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O mito da variante branda e o janeiro mais mortal da história

Homem no meio de um cemitério
Poder360

Gilberto Calil

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. Editor da Revista História & Luta de Classes. Presidente da ADUNIOESTE e integrante da direção do ANDES-SN. Tem pesquisas sobre fascismo, hegemonia, Estado e Poder, Gramsci e Mariátegui.

Nos últimos dias, muitos se surpreenderam com notícias publicadas sem muito destaque na grande imprensa brasileira, que informavam que o mês de janeiro de 2022 foi o janeiro mais mortal da história brasileira, superando inclusive 2021 (mês que marcou o início da escalada de mortes provocadas pela variante gama do Covid-19). (1)Quem acompanha a cobertura destes mesmos meios de comunicação deve ter ficado surpreso e confuso, afinal a grande maioria das matérias publicadas até então reproduzia a hipótese de que a ômicron seria uma variante muito mais branda e que mesmo contaminando um maior número de pessoas, teria impacto reduzido em hospitalizações e óbitos, em decorrência de sua menor letalidade e dos efeitos positivos decorrentes do avanço da vacinação. Mais do que isto, não faltaram matérias apontando o que seria um provável “início do fim da pandemia”, uma formulação pretensamente menos negacionista mas que no fundamental se assemelha à absurda proposição de Jair Bolsonaro, que disse que ômicron era “muito bem vinda”, afirmando tratar-se de uma “cepa vacinal”. (2)

Também devem ter ficado surpresos aqueles que acompanham detidamente os dados oficiais divulgados pelo Conselho Nacional dos Secretários da Saúde (CONASS) (3) e pelo Ministério da Saúde (4). De acordo com estes dados, teriam sido registrados 7.894 óbitos decorrentes da Covid-19 em janeiro de 2022, enquanto em janeiro de 2021 teriam ocorrido 28.665 óbitos por Covid-19 – praticamente quatro vezes mais. Ao longo da pandemia, o número de excedentes de óbitos tem sido recorrentemente superior ao de registros oficiais, indicando que há uma subnotificação. Mas esta subnotificação até o final de 2021 nunca ultrapassou 20%. É verdade também que parte dos dados são incluídos no sistema com atraso e que portanto parte dos óbitos ocorridos em janeiro ainda esteja sendo lançada, mas isto não é suficiente para explicar uma diferença tão brutal.

Na realidade, a diferença é ainda maior. O site www,mortalidade.com.br dedica-se ao registro e divulgação do total de óbitos por causas naturais, excluindo acidentes, assassinatos e suicídios. Neste sentido, constitui um instrumento bastante efetivo e mais preciso para a identificação do excedente de óbitos e compreensão do impacto real da pandemia. A página traz o seguinte alerta: “Apesar de atualizarmos os dados com frequência, eles ainda estão sujeitos ao atraso dos cartórios. Por via de regra, quanto mais recente o dia, maior o atraso”.(5) Por esta razão, o site mantém apagado o período dos últimos 15 dias, reconhecendo que os números referentes a estes dias ainda se modificarão bastante. Assim, apenas agora foram tornados públicos os dados do final de janeiro, e, pelo que indica o alerta, é provável que estes números ainda aumentem. Mas os números já compilados são impressionantes. É o seguinte o quadro geral:

Gráfico Números de mortes por causas naturais no Brasil
Imagem retirada do site www.mortalidade.com.br. O círculo à esquerda é edição nossa, com o objetivo de destacar a linha marrom clara relativa à 2022.

A representação gráfica acima permite visualizar claramente os diferentes momentos da pandemia. O impacto da pandemia produzindo excedente de óbitos se expressa pela primeira vez a partir do final de abril de 2020 (linha laranja). A linha vermelha corresponde ao trágico ano de 2021 e permite visualizar o crescimento extraordinário dos óbitos decorrente da propagação da variante gama, que atingiu o ápice de 6.902 óbitos em 30/3/21, o que então significava um excedente de quase quatro mil óbitos em relação aos 3095 óbitos registrados em 30/03/2019, e também confirmando a diminuição de óbitos a partir de setembro de 2021, chegando ao número mais baixo de 3.381 óbitos em 22/11/2021, momento em que o excedente de óbitos reduziu-se a 269 em relação aos 3.112 de 22/11/2019. No detalhe abaixo, observa-se mais claramente a representação do excedente de óbitos em relação ao período anterior ao início da pandemia:

Imagem retirada do site www.mortalidade.com.br. O preenchimento em amarelo é edição nossa, destacando o excedente de óbitos em relação à 2019 (linha azul) e 2020 (linha vermelha).

Mas, afinal, qual foi efetivamente o excedente de óbitos de janeiro de 2022, considerando-se este critério que exclui as mortes violentas e considera exclusivamente as mortes por causas “naturais”? A resposta está no quadro abaixo, que sistematiza os dados dia a dia, indicando o excedente de mortalidade em relação a 2019: (6)

Tabela Número de Óbitos por causas naturais em 2019 e 2022 e excedente de óbitos

 

Os dados indicam aumento de 44% no total de mortes por causas naturais em relação a 2019

Os dados indicam um excedente de mortes de 42.088 em relação a 2019, um aumento de 44% no total de mortes por causas naturais em relação àquele ano, e um número que ainda deve aumentar com o lançamento de novos dados no sistema, mas já representa mais de cinco vezes mais mortes excedentes do que o número de mortes oficialmente registradas como Covid-19. Como é possível explicar uma diferença tão gritante? O cientista Miguel Nicolelis avalia, em uma série de publicações no twitter, que parte disto decorre do registro de mortes por Covid-19 como sendo pneumonia: “Minha hipótese primeira é que boa parte deste excesso de mortes por “pneumonia” seja na realidade causada por COVID19 o q faria mortes da pandemia serem iguais a Jan 2021”. De acordo com ele, “Se levarmos em conta possibilidade q casos em excesso de pneumonia e outras doenças tiveram como causa real de morte a COVID19 podemos ter tido > 12 mil (talvez mais) mortes pelo vírus em 01/2022. Seriam 400 óbitos a mais por dia ñ computados nos números oficiais da pandemia.” (7) Ainda de acordo com ele, em janeiro de 2022 foram registradas 24.198 mortes por pneumonia, um número atipicamente elevado. Nicolelis indica ainda a possibilidade de que outra parte dos óbitos decorrentes da Covid-19 tenha sido registrado como septicemia, cujas mortes “também aumentaram em janeiro de 2022 em relação a 2021”, e conclui que somando todos os óbitos decorrentes de insuficiência respiratória e SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), teriam sido 66.619. 

 

Notas

1 https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/02/4985161-cartorios-registram-janeiro-mais-mortal-da-serie-historica-no-brasil.html A matéria foi reproduzida nos principais veículos da grande imprensa, sempre com ressalvando ser o mais mortal “desde 2003”, pelo fato de que é a partir desta data que se tem a série de dados. Dada a variação populacional e a consequente tendência de um pequeno crescimento natural ano a ano, a ressalva é desnecessária.

2 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2022/01/bolsonaro-minimiza-omicron-e-sugere-que-variante-e-bem-vinda.shtml

3 https://www.conass.org.br/painelconasscovid19/

4 https://covid.saude.gov.br/

5 www.mortalidade.com.br , consultado em 17/2/2022.

 Utilizamos para a comparação o ano de 2019 por ser o ano anterior à chegada do Covid-19 no Brasil. Registre-se que como os números de 2019 e 2020 são semelhantes nos dois primeiros meses do ano, a comparação com 2020 daria resultados semelhantes. 

7 https://twitter.com/MiguelNicolelis, Feb9.