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OPRESSÕES

8 pontos para a elaboração de um programa LGBTI+ sob uma visão de mundo socialista

Lucas Marques, de São Paulo (SP)
Fernando Frazão/Agência Brasil

1. O marxismo revolucionário compreende o gênero e a sexualidade humanos como produtos da história, que assumiram as mais diversas formas e conteúdos nas mais diversas sociedades humanas. Desde o surgimento da propriedade privada, os papéis de gênero são parte fundamental da divisão do trabalho social, ganhando contornos cada vez mais opressivos e coercitivos.

As identidades sexuais e de gênero tais como as conhecemos hoje são fruto das condições sociais produzidas pela consolidação do modo de produção capitalista. A família nuclear, nas sociedades pré-capitalistas, era a unidade fundamental da produção, da qual os indivíduos dependiam para sobreviver. Com o surgimento do trabalho assalariado e o caráter cada vez mais socializado da produção de bens (mercadorias), a vida fora da família se tornou possível e, com isso, as identidades LGBTI+ também. A sexualidade se libertou materialmente do imperativo da procriação e conforme avançou o modo de produção capitalista nas diversas sociedades do mundo, avançaram as condições para o surgimento das identidades LGBTI+ tal como conhecemos.

Existe uma dimensão particular que tange a opressão moderna das LGBTI+, vanguarda da luta por sua própria emancipação, sob a bandeira de um programa revolucionário. Este projeto emancipatório é parte de um todo: no que toca à repressão das diversas expressões de gênero e sexualidade humanos, tratamos de um problema universalizante, que aflige o conjunto da humanidade. O sujeito social da liberação sexual é a classe trabalhadora e seu sujeito político o partido revolucionário.

2. O mesmo capitalismo que criou as condições de nossa existência e também as condições da liberação sexual da humanidade, se tornou o maior obstáculo para a concretização desse objetivo. De unidade fundamental da produção, a família nuclear passou ao papel de unidade fundamental de reprodução da vida social. O capitalismo depende da família para produzir a única mercadoria capaz de gerar valor: a força de trabalho. O cuidado da vida humana é o nexo entre o trabalho doméstico não pago e a produção mercantil. Esse nexo é invisibilizado em prol do ocultamento da realidade de que os salários pagos não são capazes de repor a reprodução da força de trabalho. O trabalho doméstico e de cuidado não remunerado representa entre 10% e 39% do PIB dos países de acordo com as nações unidas. Esse trabalho é exercido majoritariamente por mulheres, especialmente as racializadas, no âmbito da família e é uma estrutura social da qual o capitalismo não é capaz de prescindir economicamente, politicamente e ideologicamente.

A sociedade é organizada de forma que a família é o meio através do qual será perpetuada a organização social em classes e serão satisfeitas necessidades básicas humanas de toda sorte. Seu pressuposto é a norma heterossexual e cisgênera, o que a torna opressiva para qualquer pessoa que se desvie dessa norma.

Um dos pressupostos fundamentais do marxismo revolucionário é o fim da família nuclear burguesa. Mas isso não significa a destruição dos laços afetivos entre os seres humanos, entre pais e filhos, entre irmãos. Os revolucionários querem destruir a família nuclear burguesa, hetero-cis-normativa, uma instituição violenta, em especial, para mulheres, crianças e LGBTI+. Os revolucionários querem ampliar a concepção de amor, reconfigurar os afetos, revolucionar a relação entre as pessoas. Querem construir a sociedade da reprodução socializada, do amor livre, da livre expressão de gênero e sexualidade. A família atual deve ser destruída porque é estreita. Não cabe nela a potencialidade humana. Deve ser destruída por ser ferramenta do capital para perpetuar a exploração e opressão da classe trabalhadora.

3. O materialismo histórico dialético reconhece o caráter social não apenas do gênero, mas também do sexo. A própria noção da existência de dois sexos é historicamente datada: remonta à revolução industrial no século XIX. Durante a idade média, na Europa, por exemplo, havia a noção de que existia apenas um único sexo e que masculino e feminino eram duas dimensões desse mesmo sexo.

Mesmo enquanto expressão da biologia, a noção da existência de dois sexos é frágil, os corpos humanos são extremamente diversos. Os sentidos que damos aos corpos são históricos e sociais, não existe atribuição de sentido que não seja profundamente humana.

Cerca de 2% dos seres humanos são intersexo, possuem características sexuais que não se enquadrariam no que entende-se como masculino ou feminino. Essas pessoas são submetidas a todo tipo de violência que vai desde a imposição de um gênero arbitrário, até uma série de mutilações genitais na infância.

