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Relato 15: “De transtorno em transtorno há 20 anos”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, latinoamericana, feminista, escrivinhadora, mãe, usuária da RAPS, militante da Resistência-Campinas, da Luta Antimanicomial pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial (CLNMSMA) e Conselheira Municipal de Saúde;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Andréa Santos Miron – Mulher, feminista, apaixonada pelo Sistema Único de Saúde, por fazer trilhas e astronôma amadora; Assistente Social de formação pela Universidade Federal de São Paulo, pós-graduada em Saúde Pública, Saúde Mental e Psiquiatria; Militante pela Resistência / Psol – Mauá/SP, pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial, pelo Fórum Paulista da Luta da Luta Antimanicomial e Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Leonardo Tenório

Sou um homem trans, de 34 anos, branco, nordestino, pai parturiente, defensor de direitos humanos, pesquisador, escritor e trabalhador sexual.

Passei toda minha vida me arrastando de transtorno em transtorno. Comecei com estados depressivos ainda na infância, pois fui vítima de violência, abuso sexual infantil e maus tratos da infância até os 20 anos de idade.

Com 14 anos comecei a tomar antidepressivos. Entre os 15 e 16 anos, fui diagnosticado com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG). Remédios e remédios. Aos 18 anos eu vivia uma grande fossa, um fundo do poço que eu não via luz. Iniciei minha transição de gênero e melhorei um pouco. A transição me fez ter relacionamentos mais verdadeiros, vínculos afetivos que antes eu não tinha, e possibilitou eu me sentir mais eu, me sentir real. Porém, não me curei dos transtornos: muitos traumas.

A psicoterapia eu fiz desde os 15 anos. Me ajudou muito, mas sinceramente, em doses homeopáticas. Tão difícil nomear sentimentos, tão difícil compreender a origem dos sentimentos, os processos psicodinâmicos e o modo como as relações funcionam. Demorou, mas consegui entender melhor. Hoje sou bem mais maduro.

Meus traumas geraram, além da depressão e da TAG, o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), que durou anos e até hoje ainda tenho resquícios. Tentativas de suicídio? Perdi as contas.

Sabe o que é? Os/as psiquiatras não fazem um diagnóstico bom. Não te passam os remédios certos. E sendo certos ou errados, eles têm efeitos colaterais. Qual o problema da indústria farmacêutica que não consegue produzir medicamentos psicotrópicos que não mexam com o sono, com a libido, com o apetite, ou que não causem outro transtorno, como acatisia por exemplo, o enrijecimento dos músculos, movimentos involuntários, vontade incontrolável de marchar? Tem remédio psiquiátrico que mexe até com o intestino, prende, ou faz a pessoa ficar babando sedada.

Comecei minha transição de gênero aos 18, naquela época a psicologia não sabia de nada sobre transexualidade. A gente (trans) tinha que ensinar quando queriam nos atender. Passando o tempo consegui psicoterapia com uma psicóloga que me recomendou terapias integrativas. Gostei, são estratégias lúdicas, oficinas, como yoga, arteterapia. Durante os períodos de crise me fez bem.

As crises eram regulares. Todo ano, uma, duas ou três crises de depressão. Fiquei tendo acompanhamento em serviço particular, atendimento social. Tentei cortar meus peitos fora, e tive tentativa de suicídio antes de conseguir a cirurgia de mastectomia. Depois de muito ativismo e eu quase tendo morrido, ficaram com pena e me deram a mastectomia no SUS.

Fiz a mastectomia. Continuei deprimido. Muitos traumas. Trabalhando na psicoterapia, anos depois descobri memórias muito bem guardadas no porão do meu inconsciente sobre os traumas de abuso na infância. Foi transformador. Eu tinha compulsões e passou. Porém surtei. Nessa época eu usava muitas drogas, passei um tempo fazendo uso de drogas enteógenas para me beneficiar de efeitos terapêuticos. Ajudou, porém, desenvolvi delírios.

Além de sofrer abusos sexuais (que já é muito), sofri, com muita frequência, ameaças, gritos, xingamentos, violências físicas, expulsões de casa e inclusive uma tentativa de assassinato na infância que me traumatizou muito. Tudo isso que eu não conseguia digerir, gerou delírios persecutórios e distorção da realidade, dos 28 anos até os 32. Depois disso tive apenas pensamentos intrusivos, mas eu tinha a crítica, com senso de realidade.

Fui internado várias vezes nesse período de psicoses. Internações de ruins a péssimas. Os serviços de saúde não sabem acolher uma crise. E os internamentos são todos asilares. Só te dão remédio, água e comida. Não cuidam de você. Fiquei internado em CAPS 24h, em comunidade terapêutica e em hospital psiquiátrico. Todos com sérios problemas. Entre fazer evangelização forçada, não oferecer uma psicoterapia ou uma oficina lúdica, até dopar com remédios e provocar acatisia.

Me diagnosticaram também com Transtorno de Personalidade Borderline. Eu fui estuprado repetidas vezes na infância, tentaram me matar, me maltrataram toda minha fase de desenvolvimento, me expulsaram de casa na adolescência, tive que me prostituir pra fugir do contexto de violência, tive como consequência 20 anos de depressão e ansiedade, como é que é possível que o meu problema seja minha personalidade? Como se a causa dos meus problemas fosse eu mesmo?

