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MUNDO

Depois de mais de 50 anos apoiando a ocupação, o que pensava a esquerda israelense que iria ocorrer?

Gideon Levy
Yonatan Sindel/ Flash90

Nesta semana ocorreram novas eleições para o Parlamento israelense. A razão é que nenhuma coalizão de partidos conseguiu uma maioria estável entre os 120 parlamentares nas 4 eleições nos últimos anos.

Desta vez, os resultados determinaram um giro à direita ainda mais pronunciado. A grande novidade foi a força de uma extrema-direita ainda mais chovinista e anti-palestina, que propõe, entre outras infâmias, a expulsão de todos os palestinos com cidadania israelense que não jurem lealdade total ao estado judaico. As negociações finais para definir o acordo começarão neste domingo. O que garantirá uma maioria de 64 membros do Parlamento, liderada por Benjamin Netanyahu, um antigo direitista e que já é o dirigente que mais tempo esteve à frente de governos em Israel. Suas credenciais racistas já eram conhecidas e foi responsável por inúmeros ataques sangrentos à população palestina, inclusive massacres em Gaza. Publicamos abaixo o artigo de Gideon Levy, um valente jornalista israelense que há muitos anos se opõe à ocupação dos territórios conquistados na guerra de 1967 e à discriminação aberta aos palestinos inclusive dentro das fronteiras estabelecidas na formação do estado há mais de 74 anos.

Depois de mais de 50 anos apoiando a ocupação, o que pensava a esquerda israelense que iria ocorrer?

Publicado em 03/11/2022, no jornal Haaretz

O dia após as eleições mostrou que a sociedade israelense se tornou parcialmente religiosa e majoritariamente racista, sendo o ódio aos árabes seu principal combustível, sem ninguém para se opor a ele.

O que vocês pensavam que ocorreria? No que estava pensando a esquerda sionista, que está em coma desde os Acordos de Oslo? Que seria possível voltar ao poder ao sair do coma? Com as mãos abanando? Sem uma alternativa e sem uma liderança? Somente em base ao ódio a Netanyahu? Além disso, não tinha nada a oferecer.

Ninguém deve ser surpreender pelo que ocorreu. Não poderia ter sido distinto. Isso começou com a ocupação – desculpem-me por esse lugar-comum irritante – mas foi aí que isso realmente como começou e tinha que culminar em um governo [baseado] no racismo e na transferência (1). Cinquenta anos de incitação contra os palestinos e de táticas para impor o medo sobre eles não poderiam culminar em um governo de paz. Cinquenta anos apoio quase total, por parte da esquerda e da direita sionistas, à ocupação, não poderia terminar de qualquer outra forma que com Ben-Gvir (2) como o herói popular. Uma ocupação que nunca termina só poderia conduzir ao governo Benjamin Netanyahu-Itamar Ben-Gvir. Porque, havendo uma ocupação, é preciso adotar sua versão genuína, uma que não tenha nenhuma vergonha disso – a versão de Ben-Gvir.

Era simplesmente impossível continuar com as ilusões – [um estado] judaico e democrático, uma ocupação esclarecida, uma ocupação temporária – e todo o cansativo repertório de expressões. O tempo da verdade chegou e é isso que Netanyahu e Ben-Gvir vão nos dizer.

Ontem (2/11/20220), Israel acordou para um novo dia, em que todas as hesitações e os eufemismos se tornaram coisas do passado. Daqui para diante, a ocupação é somente isto, e o mesmo vale para o supremacismo judaico em Israel. Daqui para diante, o sionismo será promovido para o mesmo nível de racismo declarado. Ontem, a morte da Linha Verde (limites de Israel antes da guerra de 1967) foi oficialmente declarada: a ocupação é aqui, em todos os lados. Todos os que pensavam que o que ocorria em Yitzhar (3) permanecia somente em Yitzhar estavam se enganando a si próprios. Todos os que pensavam que Yesha (4) era lá e não aqui estavam equivocados. Já faz bastante tempo que Yesha estava avançando a passos largos para estar mais próxima de Israel, com seu arraigado nacionalismo e fundamentalismo e, em todos esses anos, ninguém buscou impedir isso. Agora é tarde demais. Dois dias atrás, esse movimento foi completado.

 

Notas

1 Transferência é um antigo termo utilizado pelos sionistas ainda antes da Nakba (catástrofe, em árabe) de 1948 para se referirem à expulsão dos habitantes locais para viabilizar um estado com maioria judaica. Esse procedimento foi efetivado sobre a população palestina que habitava a Palestina há séculos [Nota da tradução].

2 Itamar Ben Gvir é um colono judaico que habita um assentamento na Cisjordânia. É deputado de extrema-direita que tem como inspiração Baruch Goldstein, um fanático racista, que assassinou 29 civis palestinos em Hebron em 1995. Sua ascensão meteórica ajudou a projetar a coalizão Judaísmo Religioso de 6 para 14 deputados no Parlamento israelense. Sua adesão é decisiva para que seja formado um novo governo chefiado pelo direitista Netanyahu. Ressalte-se que o crescimento da direita judaica se combinou com a perda de força da chamada “esquerda sionista”, cujo representante mais conhecido, o Meretz, que tinha 6 deputados não ultrapassou a cláusula de barreira de 3,25%. A minoria palestina de Israel votou em pequeno número (55% do total dos eleitores potenciais), diminuindo seus deputados de 15 para 10, divididos entre o partido islâmico (que participou pela primeira vez na história de Israel no governo de centro-direita anterior, liderado por Yair Lapid) e o Hadash, que inclui militantes do antigo Partido Comunista israelense, com participação de judeus israelenses, mas com maioria de cidadãos palestinos de Israel.  

3 Colônia judaica próxima de Nablus na Cisjordânia e habitada por judeus ultra-ortodoxos.

4 Acrônimo em hebraico que se refere à Judeia e Samaria (nomes judaicos para a Cisjordânia) e à Faixa de Gaza).

Tradução por Waldo Mermelstein