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Viagra e militares: os benefícios para a farmacêutica EMS

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Elaine de Almeida Bortone*

O deputado federal Elias Vaz (PSB-GO) denunciou, em 11 de abril de 2022, a compra, pela Forças Armadas brasileiras, de 35.320 comprimidos de Citrato de Sildenafila (nome genérico do Viagra), que é usado para o tratamento de disfunção erétil. O superfaturamento chegou a 143%. Os comprimidos de 25mg e 50mg foram distribuídos entre as três instituições da seguinte forma: 28.320 unidades foram destinadas à Marinha; 5 mil unidades ao Exército e, por fim, 2 mil unidades à Aeronáutica. Jair Bolsonaro saiu em defesa da compra e justificou que eram usados para outros tratamentos e que a quantidade foi maior: “As Forças Armadas compram o Viagra para combater a hipertensão arterial e, também, as doenças reumatológicas. Foram 30 e poucos mil comprimidos para o Exército, 10 mil para a Marinha, e eu não peguei da Aeronáutica, mas deve perfazer o valor de 50 mil comprimidos”. O vice-presidente, general Mourão, por sua vez, fez piada “eu não posso usar o meu Viagra, pô?”.

Dando continuidade ao trabalho, o deputado levantou, através do Portal da Transparência e do Painel de Preços, dez empenhos do governo federal para a aquisição de comprimidos de Citrato de Sildenafila, que variavam entre 20, 25 e 50 miligramas, entre os anos 2019 e 2022. A quantidade de comprimidos adquirida foi na ordem de 11.213.625, no valor total de R$ 33.592.714,80. O contrato de compra foi firmado entre o Laboratório Farmacêutico da Marinha Brasileira e a indústria farmacêutica privada EMS S/A. Além da extravagante compra, o contrato prevê a transferência de tecnologia para a fabricação do medicamento.

A EMS é de propriedade de Carlos Sanches, aliado político de Bolsonaro, que tem uma relação muito próxima com o governo.

A EMS é de propriedade de Carlos Sanches, aliado político de Bolsonaro, que tem uma relação muito próxima com o governo. O laboratório, fabricante de hidroxicloroquina e de vários medicamentos que faziam parte do Kit-Covid, foi beneficiado pelo Executivo federal ao longo da pandemia do novo coronavírus Sars-CoV-2. O presidente da República foi garoto-propaganda do medicamento produzido pela farmacêutica, apareceu em diferentes situações com a caixa do remédio, tais como em suas tradicionais lives de quinta-feira, em videoconferências com os líderes do Grupo dos Vinte (G20) e em inúmeras entrevistas no “cercadinho” do Palácio da Alvorada1.

Influente no governo, Sanchez participou de algumas reuniões com Bolsonaro ao longo da pandemia com a finalidade de legitimar e apoiar suas ações contrárias a ciência. A primeira, uma videoconferência, foi organizada por Paulo Skaf, presidente da FIESP, em 20 de março de 2020, quando o presidente anunciou novas medidas de enfrentamento da pandemia. Não por coincidência, o encontro ocorreu no mesmo período em que o ex-capitão passou a amplificar a divulgação da hidroxicloroquina. No segundo encontro, em 14 de maio de 2020, Bolsonaro, junto com Paulo Guedes e Braga Netto, conclamou o empresariado para pressionar os governadores pelo fim do isolamento e pela reabertura do comércio. Na ocasião, Sanchez colocou-se contra as medidas de distanciamento social e minimizou o impacto do coronavírus. Na casa do empresário Washington Cinel (Gocil), Sanchez e vários empresários se encontraram com Bolsonaro para requisitarem compras de vacinas por empresas privadas e para pedirem agilidade na aprovação das reformas administrativa e tributária, mesmo com mais de 341 mil mortos à época e sem nenhum plano do governo para resolver as crises sanitária e econômica2.

Aproveitando-se da amizade com o presidente, a EMS conseguiu a aprovação da Anvisa para conduzir um estudo clínico para o uso da hidroxicloroquina em pacientes voluntários diagnosticados com Covid e com pneumonia moderada e grave. A pesquisa foi conduzida pela “Coalizão Covid-19 Brasil”, formada pelos hospitais Israelita Albert Einstein, Sírio-Libanês, HCOR, Oswaldo Cruz, Moinhos de Vento, Beneficência Portuguesa, Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva (BRICNet) e BCRI. O resultado, publicado no New England Journal of Medicine, no dia 23 de julho de 2020, atestou que o medicamento não promovia melhoria nos quadros clínicos. Resultado já conhecido por todo o mundo, mas que, ainda assim, não fez Bolsonaro cessar com as falsas afirmações sobre o medicamento3.

