“Só a verdade é que liberta/Chega de maldade e ilusão”
(Renato Russo, em Perfeição)
Bolsonaro pode ser acusado de muita coisa, e adjetivos de teor pejorativo existem em profusão na língua portuguesa. Como o desespero de 1973 voltou à moda – talvez porque aquele ano esteja mais se aproximando do que se distanciando de nós – não são poucos os que, desesperados, dirigem ao nosso presidente as mais variadas diatribes. Como os justos já não podem ter nem sequer o seu sono, talvez não haja mesmo algo mais justo do que ofender aquele que lhes causa insônia, justamente por ser ele a própria antítese de qualquer justiça, ainda que apoiado pelos nossos imparciais homens da Lei. No entanto, não seria justo, pensamos, endereçar ao nosso aspirante a César os epítetos de incoerente e mentiroso, já que a incoerência e a falta com a verdade, ou pelo menos com a sua verdade, não se encontram entre os seus vastos e deletérios atributos. A César o que é de César. Nem mais nem menos.
Nas eleições que o levaram ao poder, Bolsonaro falou o que faria se vencesse, e agora faz o que falou. Nesse sentido, Bolsonaro foi mesmo coerente e verdadeiro. Nesse sentido, Bolsonaro foi mesmo o “antipolítico”. Ele não só promete, como também faz o que prometeu, e o faz sem nenhum temor de ser acorrentado, quer pelos pobres mortais daqui de baixo, quer pelos deuses lá de cima. Agora ele é quem é Zeus. Agora ele é o seu próprio Deus e, como todos os outros deuses parecem estar mortos, ou pelo menos acovardados, tudo é possível para ele. Se uma parte de seu eleitorado, mais propriamente reacionária, estava convicta de sua coerência reacionária, outra enorme parte (que inclui desde certos homens de bem com algum resquício de pudor até a alta e pudente burguesia liberal semi-ilustrada) apostou mesmo foi na sua incoerência. Se nos últimos trinta anos os eleitores justificaram seu voto a partir do que seu candidato dizia que faria em caso de vitória (apenas para depois com ele se decepcionarem), desta vez muitos o fizeram precisamente com a justificativa oposta, isto é, escolheram seu candidato alegando que ele não faria no poder justamente aquilo que ele dizia que iria fazer caso lá chegasse pelo voto. Na Casa Grande, predominou essa ilusão pueril, a de que o plebeu sem modos, assim que adentrasse os grandes salões, abandonaria as altissonantes bravatas e a verborragia febril, e saberia se comportar; assim, seu arrivismo de pretensões ditatoriais se amainaria logo que, na cadeira presidencial, se visse coagido pelas normas burguesas constitucionais – as mesmas normas, aliás, que vinham sendo constantemente desrespeitadas pelos próprios burgueses e demais membros da Casa Grande desde 2016, quando, em nome de restabelecer a ordem mercantil, eles se decidiram, sem melindres, por quebrar a ordem constitucional. Erraram feio, erraram rude, com diz o atual adágio de origem humorística. A burguesia quis se iludir ou mesmo precisou se iludir, e agora se encontra refém do humor do seu desastrado e decidido convidado, o qual, a cada gesto, a cada palavra, e, sobretudo, a cada ato, diz aos seus anfitriões da sala de jantar que suas ingênuas ilusões agora estão todas perdidas, e que eles deveriam muito bem saber, como disse certa feita Balzac, que “lá onde começa a ambição cessam os sentimentos ingênuos”.
