Pular para o conteúdo
Colunas

Relato 13: “A celebração do nome PRÓPRIO”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, latinoamericana, feminista, escrivinhadora, mãe, usuária da RAPS, militante da Resistência-Campinas, da Luta Antimanicomial pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial (CLNMSMA) e Conselheira Municipal de Saúde;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Andréa Santos Miron – Mulher, feminista, apaixonada pelo Sistema Único de Saúde, por fazer trilhas e astronôma amadora; Assistente Social de formação pela Universidade Federal de São Paulo, pós-graduada em Saúde Pública, Saúde Mental e Psiquiatria; Militante pela Resistência / Psol – Mauá/SP, pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial, pelo Fórum Paulista da Luta da Luta Antimanicomial e Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Tiago Noel Ribeiro

Vou contar as algumas experiências que tive como trabalhador em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Adulto entre 2014 e 2018. Tenho experimentado diversos papéis na luta antimanicomial: militante, trabalhador e pesquisador. 

Estudei na graduação e nas pós-graduações, militei no Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo (Sinpsi/SP), trabalhei em diversas instâncias do SUS, em os serviços da ponta, em Unidade Básica de Saúde (UBS) e em Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), onde a proposta de atenção psicossocial se tornou mais presente. Pesquisei a construção do Projeto Terapêutico Singular (PTS) de usuários com sofrimento relacionado ao trabalho a partir das falas de profissionais de saúde de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) III adulto.

Os afetos que experimentei não deixaram meu corpo, eles compõem o conhecimento que tenho construído, nas infinitas trocas que tenho feito. Na graduação, lembro de dizer que não iria trabalhar com saúde mental. Meu primeiro contato com a área foi em um hospital psiquiátrico, onde os alunos da minha turma acompanhavam uma investigação, conduzida pelo professor, sobre os sintomas psiquiátricos de um paciente da instituição. A lição era aprender e estudar uma doença pelos livros e ver como isso aparecia em uma pessoa real. Por mais que eu tentasse, sempre dormia durante essa etapa da aula. Gostava da parte de ir para o “pátio” do hospital ver os pacientes, onde moravam, ver como cuidavam dos mais graves, além das paredes sujas de cocô.

Anos mais tarde, trabalhando no CAPS, estava vivenciando o cotidiano do cuidado e os desafios dessa construção coletiva com diferentes atores, como os usuários dos serviços, os familiares, os profissionais de saúde, a gerencia, as pessoas da gestão. 

Vou contar uma experiencia que considero exitosa. Essa, foi da equipe com um usuário cujo nome não era possível saber por ele não ter documentos. Ele vivia em situação de rua e parecia ter algum delírio e desconexão com o mundo compartilhado entre as pessoas. Foi encaminhado pela assistência social para acolhimento no CAPS.

Quando perguntávamos seu nome ele dizia que era Roberto (vou usar um pseudônimo), sem sobrenome. Passamos a chama-lo pelo nome que ele nos disse, pesquisas foram feitas e não encontramos mais informações oficiais sobre ele. Roberto por conta dos percalços da vida tinha muitas questões clínica. Depois de, aproximadamente, quatro meses, Roberto morreu. A preparação do seu corpo, velório, flores, enterro e lápide foram ajeitados e custeados pela gestão e pelos trabalhadores do CAPS, já que ele não tinha família conhecida para entrar em contato.

No dia do enterro, estava a equipe do CAPS e o coordenador de saúde mental, fizemos uma oração e nos despedimos de Roberto. Ele morreu com um nome, portanto não indigente, e com uma história que pode ser contada, ele passou da invisibilidade para um ser presente, que afetou as pessoas e foi afetado por elas. Pelo menos, nos últimos meses de vida ele pode ser visto como uma pessoa, morreu com um nome.

Lembro de Franco Basaglia quando escreveu que o cuidado em saúde mental olha o sujeito e não a doença, a pessoa passa a ser denominada pelo seu nome e não pela sua doença. Lembro também de Arthur Bispo do Rosário que bordou o nome das pessoas com quem convivia em seus mantos e objetos. As pessoas comuns com quem convivia. Com essa ação, elas passaram a existir enquanto memória e sua passagem pela terra pode ser lembrada.

Isso aconteceu nos primeiros meses de trabalho no CAPS, esse acontecimento me marcou no sentido que uma ação que pode ser considerada pequena, chamar a pessoa pelo nome e proporcionar uma morte digna, pode transformar um ser em pessoa. E foi a essa nossa breve contribuição para a vida de Roberto. Que agora pode ser celebrada.