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BRASIL

ADI 6050: a hora da verdade para o reconhecimento da condição humana de nossas heroínas e nossos heróis

Jorge Luiz Souto Maior, de São Paulo, SP

No Brasil da pandemia foi impossível a todos os segmentos da sociedade não deixar de reconhecer a essencialidade do trabalho humano, vez que sem o trabalho a economia quase pereceu completamente e a riqueza não se realizou, sendo certo que aquela que se conseguiu produzir, com a redução da eficácia dos mecanismos jurídicos de distribuição e sem as possibilidades concretas de uma maior circulação de mercadorias, restou acumulada nas mãos de alguns poucos, bem poucos.

Mas não só isto. Constatou-se, também de forma inevitável, o quanto a continuidade do trabalho, em atividades essenciais, realizado por milhões de trabalhadores e trabalhadoras, atuando com altíssimo grau de risco, foi fundamental para salvar vidas.

Por conta disso, chegou-se até mesmo ao efeito concreto da população em geral tratar trabalhadoras e trabalhadores como heroínas e heróis, destacando-se, neste reconhecimento público, as trabalhadoras e trabalhadores da saúde e os entregadores.

Vários foram as campanhas midiáticas para a formulação de agradecimentos às trabalhadoras e aos trabalhadores pelo seu trabalho, tendo se verificado, inclusive, cenas de pessoas aplaudindo profissionais durante a execução de suas atividades.

Mas de que trabalhadoras e trabalhadores se tratava? Na sua quase totalidade, eram aqueles e aquelas que, historicamente, se viram conduzidos a uma situação de precariedade no trabalho e de exclusão social, tais como: técnicos(as) de enfermagem; maqueiros(as); motoristas de ambulância; “pessoal” da limpeza; enfermeiras(os); terceirizados(as); entregadores(as) em geral, sobretudo por intermédio de aplicativos; frentistas; porteiras(os) de edifícios; atendentes em farmácias, hospitais, padarias e supermercados; faxineiras(os); motoristas; carregadoras(es); coletoras(es) de lixo; trabalhadoras(es) rurais; cuidadoras(es); trabalhadoras domésticas…

Por um raciocínio óbvio e lógico, a lição que se esperava extrair dessa situação era uma reformulação em torno da valorização jurídica e cultural do trabalho e da condição humana de quem trabalha, até porque, como lembrado em outro texto[1], estes trabalhadores e trabalhadoras “são pobres, negros e, em grande parte, mulheres negras, com histórico de vedação aos direitos sociais fundamentais mínimos, notadamente: educação pública de qualidade, saúde pública plena e eficiente, e moradia”.

O ponto de partida desta necessária virada seria (e ainda é) “a urgente revogação das ‘reformas’ trabalhista e previdenciária”, pois desde que a “reforma” trabalhista entrou em vigor, em novembro de 2017, houve considerável aumento do “número de pessoas no trabalho informal (em janeiro de 2020, 24,5 milhões) e que dos empregos criados 15% foram para o trabalho intermitente (e que hoje, certamente, estão sem trabalho e renda), isto sem falar dos 4,7 milhões de desalentados e da ‘informalidade na formalidade’ (do emprego sem direitos) praticada nas relações de emprego com carteira assinada, o que se dá por falta da existência de um Ministério do Trabalho como órgão independente de fiscalização das relações de trabalho”[2].

Mas não só isso. Seria necessário (e ainda é), prioritariamente, não aumentar o sofrimento dessas pessoas.

Neste último aspecto, o STF, em 17/04/20, julgando a ADI 6.363, não se houve bem e, sob o enganoso argumento da excepcionalidade da pandemia, manteve a eficácia da regra da Medida Provisória (MP) 936/2020 que autorizava a redução da jornada de trabalho e do salário e a suspensão temporária do contrato de trabalho por meio de acordos individuais, ou seja, sem a necessidade de negociação coletiva, como preconiza, expressamente, a Constituição Federal.

Por outro lado, apreciando as ADIs 6.342, 6.344, 6.346, 6.348, 6.349, 6.352 e 6.354, em 29/04/20, o mesmo STF se viu obrigado a reconhecer os despropósitos da onda avassaladora da exploração sem limites (ainda mais em situação de crise humanitária) e suspendeu a vigência dos artigos 29 e 31 da MP 927 que puniam ainda mais aqueles e aquelas que se mantiveram em atividade na pandemia. O primeiro dizia, expressamente, que os casos de contaminação pelo coronavírus (COVID-19) não seriam considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal. E o segundo interrompia por 180 dias a atualização punitiva da auditoria-fiscal do trabalho, mantendo-se apenas um caráter de orientação, a não ser em certas situações especificadas na própria MP.

