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OPRESSÕES

Orgulho Lésbico: A memória da revolta do Ferro’s Bar e reflexões para as lésbicas do presente

Fanny Spina França

Chegamos a semana da visibilidade e orgulho lésbica, mas para que marcar um dia para dizermos que temos orgulhos da nossa existência lésbica é importante? Pois somos encobertas pelo manto da invisibilidade do patriarcado, afinal por que se daria eco para as mulheres que se recusam a cumprir o seu papel dentro da reprodução social? Afirmar-se lésbica é para além de uma prática sexual, ser lésbica é carregar cotidianamente a subversão ao sistema no qual um do seus tripés é ancorado na submissão da mulher ao homem. Demonstrarmos nosso orgulho é também evidenciarmos que a trilha natural da vida de uma mulher não é a heterossexualidade, que mulheres que amam outras mulheres existem, e isto não as tornam menos realizadas. Por essa subversão encobertas pelos rótulos do pecado, doença e crime, termos um dia do Orgulho Lésbico nos permite destruir estes rótulos e criar significados mais positivos para a existência lesbiana.

A história da data tem origem com a Revolta do Ferro’s Bar, que ocorreu em 19 de agosto de 1983. Durante a década de 1980 em São Paulo existia o Grupo de Ação Lésbica Feminista (1979 – 1989), o GALF, protagonista do evento que marca no Brasil o dia do Orgulho Lésbico. No ano de 1983 na cidade de São Paulo um grupo de mulheres lésbicas protagonizaram essa mobilização que ficou conhecida como o “pequeno Stonewall brasileiro”, descrição dada pelo Jornal O Lampião da Esquina. O episódio desencadeado pelas agressões que as ativistas do GALF sofriam quando iam vender o boletim que elas editavam o Chana com Chana, para os donos do Ferro’s Bar. As lésbicas só eram aceitas em seu estabelecimento enquanto clientes que consumiam, porém inadmissíveis quando se mobilizavam  e debatiam politicamente. Então, como resposta a estas agressões, elas organizaram um happening levando centenas de pessoas a comparecerem no Ferro’s Bar.

O GALF e o Chana com Chana são uma importante parte da história do movimento LGBTIA+ do Brasil, bem como são importantes para o debate da redemocratização no país. Haja visto que estiveram conjuntamente em diversas mobilizações de luta contra o regime militar, somando forças com o movimento negro, feminista, estudantil e sindical, como o 1o de maio de 1980 no ABC, a passeata contra violência policial no Teatro Municipal de São Paulo e o engajamento nas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte em 1987. Para as lésbicas do GALF uma democracia só estaria de fato completa quando não existissem as amarras do machismo, racismo e da heterossexualidade compulsória.

Passados 37 anos da Revolta do Ferro’s Bar precisamos recuperar esta importante memória e tirarmos algumas reflexões. A primeira é a necessidade de lutarmos contra a política autoritária e repressiva, no caso elas lutavam pelo fim da ditadura civil-militar (1964 – 1985), regime que aperfeiçoou as fórmulas de controle político, social e sexual. E nós hoje nos empenhamos na luta contra o governo Bolsonaro que tem nítidas intenções autoritárias e antidemocráticas, e dentre a sua extensa lista de inimigas/os estão as LGBTIA+. Por isso é necessário que a gente engaje na luta contra o projeto neofascista, que tem como seus principais alvos tudo que foge da configuração de “cidadão de bem”, branco, heterossexual e cisgênero. 

Nos anos de 1980 os movimentos LGBTIA+ se unificaram com os movimentos negros para denunciar a violência policial, a passeata em frente ao teatro Municipal de São Paulo em 13 de junho de 1980 é fruto dessa denúncia. Hoje no Brasil temos a polícia mais letal do mundo, que ceifam vidas com números idênticos a de uma guerra, que nas periferias tem assassinado sem distinção de gênero, sexualidade e idade, como é o caso de Luana Barbosa e de tantas outras as quais ainda lutamos por justiça. Por isso devemos nos colocar conjuntamente com os movimentos antirracistas lutando contra o genocídio da população negra e periférica, pela desmilitarização da polícia.

Outro legado importante deixado por elas é a importância de construir uma luta conjunta com os setores oprimidos da sociedade, compreendendo as especificidades, mas sabendo que a união destes segmentos é potência para se apontar para a transformação. O GALF entendia que era necessário superar o gueto e para isso construía pontes de diálogos com diversos movimentos  – feminista, homossexual, negro, estudantil, ambiental etc – isso para englobar uma luta em defesa de seus direitos sociais e democráticos. Temos que combater a dispersão entre aquelas/es que estão na mesma trincheira nós, como diz o bordão: “devemos ser diversas, não dispersas”! Afinal todas as faces dos nossos inimigos se concentram unificadas no sistema capitalista, portanto para nós hoje é fundamental darmos um passo à frente e entender que a luta anticapitalista é estratégica para podermos desmantelar o que sustenta as opressões existentes.

Nós lésbicas existimos e resistimos através de nossa memórias das que nos antecederam e não abaixaram a cabeça para o que o patriarcado impõe. Recuperar esta memória das mulheres lésbicas e importante para nossa autoafirmação enquanto sujeitas políticas, para podermos aprender com as lições do passado e avançarmos em nossas tarefas e lutas.  Que nesse dia a gente se encha de orgulho da nossa (r)existência e, também, que nos dê ânimo para os desafios e lutas que estão colocados.