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RELATO 16: “Eu, ViUma (e tantas outras): pelo fechamento dos manicômios judiciários e hospitais de custódia.”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, latinoamericana, feminista, escrivinhadora, mãe, usuária da RAPS, militante da Resistência-Campinas, da Luta Antimanicomial pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial (CLNMSMA) e Conselheira Municipal de Saúde;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Andréa Santos Miron – Mulher, feminista, apaixonada pelo Sistema Único de Saúde, por fazer trilhas e astronôma amadora; Assistente Social de formação pela Universidade Federal de São Paulo, pós-graduada em Saúde Pública, Saúde Mental e Psiquiatria; Militante pela Resistência / Psol – Mauá/SP, pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial, pelo Fórum Paulista da Luta da Luta Antimanicomial e Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Vilma Alves de Amorim, cidadã de Contagem/MG, usuária da RAPS de Contagem

Pedro de Paula do Nascimento Teixeira, acompanhante Terapêutico da Vilma. Relato extraído do livro: Luta Antimanicomial na Prática disponível gratuitamente

Meu nome é Vilma, sou uma mulher, negra, de 50 anos. Sou usuária da RAPS, e tive minha primeira crise quando era uma menina de 24 anos. Passei por muita coisa na vida. Fui casada à força. Já estive na rua. Minhas quatro filhas foram tomadas pelo estado. Fui presa, porque ao me defender de uma tentativa de abuso, acabei tirando a vida do abusador. Fui presa em setembro de 2014. Em agosto de 2015, fui encaminhada para cumprir medida de segurança no manicômio judiciário. 

Lá no Jorge Vaz, último Manicômio Judiciário de Minas Gerais, você tem sempre que ficar de olho, se não vem alguém e dá um racha de capão no seu ouvido e você até cai no chão. De graça. Se uma pessoa reclama muito, levam ela pro “isolado”, para ficar em silêncio. Ela fica lá por sete dias e depois buscam ela. Dependendo a pessoa ainda ficava mais cinco. Não tinha tratamento igual no CAPS.

Eu estive muito magoada lá dentro. Custou muito pra eu ir embora. Acho que não saí mais cedo porque eu trabalhava lá. Limpava e varria corredor, sala dos médicos, quartos… Para evitar problemas lá dentro, eu repartia o café, o leite. Trabalhei. Comi o pão que o diabo amassou com o rabo. Ali dentro sofri de tudo.

Depois de tanto tempo de sofrimento naquele lugar, minha supervisora me chamou e disse “Vilma, o PAI-PJ veio conversar com você, ele sabe que você quer ir embora.” Conversei e falaram para eu juntar minhas coisas. Eu nem queria juntar nada não, eu falei que só queria ir embora. Até pus as mãos para frente, mas me responderam que eu não ia ser algemada, eu estava indo pra casa. Entrei para o carro e vim para Contagem.

Foi com a ajuda do PAI-PJ e as meninas lá de Contagem, que eu consegui minha casa, o Serviço Residencial Terapêutico. Ali na casa as pessoas se respeitam, é totalmente diferente, ninguém te agride de graça, quando alguém faz agressão chamam o SAMU e a pessoa vai pro CAPS. Não tem isso de apanhar de graça.

Na Residência Terapêutica eu tive a oportunidade de me tratar de verdade, lá no CAPS, e tinha dia que até no Centro de Convivência eu ia. Hoje eu sei andar de ônibus sozinha, faço natação, tenho uma televisão a cores e uma cama de casal. Lá em Barbacena não tinha nada disso. Ali na casa, com ajuda da Aninha, reencontrei duas das minhas filhas, e descobri que sou vovó de duas netinhas. Posso ligar pra minha família sempre que eu quiser.

Agora eu tenho vida, posso ir na padaria, posso ir na farmácia, posso ir no shopping, posso andar onde eu quiser. Conheço muita gente do meu bairro e dos bairros vizinhos, e as pessoas me conhecem também. É muito bom poder estar em um lugar que você pode sair e conversar com as pessoas, ver o dia, a cidade.

Demorou tanto tempo para que eu pudesse ter minha vida de volta. Não ter documento, não ter casa, não ter família é muito ruim. Barbacena tirou quase tudo de mim. Não existe felicidade em um lugar tão violento, cheio de gente sofrendo, sem nenhum cuidado com a gente. Já passou da hora daquele lugar fechar.

O triste é saber que eu não sou a única que passei por ali. Tem muita gente ali que também quer sair, que também precisa de ajuda. Quantas pessoas são levadas pra lá depois de já terem tirado tudo delas? Eu pelo menos reencontrei minhas filhas, hoje tenho casa, mas tem gente que perdeu tudo. É muita maldade feita com gente que muitas vezes não recebeu uma ajuda, nenhum cuidado, foi parar ali porque tinha tantas outras coisas já causando sofrimento, que por uma ação, um conflito com a lei, pegam prisão perpétua. 

Eu ViUma, e tantas outras mulheres, marcadas pelo manicômio em sua mais terrível expressão: o hospital de custódia. Eu ViUma e tantas outras pessoas negras, tantas outras pessoas que estiveram em situação de rua, tantas outras pessoas que tiveram seu direito ao acesso à saúde, educação e assistência social negados, tantas outras pessoas que fizeram uso de álcool e outras drogas, tantas outras pessoas jogadas num depósito de gente cruel, que não trata, não cuida, não reeduca, só produz morte.

Eu, Vilma, e tantas outras pessoas, denunciamos que em um espaço de encontro entre o Haldol e o fuzil, não existe humanidade. Enquanto existir manicômio judiciário, existirá uma prisão perpétua para onde vão os perseguidos pela sua cor e raça, por seu gênero e orientação sexual, por sua classe social e jeito de ser no mundo. Enquanto existir hospital de custódia, existirá também um lugar para serem jogadas as pessoas que o Estado nunca quis alcançar, e normalmente são as mesmas pessoas a quem o Estado nega o direito à cidadania.