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EDITORIAL

A ocupação Povo Sem Medo como espelho do país

Editorial 23 de outubro,

Quem, no início da tarde do sábado, dia 16 de setembro, saía dos barracos rumo ao pequeno palco que há na ocupação ‘Povo Sem Medo de São Bernardo’ podia sentar e assistir a um episódio interessante. Alguns poucos jovens estavam começando a rimar. Naquela tarde, iria acontecer, pela primeira vez na ocupação, ‘A Batalha de Rap’. Iria.

Infelizmente, antes dos primeiros MCs começarem a duelar, um tumulto surgiu um pouco abaixo, perto do refeitório coletivo. Um homem acabava de ser alvejado por um tiro disparado de um dos edifícios vizinhos da ocupação. Rapidamente, os coordenadores prestaram os primeiros socorros e chamaram uma ambulância. Acalmaram os outros ocupantes e pediram calma. Um dos líderes tomou a palavra: “Os moradores ao lado não são nossos inimigos. Estão confusos e poluídos pelo ódio disseminado pela mídia e pelo prefeito Orlando Morando. Nós não devemos brigar com eles, mas sim explicar nossa situação e nossa luta”.

Foi imediatamente aplaudido. Foi também aprovado um ato de solidariedade, que ocorreu no dia seguinte, no domingo, dia 17. A fala deste líder foi a tônica das intervenções de solidariedade no ato de domingo. E estava correto.
Muitos podem achar que os edifícios vizinhos à ocupação são habitados por uma burguesia empresarial de São Bernardo. Não é assim. Quem mora lá são trabalhadores comuns atolados em dívidas para adquirir sua casa própria. São prestadores de serviço, funcionários públicos sem altos postos na máquina do estado, operários de montadoras, inclusive da própria Scannia, fábrica vizinha da ocupação. Ou seja, são também vítimas do mesmo mecanismo que obriga sete mil famílias a dormir ao relento.

Mas, o que será que faz com que alguns moradores deste edifício assumam a cruzada incitada pela grande mídia, pelo prefeito Orlando Morando (PSDB) e pelas grandes construtoras e bancos? A resposta a esta pergunta, aparentemente simples, contém não só uma das principais contradições atuais do nosso país, como também indícios a respeito dos presentes desafios da esquerda.

A crise que assola nosso país tem faces trágicas
A imposição da austeridade, a retirada de direitos básicos, o retrocesso de garantias humanitárias e o desemprego são algumas das expressões da crise social. Somado a isso, a crise habitacional no país avança. Entre 2007 e 2014, por exemplo, muito embora tenha ocorrido um crescimento do número de moradias no país, o déficit habitacional permaneceu elevado. Estima-se que, em 2015, 30% dos lares no Brasil estavam comprometidos por gastos excessivos com aluguel. No total, 3,8 milhões de domicílios contavam com esse problema em 2015.

Na região do ABC, os dados de moradia são engrossados por outro indicador, o desemprego. Calcula-se que o ano de 2017 começou com 233 mil pessoas desempregadas na região, ou seja, cerca de 17% da população economicamente ativa. Se cruzarmos os dados de défice habitacional com o desemprego na região, podemos fazer uma estimativa trágica sobre a questão habitacional. O problema de moradia não só afeta as sete mil famílias da ocupação, mas também outras dezenas de milhares de pessoas. Em realidade, há muito em comum entre os que ocupam o terreno vazio e os moradores do prédios ao redor.

Face a essa realidade, fica a questão: Como solucionar os problemas do nosso país, em particular, os problemas de moradia?

Se é um fato que essa pergunta existe nos dois lados do muro, tanto o dos ocupantes, como o dos moradores dos condomínios ao lado , talvez a resposta seja diferente entre eles. Enquanto um lado acredita que a solução virá de um esforço coletivo, o outro acredita que se trata de um esforço individual. E é talvez nessa dicotomia que resida a força simbólica da ocupação Povo Sem medo de São Bernardo. Pois é essa dicotomia que divide trabalhadores em todos problemas que vivemos no nosso país. Estamos divididos quando uma parte acredita que venceremos a crise quando lutarmos coletivamente contra seus causadores, enquanto outra parte deposita a fé apenas no esforço individual, exagerando no semelhante o inimigo, e não o aliado.

Terreno que carrega história
Também vizinha da ocupação está a Scannia, uma das mais importantes montadoras do Brasil e da região. Em 1978, num país assolado pela inflação, com reposições salariais irrisórias, ausência de democracia, e até manipulação de dados quanto à inflação, no dia 12 de maio os trabalhadores desta fábrica bateram o cartão, mas não operaram as máquinas. Cruzaram os braços e iniciaram uma greve. E essa rapidamente generalizou-se nas fábricas da região.

Esse movimento foi um marco para o surgimento de um novo sindicalismo, que foi, anos mais tarde, o protagonista na luta contra a ditadura e por melhores condições de vida. Naquele maio de 1978, os operários da Scannia conquistaram trabalhadoras e trabalhadores do ABC e do Brasil para a ideia de que as soluções para os problemas que viviam não residia em esforços individuais, mas sim, na luta coletiva da classe trabalhadora contra um inimigo comum: os ricos e poderosos do nosso país.

Hoje, a despeito de anacronismos, cercar de apoio a ocupação Povo Sem Medo de São Bernardo não significa apenas solidarizar-se com as sete mil famílias. Significa, também, disputar corações e mentes para a ideia de que somente lutando coletivamente podemos solucionar nossos problemas individuais. Significa, sobretudo, fortalecer e disputar, com cada trabalhadora e trabalhador, aquele velho, porém necessário e atual, sentido comum de classe.