E por falar dos questionamentos jurídicos que se promoveram no STF com relação à “reforma” trabalhista, bem antes disso, no dia 29 de maio de 2019, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria de votos, apreciando a ADI 5938, já havia declarado a inconstitucionalidade dos dispositivos da “reforma” (Lei n. 13.467/2017) que admitiam a possibilidade de trabalhadoras grávidas e lactantes desempenharem atividades insalubres em algumas hipóteses.

Agora, na última quarta-feira, dia 20/10/21, o STF, no julgamento da ADI 5766, por 6 votos (Ricardo Lewandowiski, Dias Toffoli, Rosa Weber, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Edson Fachin) a 4 (Gilmar Mendes, Luís Barroso, Luiz Fux e Nunes Marques) declarou a inconstitucionalidade (sem qualquer tipo de adaptação de texto) de mais três normas da Lei n. 13.467/17, a denominada “reforma” trabalhista: o artigo 790-B caput, o § 4o do art. 790-B e o §4o. do art. 791-A da CLT, que visavam punir ainda mais os trabalhadores e trabalhadoras, impondo-lhes o custo do pagamento de honorários advocatícios, mesmo quando declarados pobres e, por conseguinte, obtinham os benefícios da justiça gratuita.

Tudo isto para dizer que a decisão a ser proferida na ADI 6.050(*), que está em pauta, vai representar, efetivamente, a hora da verdade sobre como ficará para a história o agradecimento às trabalhadoras e aos trabalhadores pelo trabalho exercido na pandemia e fora dela.

O dispositivo questionado na referida ADI é o art. 223-G da “reforma” trabalhista que, em seu § 1º, estabelece um limite para a fixação de indenizações por dano moral nas relações de emprego.

O art. 223-G não apenas traz uma pré-fixação dos valores das indenizações por dano moral como também estabelece que o cálculo das indenizações será feio a partir do salário recebido pelo(a) empregado(a).

O dispositivo em questão, portanto, fere frontalmente o princípio constitucional fundamental da isonomia, extraído do “caput” do art. 5º da CF, que preconiza que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.

Qualquer diferenciação jurídica entre as pessoas só se justifica para a correção das desigualdades materiais, de modo a garantir a igualdade.

O art. 223-G da CLT, trazido pelo reformador trabalhista em sua ânsia de atender aos interesses econômicos específicos, de fato, estabeleceu um rebaixamento da condição humana dos trabalhadores e trabalhadoras na comparação com todos os demais cidadãos e cidadãs, isto porque, como se trata de uma reparação extrapatrimonial, ligada, pois, aos direitos de personalidade, não é possível juridicamente fazer esta diferenciação.

Lembre-se que à generalidade das pessoas aplica-se o princípio da reparação integral, sem qualquer predeterminação de valor, conforme estabelecido nos artigos 186, 187, 927 e 944 do Código Civil.

Se o art. 223-G da CLT pudesse ser aplicado criar-se-ia a esdrúxula situação de que a relação de emprego se transformaria em um fator de rebaixamento da condição humana. Nesta hipótese, exemplificativamente, caso duas pessoas fossem vítimas de um mesmo ato, sendo uma delas, um empregado, e a outra, um prestador de serviços sem vínculo empregatício, se chegaria ao efeito de que para o empregado a indenização seria bem menor que a do prestador de serviços, valendo lembrar que o art. 223-G limita a indenização ao montante de 50 vezes o valor do salário da vítima (empregado).

O fato concreto é que, na hora “h”, ou seja, no momento de efetivamente se reconhecer a relevância do ser humano trabalhador(a) e lhe agradecer pela atividade que salvou incontáveis vivas, a aplicação do art. 223-G seria uma espécie de traição, além, é claro, de representar uma grave violação de preceitos constitucionais.

Lembre-se, a propósito, como destaca Renan Binotto Zaramelo[3], que “Em situações análogas a analisada o Supremo já se posicionou no sentido de que tarifações prévias não encontram aderência ao texto constitucional, como quando da análise do recurso extraordinário 447.584-7-RJ17 em que se discutia a subsistência da norma prevista no artigo 52 da lei 5.250/67, popularmente alcunhada de ‘Lei de Imprensa’.”