Os revolucionários devem defender a expressão e existência do sexo humano em toda a sua diversidade, se opondo a toda violência aos corpos fora da norma binária sexo-gênero.

4. Tal como expresso no ponto 1, entendendo que gênero e sexualidade possuem caráter social e histórico, devemos entender, também, que a noção da cisgeneridade e da heterossexualidade como universais contra a particularidade do que “sai da norma” é produto de uma mistificação, de um fetiche, que naturaliza (des-historiciza) determinado padrão de comportamento humano. A norma é produto da história e não de uma suposta natureza humana.

Os revolucionários lutam por destruir a cisgeneridade e a heterossexualidade enquanto normas. Nosso objetivo, em última instância, não é enquadrar a luta pela emancipação das LGBTI+ no sistema sexo-gênero tal qual estabelecido, para que “caibam na norma”, mas a destruição dessa norma junto às demais instituições capitalistas decadentes.

5. O capitalismo se impôs como sistema dominante em todo planeta. Ainda que haja sociedades que não vivem propriamente sob o modo de produção capitalista, o capitalismo é um sistema internacional e que oprime e explora o conjunto dos povos. Sob este ponto de vista, não existe país no planeta em que não haja opressão contra as LGBTI+, muito menos em que a sexualidade e a identidade de gênero dos seres humanos se expresse plenamente. Existem variações no grau de perseguição ou de aceitação, mas a opressão existe em todo o planeta.

As normas de gênero e sexualidade, bem como o formato de família predominante nas sociedades ocidentais foram uma imposição colonial a sociedades nas quais os papéis de gênero, as normas sexuais e a reprodução social eram organizados de outras formas.

Os países de economia dependente não dispõem dos mesmos recursos, nem projeto político, para implementar políticas de estado de bem estar que os países imperialistas que possam afrouxar as correntes do jugo da família sobre as LGBTI+.

A opressão das LGBTI+ é internacional, sua luta também deve ser. A nossa luta também deve ser anti-imperialista, pela autodeterminação dos povos, devemos defender a solidariedade internacional para com os oprimidos do mundo. Estamos com as LGBTI+ palestinas contra o apartheid israelense, entre outros exemplos. 

6. Defendemos a unidade do movimento das LGBTI+ com o movimento e as lutas mais gerais do conjunto da classe trabalhadora. O projeto da revolução socialista internacional é um projeto universalista – o interesse histórico do conjunto da classe trabalhadora. Mas a classe trabalhadora não é homogênea, ela é diversa. O programa capaz de unificar a classe sob um projeto universal deve ser capaz de abarcar a diversidade sob uma visão de totalidade. Para dar cabo das tarefas históricas de nossa classe, devemos apresentar um programa socialista para emancipação das oprimidas.

Ao mesmo tempo, entendemos que o capitalismo subsume o conjunto das relações sociais, compondo uma totalidade articulada que ultrapassa as relações de produção propriamente. Por mais que seja possível promover reformas que melhorem a vida das oprimidas, o capitalismo não prescinde do papel da família para a reprodução social ou da estrutura que promove a superexploração das oprimidas (em especial nos países de economia dependente). Não é possível acabar com a LGBTIfobia sob o capitalismo, portanto a unidade com a classe trabalhadora sob um projeto de emancipação universal é imprescindível.

7. Defendemos a necessidade da auto-organização das LGBTI+ por suas demandas. A história demonstrou essa necessidade e os riscos de deformação de qualquer projeto de transição ao socialismo que não coloque sua centralidade. O capitalismo dispõe de mecanismos que mistificam as relações sociais e tornam imprescindível a organização de quem efetivamente sofre a opressão para a luta política. A opressão não pode ser superada sem auto-organização.

8. Parte do nosso projeto de emancipação deve ser pela liberdade e segurança para que todes possam vivenciar sua sexualidade, em especial os jovens. Educação sexual é um dos pilares fundamentais: entender o que é consentimento e ter uma relação cada vez mais desalienada com nossos corpos. Além disso, são necessárias condições materiais para que haja autonomia efetiva sobre nossos corpos: isso passa, necessariamente, pela socialização da reprodução social (e por medidas que caminhem nesse sentido).

* Lucas Marques é do Núcleo LGBTI+ da regional São Paulo da Resistência/PSOL, da equipe da Bancada Feminista estadual e da Equipe nacional LGBTI+