Embora, tal qual seu entourage lumpemburguês, Bolsonaro não seja lá muito hábil com as palavras, ele é, inegavelmente, um homem de palavra, e sua palavra é a força bruta. Bolsonaro é violento em suas frases justamente porque seu projeto é a violência sans phrase. Bolsonaro não fala propriamente a verdade, mas ele é verdadeiro quando a fala. Sua verdade – é verdade – nada tem de verdadeiro, no entanto, embora essencialmente mentirosa, ela nunca precisou ser revelada, pois sequer por um segundo foi escondida. Ela sempre foi dita em alto e bom som. De tão mentirosa, de tão verdadeiramente mentirosa, a falsa verdade de Bolsonaro sempre foi alardeada explicitamente. Muitos os que escutaram não ouviram, e muito menos compreenderam. Agora, talvez, não só a mulher de César, como também o próprio César, já não precisem mais parecer honestos, mas isso já pouco importa. Nenhum fato, nenhuma descoberta, nenhum vazamento, nada parece ser capaz de fazer Bolsonaro alterar sua lógica, a qual, convém ressaltar, ele nunca escondeu de ninguém, e sempre lhe foi fiel. Sua lógica é e sempre foi aquela cuja conclusão afirma que a salvação da ordem precisa, em momentos extraordinários, de um extraordinário salvador; que a violenta sociedade burguesa, em certos casos extremos, só pode ser salva pela violência extremada; que uma atroz exploração econômica dos de baixo, em certas circunstâncias, requer um regime político atroz da parte dos de cima; e que, saibam os burgueses ou não, queiram eles ou não, os seus negócios não podem, a essa altura do capitalismo periférico brasileiro, ser mais salvos apenas pela força dos falsos argumentos, mas precisam também contar com o cruel e verdadeiro argumento da força. A lógica de Bolsonaro é, em síntese, a lógica do bonapartismo, ou, em linguagem gramsciana, a lógica do cesarismo, a lógica que propugna a implantação de uma ditadura cruenta para salvar a burguesia dos perigos de seu próprio governo democrático-liberal. Bolsonaro sempre expôs essa sua lógica, sempre a defendeu, e continua a fazê-lo, todos os dias, incontinentemente. Assustadoramente. Obscenamente. Quanto a isso, Bolsonaro nunca mentiu. Quanto a isso, Bolsonaro sempre falou a verdade, sempre falou a sua falsa verdade, e só não acreditou que ele nela se basearia quando chegasse ao poder quem não quis ou não pôde acreditar. Alguns daqueles que viram não enxergaram, ou não quiseram enxergar. De tão óbvia, talvez a obviedade tenha ficada obscurecida a alguns. Bolsonaro prometeu mortes e nunca deixou em paz sequer os mortos que por justiça outrora lutaram e tombaram. Bolsonaro sempre jogou limpo no seu jogo sujo. A César o que é de César.
Contudo – poderíamos logicamente excogitar –, a alta burguesia, uma vez tendo acesso às mensagens interceptadas da lumpemburguesia ambiciosa, uma vez tendo tomado ciência do plano ditatorial em curso, uma vez agora se apercebido de que está sendo salva economicamente ao mesmo tempo em que é posta de joelhos politicamente, uma vez notado de que é livremente alimentada tal qual um tigre numa cela de zoológico, não poderia, ao menos, tentar obstar a marcha cesarista de Bolsonaro? Não poderia a nossa ilustre burguesia, que, citando Guimarães Rosa, vem “caprichando de ser cão” de Bolsonaro, finalmente se insurgir contra ele e restabelecer os papéis habituais, fazendo do homem que hoje segura a coleira novamente seu acessório cão feroz que mais ladra do que morde? Em termos lógicos, pode ser que sim. Em termos históricos, parece que não. Dizemo-lo porque a lógica de Bolsonaro não é senão uma derivação lógica da própria lógica da alta burguesia nos últimos anos, isto é, um produto histórico da ação concreta de uma lógica formal que, quando se depara com contradições objetivas e problemas históricos para a burguesia, curiosa e dialeticamente postula que as formalidades podem ser informalmente dispensadas se isto for necessário para preservar a histórica forma de exploração capitalista; que a manutenção da normalidade burguesa a da propriedade com quem a possui por direito pode exigir, em certos casos, a suspensão das próprias normas e outras frivolidades próprias do direito burguês; que, excepcionalmente, algumas mudanças nas regras do jogo podem ser negociadas para que o jogo dos negócios continue intacto; e que, finalmente, a lógica da coisa pode ser, às vezes, alterada para que as coisas permaneçam em sua lógica de sempre.
Assim, para a alta burguesia, denunciar e desbaratar a lógica cesarista de Bolsonaro poderia vir a significar, também, a denúncia e o desbaratamento de sua própria lógica, isto é, a denúncia e o desbaratamento da lógica golpista da própria burguesia, na medida em que a ameaça cesarista de 2019 não é senão um desdobramento histórico, conquanto rebelde, do golpe perpetrado por essa mesma burguesia em 2016. A lógica do cesarismo de hoje é um produto da lógica do golpismo de ontem, do mesmo modo que o agora candidato a César é um produto histórico do golpe burguês que, há três anos, começou a lhe abrir gradativamente as portas do poder. Destarte, por mais equivocadas que possam parecer à burguesia as atuais escolhas políticas do postulante a César, elas não negam, em absoluto, a sua gênesis, assim como a opção peçonhenta de Adão e Eva não negaram, absolutamente, a sua qualidade de filhos de Deus – e se estes, expulsos do Éden, tentaram viver idilicamente na Terra de Deus, Bolsonaro, por sua vez, parece convencido de que, só com ele, seus generais e seus bispos sanguinários, a alta burguesia pode ser apascentada e, assim, encontrar o verdadeiro paraíso econômico na Terra. A burguesia, por sua vez, continua, como uma boa ovelha, a escutar a voz do seu pastor e a humildemente o seguir.
