Quando se fala em Visibilidade Lésbica, é preciso considerar também as mulheres que são marginalizadas até mesmo entre as mulheres que se atraem por mulheres. Estou falando em particular das mulheres trans, das bissexuais, pansexuais e polissexuais [1]. Todas nós, mulheres que nos atraímos por mulheres (mesmo que não exclusivamente) temos o direito de dizer que somos sapas e que moramos no brejo. Esse texto é sobre isso.
Quero deixar nítido que pessoas heterossexuais não devem utilizar termos como ‘bicha’ e ‘sapatão’. São termos que foram criados com o intuito de ofender. Só uma pessoa que fala de si mesma como ‘bicha’ ou ‘sapatão’ pode referir-se a outras pessoas pelo mesmo termo, pois nesse caso ele perde o sentido ofensivo.
Visibilidade Lésbica também é sobre as mulheres bi, pan e polissexuais
Em 1983, havia um bar em São Paulo que era muito frequentado por muitas mulheres lésbicas. Ao mesmo tempo, o dono do bar proibiu que se distribuíssem o boletim ‘Chana com Chana’, que travata da vivência das mulheres lésbicas, o que levou inclusive a algumas agressões lesbofóbicas. O grupo que editava o boletim, o GALF (Grupo de Ação Lésbica Feminista), organizou um evento, levando centenas de mulheres a ocuparem o bar no dia 19 de agosto, evento que depois ficou conhecido como “pequeno Stonewall brasileiro” e que marca o Dia do Orgulho Lésbico.
Uma década depois, em 29 de agosto de 1993, ocorreu o primeiro Seminário Nacional de Mulheres Lésbicas (Senale), o que deu origem ao Dia da Visibilidade Lésbica.
Vale destacar que, na época da ditadura, não se fazia distinção entre homossexuais e bissexuais. Mulheres que ficavam com mulheres eram todas chamadas lésbicas, ainda que parte delas não ficasse exclusivamente com mulheres.
A sigla LGB, por exemplo, surgiu em meados de 1980 nos Estados Unidos, enquanto que, no Brasil, na década de 1990 ainda se utilizava a sigla GLS (que, na verdade, foi criada pelo mercado, não pelo movimento).
Assim, considerar que o Orgulho Lésbico e a Visibilidade Lésbica também se tratam das mulheres não-monossexuais [2] tem motivação política e histórica. Vale destacar que o adjetivo ‘lésbico’ também pode se referir a algo que diz respeito a atração entre duas mulheres. Por exemplo, um casal de duas mulheres é um casal lésbico, ainda que, por exemplo, ambas sejam bissexuais. Da mesma forma, Visibilidade Lésbica se refere à visibilidade de todas as mulheres que se atraem por mulheres, mesmo que de forma não-exclusiva.
Orientação sexual, identidade de gênero e genitália são três coisas distintas
Nós, mulheres trans, somos mulheres porque nos identificamos assim. Isso é identidade de gênero, que é diferente de orientação sexual (que é por quem a gente se atrai). No senso comum, as travestis e mulheres transexuais são “gays muito gays” e eu nunca me vi como gay (porque raramente me atraio por um homem). Isso dificultou muito minha própria identificação como sendo uma mulher transgênero. Ao mesmo tempo, nunca me senti confortável vivendo o papel social masculino, sendo vista e tratada como homem.
Ressalto que a atração (seja afetiva ou sexual) não tem nada a ver com a genitália das pessoas. Quando nos atraímos por alguém, não é por causa da genitália – geralmente o contato com a genitália vem bem depois da atração. Nesse sentido, o senso comum faz uma confusão danada a ponto de achar que, por exemplo, é impossível que uma mulher lésbica sinta atração (inclusive sexual) por uma mulher trans. Sinceramente, na hora do vamos ver, a gente se vira.
[Inclusive inúmeros homens héteros, até “homens de bem” e “pais de família”, secretamente procuram travestis trabalhadoras do sexo.]
Sou sapatão, sim!
Não me identifico como mulher lésbica porque não sou monossexual – não sinto atração por homens, mas sinto atração por pessoas de gênero não-binário, por isso sou polissexual. Infelizmente, existe uma certa resistência de se aceitar que o termo ‘sapatão’ seja reivindicado por mulheres não-monossexuais.
Engraçado que o termo ‘bicha’ (que tem um sentido mais ou menos análogo) é utilizado por alguns homens bissexuais, até algumas travestis e mulheres trans – nesses contextos, não é considerado sinônimo de ‘homem gay’. Por outro lado, existem mulheres trans, travestis e homens bissexuais que não gostam desse termo, e não tem problema nenhum nisso. Identidade é algo muito individual.
Da mesma forma, existem algumas mulheres bissexuais que se referem a si mesmas como sapatão, mas o apagamento das mulheres bissexuais é mais intenso que o dos homens bissexuais. Daí, por exemplo, uma mulher bissexual se diz sapatão e logo a cidade toda pensa que ela é (e diz ser) lésbica. O mesmo acontece também com pan e polissexuais. Isso acaba gerando uma reação defensiva: “só mulher lésbica pode ser chamada de sapatão”.
Na prática, a identidade ‘sapatão’ é usada por mulheres não-monossexuais, mas isso é considerado “extraoficial”. Pelo contrário, devemos entender que esse uso é legítimo – tanto quanto, por exemplo, que travestis chamem a si mesmas e umas às outras de bichas.
A grande contradição é que, no brejo, as sapas dizem que a Ana Carolina é sapatão. Ela tem uma música que diz: “Eu gosto de homens e de mulheres”. Ora se a Ana Carolina pode, eu também posso e qualquer mulher não-hétero pode dizer: eu também sou sapatão.
Comentários