cientistas afirmam: “o capitalismo acolherá novas epidemias”.

 

* Professor senior do Departamento de Farmacologia – Instituto de Ciências Biomédicas (ICB)/USP.

Essas reflexões foram compartilhadas com o imunologista professor Momtchilo Russo.

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