Desse modo, talvez não seja possível à alta burguesia explicitar ao público e atacar a cotidiana marcha cesarista de Bolsonaro sem deixar explícito a esse mesmo público que, embora os soldados do candidato a César agora marchem estrepitosamente por estradas obscuras, nos conduzindo através delas ao mais completo caos social, eles só o fazem hoje pois souberam muito bem trilhar o caminho aberto pelo golpe que ela própria, a alta burguesia, assestou sem dó nem piedade em 2016. Assim, se Bolsonaro hoje pode governar a partir das fake news, é porque ontem foi a grande imprensa a se valer delas para depor uma presidente eleita. Se Bolsonaro hoje pode ameaçar o Poder Legislativo, é porque ontem foi esse mesmo Poder Legislativo que golpeou a líder do Poder Executivo. Se Bolsonaro hoje pode ameaçar o Supremo, é porque ontem foi esse mesmo Supremo que suprimiu importantes franquias constitucionais para chancelar um golpe. Se Bolsonaro hoje pode tramar abertamente contra a Constituição, é porque ontem foram os próprios juízes que a desrespeitaram abertamente. Se Bolsonaro hoje pode acenar com um golpe de Estado, é porque ontem foi a própria burguesia quem o executou. Se Bolsonaro hoje pode ameaçar a esquerda com a prisão e a morte, é porque ontem foi a mesma burguesia quem deixou que Marielle fosse morta e até agora esconde os mandantes de seu assassinato. Se Bolsonaro hoje está livre para seguir com seu projeto violento e autocrático, é porque ontem a própria burguesia decidiu encarcerar um candidato pacífico e social-democrático. Se Bolsonaro hoje ameaça prender Glenn, é porque ontem a burguesia prendeu Lula. Se Bolsonaro hoje pode ameaçar a liberdade de imprensa, é porque ontem a imprensa da burguesia usou essa tal liberdade para dar um golpe e levar ao poder os inimigos da liberdade. Assim, a nudez de Bolsonaro, por assim dizer, não pode ser exposta sem que a própria burguesia fique nua. Em outras palavras: se o caminho cesarista seguido por Bolsonaro desde sua posse não é propriamente o caminho dos justos, não se pode obnubilar o fato de que ele foi muito bem pavimentado pelos ímpios cesaristas de toga à frente da Justiça burguesa. Bolsonaro vem caminhando há um tempo, mas não o vem fazendo sozinho, sem apoio, sem suporte financeiro e midiático. Ele não partiu do zero. Ele não surgiu do nada. A César o que é de César, mas sem injustiças.
Não seria, portanto, equivocado afirmarmos que a revelação da verdade do cesarismo de hoje é a revelação da verdade do golpe de ontem, pois a revelação da verdade de Bolsonaro é a revelação da verdade da burguesia, e que revelá-la seria mostrar a todos a falsidade e a mentira que nos trouxeram até aqui. Hoje, para a alta burguesia, derrotar Bolsonaro poderia significar derrotar o golpe de ontem, isto é, derrotar hoje o seu próprio golpe executado na véspera, e, com isso, trazer à baila, novamente e com força, os golpeados de outrora, animando, queiram ou não estes últimos, as amplas massas que nesse país cada vez mais desagregado e socialmente fraturado só fazem sofrer, viver e morrer sem razão. Assim, a luta contra o candidato a César, que hoje tenta adular a sua plebe reacionária só com circo (pois até para ela o pão está escasso), não poderá ser levada a cabo pelos nossos patrícios, seus senadores e juízes. Ao que tudo indica, como de hábito, o peso da hercúlea e espartaquista tarefa caberá aos de sempre, aos invisíveis aos olhos da grande mídia, aos ignorados pelos analistas políticos do capital, aos odiados pelas pessoas da sala de jantar, ou seja, aos escravizados contemporâneos, aos trabalhadores e trabalhadoras, aos oprimidos de todo o tipo, àqueles cujos direitos hoje são violentamente arrancados, àqueles que quase não têm e mesmo assim o pouco que têm lhes é tirado, àqueles em cujas luta s do presente a história parece depositar todas as suas esperanças de que haja um futuro, àqueles únicos que, na prática, podem fazer com que, no fim, a verdade prevaleça, se realize, se efetive e, assim, nos liberte, de uma vez por todas, do capital e dos seus recorrentes césares. De verdade.
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