Resultado, não sou borderline. Mas no hospital psiquiátrico que me internaram me diagnosticaram esquizofrênico. Porque claro, além de não saberem quem eu sou (e eu sou bem coerente), só me viram em momentos extremos de crise. Não tenho esquizofrenia também. Na verdade, minha vida e minha visão da realidade são bem organizados, diferente da esquizofrenia. E as psicoses já passaram, não tenho mais.

A depressão é real: no início de 2023 tive minha última tentativa de suicídio, passei uns dias em coma, quase morri novamente. A ansiedade é real, eu não durmo se não tomar remédio. Transtorno de Estresse Pós-Traumático sim, com certeza, pois certas situações que lembram os traumas me desregulam emocionalmente. Eu ainda tenho fibromialgia (tive o diagnóstico em 2015), que faz doer meu corpo todo o tempo todo.

Descobri a raiz e o efeito dos meus traumas com os longos anos de psicoterapia. Mas nem tudo é trauma. Descobri que sou neurodivergente. Tenho TDAH e autismo. Ou seja. Eu estava procurando a cura dos meus traumas, e consegui sarar de um bocado, mas tem coisa da minha saúde mental que não se explica apenas por trauma, pois é neurodivergência.

Sou da luta antimanicomial e detesto diagnósticos. Tenho plena consciência de que um CID não resume a subjetividade, a personalidade e o comportamento de ninguém. Cada pessoa é única. E aliás, tem muito diagnóstico errado por aí, como aconteceu comigo, que não sou nem borderline e nem esquizofrênico. Mas em algumas situações um diagnóstico pode ser libertador para entender o próprio funcionamento, as próprias limitações, e fazer um tratamento adequado, correspondente à necessidade da pessoa.

Eu só quero encontrar os caminhos mais eficientes para conseguir me cuidar reduzindo esse sofrimento, por isso busco os diagnósticos que mais se encaixam comigo, para saber como agir. Porém tenho consciência de que a Psiquiatria é bem limitada e vive se atualizando, pois tem um histórico horroroso.

O que mais me revolta é terem se passado 20 anos e, até hoje, nenhum/a psiquiatra que me atendeu ter conseguido me ajudar pra o que eu realmente preciso: parar de sofrer. Como em 20 anos nenhum psiquiatra nem psicóloga descobriu que sou neurodivergente? Por que inventam que tenho diagnósticos que não são meus? Não digo que queria pressa para superar meus traumas, porque aí é mais delicado. Mas ainda assim acho que foram anos demais.

O que mais me revolta é terem se passado 20 anos e, até hoje, nenhum/a psiquiatra que me atendeu ter sonseguido me ajudar pra o que eu realmente preciso: parar de sofrer. Como em 20 anos nenhum psiquiatra nem psicóloga descobriu que sou neurodivergente? Por que inventam que tenho diagnósticos que não são meus? Não digo que queria pressa para superar meus traumas, porque aí é mais delicado. Mas ainda assim acho que foram anos demais.

Outra grande revolta minha é ter que tomar remédios que me dão efeitos colaterais que me causam prejuízos. Já cheguei a perder o movimento das mãos e braços por conta de antipsicóticos. Já tive movimentos involuntários e agitação psicomotora incontrolável por conta de antipsicóticos. Já perdi a libido com antidepressivos. Já me doparam de me fazer dormir o dia todo e ficar com a boca mole quase babando de tanto ansiolítico. E nenhum psiquiatra se importa com esses efeitos colaterais. Porque, claro, eles não estão preocupados conosco de verdade. Apenas seguem protocolo, anamnese, diagnóstico, prescrição. Não pensam nas consequências.

Me internaram, às vezes, sem necessidade e me isolaram numa enfermaria psiquiátrica quando eu mais precisava de afeto. Me internaram em lugares em que não tinha nenhuma atividade para fazer a não ser fumar cigarros. Me internaram num lugar em que eu precisava rezar o pai nosso antes do café da manhã, do almoço e do jantar, cantar louvor e ir pra reunião bíblica todos os dias, e minha religião nem é a cristã. Ah, e já cheguei a ser abandonado por dois CAPS no SUS da minha cidade. Me deram alta e acabei tentando suicídio pouco tempo depois, quando eu estava desenvolvendo um quadro de alcoolismo (não sou alcoólatra, e parei de beber).

Por que os profissionais da saúde oferecem serviços de saúde mental se não cuidam da gente nesses serviços? Porque a indústria farmacêutica produz medicamentos com efeitos colaterais danosos? Porque psiquiatras prescrevem medicamentos indevidamente e fazem diagnósticos errados? Psicólogos e psiquiatras não sabem tratar trauma, não sabem manejar um paciente em crise, não sabem prevenir suicídio. Não sabem conversar para ajudar uma pessoa em psicose, apenas dão uma injeção e ignoram o paciente. Porque nos serviços de saúde não oferecem terapias integrativas?

Quem sofre somos nós, pessoas usuárias da saúde mental. Enfim, esse foi um desabafo sobre essa realidade social que nós, pessoas usuárias da saúde mental vivemos. O que passei, muitas outras pessoas também passaram. Tudo porque tratam as pessoas que tem sofrimento psíquico, transtorno mental e dependência química como menos humanos. Para eles, nosso sofrimento não importa.