A sociedade brasileira foi, mais uma vez, fortemente atacada com o anúncio da proposta de uma emenda constitucional do ministro Paulo Guedes que busca desvincular R$ 1,5 trilhão do Orçamento federal, dando prosseguimento à avalanche de perda de direitos sociais que vem sendo, exaustivamente, adotada pelo atual governo. A proposta é totalmente alinhada com o golpe institucional em curso no Brasil, desde 2016, sendo intensificado pelo governo Bolsonaro, à medida que acirra a expropriação dos direitos sociais. Isto porque, tal proposta destrói a luta histórica pela vinculação constitucional dos recursos orçamentários para a educação e saúde no país nas três esferas de governo, já conquistada há muito tempo para assegurar recursos financeiros para as áreas sociais, tão prejudicados historicamente pela adoção de políticas econômicas (neo) liberais.
Recentemente, os brasileiros e as brasileiras foram comunicados com a perda de R$ 9,7 bilhões de reais no financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), acumulado nos últimos dois anos, em plena vigência da Emenda Constitucional n. 95/2016 que congelou o gasto público em saúde por 20 anos, tendo como regra a vinculação de 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) de base fixa de 2017. Fica a indagação: se com essa vinculação insuficiente o SUS já vem perdendo recursos e como seria sem ela? Para deixar evidente nosso alerta, é fundamental uma brevíssima história da perda de recursos orçamentários em que o SUS vem sofrendo.
Diferentemente da educação, que ficou estabelecida sua vinculação de recursos com a criação da Constituição de 1988, a saúde foi marcada por intensos conflitos que se arrastam desde os anos 1990, sendo somente conquistada a vinculação de recursos com a Emenda Constitucional n. 29/2000. Essa emenda estabeleceu que estados e municípios deveriam alocar, no mínimo, 12% e 15%, respectivamente, do total das receitas de impostos, compreendidas as transferências constitucionais. No tocante à União, a EC-29 determinou que fosse aplicado o valor apurado no ano anterior, corrigido pelo PIB nominal.
Mesmo com essa vinculação, os estados somente foram respeitar esse percentual de 12% em 2006, alcançando um patamar um pouco mais elevado em 2016, com a aplicação, em média, de 14,4%. Essa postura dos Estados vem evidenciando sua pouca responsabilidade no cofinanciamento do SUS. Os municípios foram os únicos que já no ano inaugural da EC-29 quase aplicavam, em média nacional 15%, atingindo em 2016, 24%.
Já no caso do governo federal, não faltaram intensas polêmicas no período posterior à EC-29 sobre a sua base de cálculo, levando a que esse ente não aplicasse o montante correto e necessário para manter o SUS. Mesmo com esse problema constatado em nível do governo federal, contrário à EC-29, a avaliação é que a sua aprovação permitiu que o gasto SUS (incluindo as três esferas) aumentasse de 2,9% do PIB, em 2000, para 3,9% do PIB, em 2010, sobretudo com o esforço dos municípios e dos estados. Mas, sabe-se que ainda se trata de um patamar de aplicação insuficiente para ser universal e para garantir o atendimento integral, haja vista que dados de sistemas universais de saúde no mundo são sustentados razoavelmente quando seus governos centrais investem, minimamente, 8% do PIB no gasto público em saúde.
Como se questionava o compromisso do governo federal na aplicação devida em saúde, por meio de sua base de cálculo, lutou-se muitos anos por sua regulamentação com modificações dessa base. É preciso que se lembre dos embates contra a vinculação de recursos da EC-29 que houve na equipe econômica do governo Lula, desde os seus primeiros anos. Não faltaram documentos encaminhados ao Fundo Monetário Internacional, comunicando sua intenção em preparar estudos sobre as problemáticas implicações das vinculações constitucionais das despesas sociais sobre as receitas dos orçamentos da União. A justificativa era quase a mesma do atual governo de Bolsonaro, à medida que alegavam que a flexibilização da alocação de recursos públicos relacionados ao financiamento dos direitos sociais poderia assegurar um crescimento ao país. Foi com muita luta social que não se permitiu eliminar a vinculação, mantendo-se a EC-29.
Na realidade, a regulamentação da EC-29, que tentava mudar a base de cálculo com o mesmo conteúdo definido para estados e municípios, isto é, um percentual que incidisse sobre o total dos impostos, ficou pendente por quase oito anos no Congresso, entre 2003 e 2011, causando perda de recursos para o SUS e enfraquecimento do consenso político obtido, quando de sua aprovação. Somente em 2012 foi aprovada a regulamentação por meio da Lei n. 141. Contudo, nada foi modificado em relação à frágil base de vinculação dos recursos da União. Entre 1995 a 2016, o gasto do MS não foi alterado, mantendo-se 1,7% do PIB, enquanto que o gasto com juros da dívida representou, em média, 6,6%. Neste sentido, é possível perceber o que o compromisso dos governos federais foi muito mais com o capital financeiro do que com a saúde pública. O importante é assinalar que foram diversas situações em que os constrangimentos econômicos, especialmente os derivados do esforço da lógica da política econômica restritiva aliada ao capital rentista dos governos Fernando Henrique e, na sequência, Lula e Dilma Rousseff, refletiram-se em ações que resultariam em menor disponibilidade de recursos para a saúde pública.