Produtora de quatro medicamentos que formam o kit-covid: Sulfato de Hidroxicloroquina, Azitromicina, Ivermectina (Leverctin) e Nitazoxanida, a receita da EMS, em 2020, apenas com a venda de Ivermectina, totalizou R$ 68,6 milhões e, de Hidroxicloroquina, R$ 9,1 milhões. Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado, que investigou as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia de Covid-19, a farmacêutica informou que faturou R$ 142 milhões com medicamentos do kit-Covid-19 em 2020, valor oito vezes superior ao registrado no ano anterior. Apenas a soma com a venda de Ivermectina, explicou, foi de R$ 2,2 milhões para R$71,1 milhões na pandemia. Os dados enviados à CPI ainda mostram que a EMS produziu cerca de nove vezes mais comprimidos das drogas do kit no primeiro ano da pandemia. Depois da Ivermectina, o maior faturamento da SEM em 2020 foi com a Azitromicina (R$ 46,2 milhões), Hidroxicloroquina (R$ 20,9 milhões) e Nitazoxanita (R$ 3,67 milhões). A empresa também disse à CPI que de janeiro a maio de 2021 faturou R$ 11,85 milhões com a hidroxicloroquina. Além disso, projeta mais R$ 19,21 milhões com a droga até dezembro4.

Mesmo com as facilidades e lucros, o laboratório produz medicamentos que colocam em risco a saúde pública. O Ministério da Justiça e Segurança Pública multou a EMS em R$ 6,5 milhões em 2020 por ter comercializado remédios para hipertensão com impurezas da espécie nitrosamina que podem causar câncer5.

Com as denúncias sobre a compra do Viagra, Bolsonaro banalizou a situação da aquisição, “com todo o respeito, isso não é nada” e assegurou que a mídia quer atacar as Forças Armadas. Mas as denúncias sobre uso de dinheiro público para aquisição de itens nada bélicos por parte das Forças Armadas, no contexto da crise sanitária, começaram no início de 2021, que colocaram os militares no centro de escândalos. Compraram em grandes volumes cortes luxuosos de carne, bebidas alcoólicas refinadas, próteses penianas, gel lubrificante íntimo, leite condensado, goma de mascar, entre tantos outros itens.

Enquanto as Forças Armadas adquirem produtos supérfluos e fazem volumosa compra do Viagra, favorecendo uma empresa privada, as unidades de saúde do país não estão abastecidas de medicamentos básicos, que são imprescindíveis a manutenção da vida. O governo foi negligente na compra de vacinas contra a Covid-19 e de cilindros de oxigênio para salvar vidas. Em outubro de 2021, Bolsonaro vetou a distribuição gratuita de absorventes higiênicos para estudantes carentes dos ensinos fundamental e médio, mulheres em situação de vulnerabilidade e presidiárias. Em março do ano seguinte, liberou, mas condicionado a distribuição de recursos. Em diferentes períodos, ao longo da pandemia, hospitais do SUS não tinham sedativos e antibióticos essenciais para tratar e entubar pacientes com Covid-19. Estes poucos apontamentos mostram para quem o governo Bolsonaro está trabalhando. Especialistas da Fiocruz explicam que o Brasil não possui uma base produtiva forte para insumos farmacêuticos, o que limita a autonomia do país, afetando a capacidade de ofertar os tratamentos de forma igualitária.

*Psicóloga, doutora em História Social e professora do ensino à distância do Cederj/Unirio. E-mail: [email protected]

Notas

1 BORTONE, Elaine de Almeida. O governo Jair Bolsonaro e os empresários da indústria farmacêutica. Marx e o Marxismov.9, n.17, jul/dez 2021.
2 Idem.
3 Idem
4 Idem
5 BORTONE, Elaine de Almeida. Os laboratórios por trás da obsessão de Trump e Bolsonaro pela cloroquina. Esquerda Online, 14 abr. 2020.