Segundo informação trazida no texto de Zaramelo o pleno do STF se manifestou, no mesmo sentido, no julgamento da ADPF 130-DF18, em consonância com o que já vinha assente na Súmula 281 do STJ: “A indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na Lei de Imprensa”.

Bem se vê que a declaração da inconstitucionalidade do rebaixamento da condição humana de trabalhadores e trabalhadoras proposto pela “reforma” trabalhista é um passo jurídico inevitável e necessário, ainda mais se consideramos que, em concreto, conforme revelado em diversos estudos[4], foram estas pessoas (e, por consequência, também seus familiares) as que mais sofreram e ainda sofrem as consequências nefastas da pandemia, sendo certo que isto se deu, sobretudo, tanto por conta da insegurança jurídica, a pauperização e a informalidade a que foram conduzidas pela “reforma” trabalhista, quanto pelas fórmulas de aprofundamento da exploração trazidas, em tons de oportunismo econômico-político-eleitoral, pelas MPs 927 e 936.

Há ninguém é dado olvidar que quase 14 mil profissionais da saúde perderam a vida durante a pandemia no Brasil e que e tantos outros (incontáveis) vão se submeter às sequelas da doença, sendo certo que o trabalho precário (nos setores público e privado) se tornou a regra para estes profissionais, envolvidos em relações jurídicas marcadas pela pejotização (a transformação fraudulenta do trabalhador em pessoa jurídica, para afastar a relação de emprego), a terceirização (sem as mesmas garantias jurídicas) e o trabalho em regime de 12×36.

É extremamente importante consignar que a piora das condições de vida dos trabalhadores e trabalhadoras em geral só vem aumentando e a informalidade, comprovadamente, foi responsável por um maior número de contágio e de mortes por COVID-19[5]. Lembrando que, em 2016, mesmo no auge da crise, havia no Brasil 10 milhões de trabalhadores na informalidade[6], que este número, em agosto de 2021, saltou para 35,6 milhões[7], e que a contratação por intermédio do trabalho intermitente praticamente triplicou no período da pandemia em diversas regiões do país[8], sendo certo este tipo de contratação, embora, estatisticamente, esteja inserido nos registros de trabalho com carteira assinada, é, na verdade, um tipo de trabalho precário (e, porque não dizer, informal), não se pode deixar de destacar que a morte de milhares de pessoas acabou se consagrando como um dos principais legados da “reforma” – o que só não se vê pelas mesmas irracionalidades que move negacionismo, em sua escalada contra o enfrentamento científico do novo coronavírus, por meio do distanciamento, do uso de máscaras e álcool em gel e da vacinação.

Seria, pois, uma enorme atrocidade e um descaso para com a historicidade dos valores mundialmente ligados à consagração dos Direitos Humanos, além de ser um grave erro técnico jurídico, contrariando, inclusive, jurisprudência nacional consolidada a respeito, dizer que o art. 223-G da CLT está em conformidade com a Constituição Federal.

Vejamos!

São Paulo, 24 de outubro de 2021.

NOTAS
(*) Ação proposta pela ANAMATRA ao tempo em que era seu presidente o juiz Guilherme Guimarães Feliciano – nota acrescida ao texto em 25/10/21.
[1]. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “Aos trabalhadores e trabalhadoras o agradecimento devido”. Disponível em: https://www.jorgesoutomaior.com/blog/aos-trabalhadores-e-trabalhadoras-o-agradecimento-devido
[2]. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “Que a doença nos cure”. Disponível em: https://www.jorgesoutomaior.com/blog/que-a-doenca-nos-cure-ha-esperanca
[3]. ZARAMELO, Renan Binoto, “Dano moral trabalhista: A inconstitucionalidade da tarifação celetista”. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/342125/dano-moral-trabalhista-a-inconstitucionalidade-da-tarifacao-celetista
[4]http://www.cesteh.ensp.fiocruz.br/noticias/pandemia-do-novo-coronavirus-os-trabalhadores-sob-o-tacao-de-ferro-e-necessidade-da
[5]http://www.ugt.org.br/index.php/post/26029-Pesquisa-mostra-que-trabalho-informal-eleva-contagio-e-morte-por-Covid-19-no-Brasil
[6]https://epocanegocios.globo.com/Economia/noticia/2016/08/trabalhadores-informais-chegam-10-milhoes-no-brasil.html
[7]https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2021/08/31/trabalhadores-informais-segundo-trimestre-ibge.htm
[8]https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2021/06/16/pandemia-impulsiona-contratacao-para-trabalho-intermitente-que-cresce-134percent-em-campinas.ghtml