Passou-se a ser voz corrente, entre todos que se indignavam com a situação problemática da saúde pública no país, se referir ao SUS como um sistema subfinanciado. Esse subfinanciamento foi intensificado mais ainda com a aprovação da EC 86/2015. Ficou alterada a base de vinculação de aplicação do governo federal para 13,2% da Receita Corrente Líquida (RCL), em 2016, elevando-se de forma escalonada, até alcançar 15% da RCL, em 2020. O problema é que em 2015 o percentual executado de aplicação tinha sido de 15%. Daí diversos estudos apontarem que, com essa mudança, ficou evidenciada uma perda de recursos em cerca de R$ 9,2 bilhões para o orçamento da saúde já em 2016.
Apesar do avanço que significou a criação do SUS, em 2016, seu gasto foi de 3,9% do PIB (União – 1,7%, estados – 1,0% e municípios – 1,2%), enquanto o gasto público em saúde na média dos países europeus com sistemas universais correspondeu a 8,0%.
Com o Golpe de Estado de novo tipo, em 2016, que levou ao impeachment de Dilma, agudizou-se o processo de destruição dos direitos sociais e, na área da saúde o esmagamento do financiamento do SUS parece ter ganho um ritmo considerável com a introdução da EC-95, congelando as despesas primárias, e não as financeiras, por 20 anos. Trata-se da introdução de uma das maiores medidas de austeridade defendida pelos arautos do capital financeiro, correspondendo ao “tacão de ferro” no histórico subfinanciamento do SUS.
Com a EC-95, a vinculação do piso federal fica congelada ao parâmetro de aplicação mínima no valor monetário correspondente a 15% da receita corrente líquida (RCL) de 2017 – base fixa -, atualizado anualmente tão somente pela variação do IPCA/IBGE, até 2036.
O subfinanciamento do SUS que já vinha determinado por um patamar insuficiente, passa a um processo de desfinanciamento, descendo gradativamente seu valor em relação à arrecadação. Os dados dos últimos anos são contundentes para sustentar essa assertiva. Vejamos.
Os pisos federais de 2018 e 2019, calculados em acordo à regra dessa Emenda, representam, na realidade, uma redução de recursos para a saúde pública no Brasil. Isto porque, reafirmamos que a base fixa é de 2017, sendo 15,0% da RCL (R$ 727,3 bilhões) desse ano, o que corresponde a uma aplicação de ações e serviços públicos de saúde de R$ 109,1 bilhões. A variação para os anos posteriores ocorre apenas por meio da variação do IPCA/IBGE. Então, observa-se uma queda dos percentuais utilizados, sendo 13,95% em 2018 (R$ 112, 3 bilhões), reduzindo em R$ 4,2 bilhões seu valor real em relação aos 15% da RCL (R$ 116, 6 bilhões). Se somarmos a perda de 2018 com a de 2019 – (estimada), com base nos parâmetros apresentados na Lei Orçamentária de 2019, apura-se 13,85% da RCL (R$ 117,2 bilhões), atingindo o patamar de R$ 9,7 bilhões que são retirados da saúde em dois anos, já que nesse ano a relação aos 15% da RCL deveria corresponder a R$ 127,0 bilhões.
Assim, o SUS passa a enfrentar, ao lado de seu subfinanciamento de 30 anos, um processo crescente e contínuo de desfinanciamento, a partir de 2017, em decorrência de uma Emenda Constitucional que asfixia o direito social à saúde. Essa situação configura um quadro de aniquilamento, “a conta gotas”, das tentativas de construção de nosso sistema de saúde universal.
Entretanto, esse cenário de horror parece que tenderá a se agravar ainda mais com a proposta de “desvinculação orçamentária” apresentada pelo ministro Paulo Guedes. Não é difícil de imaginar que, se com a frágil vinculação de 15% da RCL já assistimos ao processo de desfinanciamento do SUS, uma possível aprovação da “desvinculação” será a barbárie e a morte da saúde pública é iminente.
Não podemos assistir a esse assalto ao fundo público social! Esta proposta escancara o poder do capital da rapinagem financeira na relação orgânica com o Estado, no sentido do esmagamento dos trabalhadores. Reforcemos a nossa luta de resistência, não podemos deixar que o SUS morra: Fora a proposta de Paulo Guedes de desvincular o orçamento!
*Áquilas Mendes é professor Dr. Livre-Docente de Economia Política da Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política da PUCSP.
**Leonardo Carnut é professor adjunto do Centro de Desenvolvimento de Ensino Superior em Saúde (Cedess) da Unifesp.
Foto Protesto pede a aprovação do SUS na Constituição de 1988. Arquivo Senado Federal
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Obs: Para os dados gerais aqui citados, ver MENDES, Aquilas; CARNUT, Leonardo. Capitalismo contemporâneo em crise e sua forma política: o subfinanciamento e o gerencialismo na saúde pública brasileira. Saúde e Sociedade, v. 27, p. 1105-1119, 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v27n4/1984-0470-sausoc-27-04-1105.pdf
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