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MUNDO

Após a retaliação do Irã 

Israel provavelmente usará seu ataque limitado ao Irã para receber luz verde do governo Biden para invadir Rafah. Embora a resposta comedida possa ter evitado uma guerra regional, o preço poderia ser pago em sangue palestino. 

Mitchell Plitnick, do portal Mondoweiss
Salampix/Abaca via Zuma Press/APA Images

A resposta imediata dos Estados Unidos e da Europa ao ataque retaliatório do Irã a Israel no último fim de semana foi tão previsível quanto hipócrita. Com base nas declarações públicas dos países ocidentais, nunca se saberia que Israel havia bombardeado o consulado iraniano em Damasco. As embaixadas e consulados de um país são considerados como território soberano desse país, então isso foi uma clara provocação. Não há dúvida de que Israel queria escalar seu confronto com o Irã.

O ataque do Irã foi uma resposta comedida. Não pretendia causar danos significativos a Israel, nem mesmo aos locais militares que foram alvos exclusivos dos drones e mísseis iranianos. A República Islâmica deixou que todos, incluindo os Estados Unidos e Israel, soubessem o que estava prestes a fazer, intencionalmente dando-lhes tempo suficiente para preparar suas defesas.

Israel prometeu uma resposta, mas quando chegamos à manhã de sexta-feira, ficou evidente que Israel havia recuado de sua tentativa de escalar as tensões com o Irã, muito provavelmente percebendo que os Estados Unidos fariam tudo o que pudessem para ficar de fora e evitar uma guerra regional. O Irã também deixou claro que está virando a página deste capítulo. Então, em que estado isso deixa a região agora?

A corrida da direita israelense contra o tempo

Como observei recentemente, a extrema-direita israelense sabe que tem um tempo limitado no controle de Israel e acredita que é improvável que um governo de direita israelense mais típico irá tão longe quanto ela para provocar uma guerra com o Irã e enfrentar a opinião pública mundial em seu genocídio dos palestinos.

No entanto, apesar de toda a fanfarronice de Israel, será difícil para ele travar uma guerra total com o Irã e completar sua campanha genocida em Gaza ao mesmo tempo. Isso é especialmente verdadeiro se os EUA não ajudarem Israel em um ataque ao Irã e resistirem a se deixar arrastar para outra guerra no Oriente Médio.

De fato, um dos efeitos do ataque do Irã foi o de aliviar um pouco a pressão de Israel sobre Gaza. Seu apoio em todo o mundo vinha diminuindo severamente devido ao seu genocídio descarado, especialmente após a morte de trabalhadores humanitários da World Central Kitchen, em sua maioria brancos, cujas vidas são consideradas muito mais valiosas do que as dos palestinos por líderes dos EUA, Reino Unido e Alemanha.

O grande volume de projéteis lançados contra Israel ajudou a reviver a imagem de Israel como vítima de hostilidade implacável de sua “vizinhança agressiva “. Os debates em Washington, que estavam apenas começando a ganhar algum impulso, se acalmaram após o ataque do Irã, já que os democratas que estavam começando a ficar inquietos com as ações de Israel em Gaza agora estão se concentrando no terreno politicamente mais seguro da defesa de Israel contra o Irã.

Também há todas as razões para acreditar que este ataque iraniano é exatamente o lubrificante necessário para desimpedir o caminho em que o pacote de ajuda suplementar de US$ 14 bilhões de Joe Biden para Israel está parado1.

Yoav Gallant informou diretamente seu homólogo americano, o secretário de Defesa Lloyd Austin, que Israel retaliaria. Na manhã de sexta-feira, eles fizeram isso, mas o fizeram de uma forma que não aumentou ainda mais as tensões. Embora essa tenha sido uma decisão melhor na esperança de evitar uma guerra regional e que certamente tenha ganhado alguns pontos em Washington, Londres e Bruxelas, o preço por isso, como tantas vezes acontece, provavelmente será pago em sangue palestino.

O caminho para Rafah

Parece muito provável que os relatos de que Israel essencialmente ofereceu aos EUA uma escolha – ou atacamos o Irã ou prosseguimos com a invasão planejada de Rafah – foram precisos e que os EUA deram sinal verde para a incursão de Rafah, ao passo que Israel concordou em parar de escalar [a tensão] com o Irã por enquanto. O governo Biden nega isso, mas também silencia os alertas contra uma invasão de Rafah que emitia regularmente antes do ataque do Irã. E deixaram claro que foram informados do ataque planejado por Israel na sexta-feira.

Em mais um reflexo de como as vidas palestinas não têm valor para o presidente dos EUA, Joe Biden, essa escolha foi feita. Embora haja uma certa lógica cruel em pensar que é preferível terminar a operação genocida em Gaza do que ver uma ação que quase certamente desencadearia uma guerra regional, ela é também uma lógica equivocada, além de monstruosa. Há poucas razões para acreditar que completar o genocídio em Gaza faria qualquer coisa além de atrasar uma escalada israelense com o Irã.

Mais importante, a ideia de que atacar o Irã ou invadir Rafah eram as duas únicas opções é falsa. Biden é mais do que capaz de dizer a Israel: “Não, você não fará nenhuma das duas”. Mas, depois de três anos em que Biden abraçou um governo israelense de ultradireita, está claro que, independentemente do que Israel faça, Biden não dará esse passo.

De fato, embora Biden mereça crédito por dizer imediatamente a Israel que os EUA não apoiariam um ataque israelense ao Irã, essa mensagem direta a Netanyahu contrastou fortemente com as advertências qualificadas que ele fez sobre Rafah. No caso de Gaza, Biden aprovou implicitamente uma invasão, com a ressalva de que Israel tomasse providências para evacuar civis.

Assim, Israel teria comprado cerca de 40.000 tendas que pretende erguer a uma curta distância de Rafah. Parece que este gesto irrisório e obviamente ineficaz é suficiente para acalmar as preocupações americanas.

Vale lembrar que Rafah, uma área que já estava lotada com cerca de 275 mil pessoas antes de 7 de outubro, abriga atualmente cerca de 1,5 milhão de palestinos. Mesmo que acreditemos na ficção de que Israel pretendia reverter completamente seu comportamento de seis meses em que deliberadamente atacou civis palestinos, 40.000 tendas a poucos quilômetros de distância dificilmente mitigarão os danos que serão feitos em Rafa.

Israel, é claro, nunca teve a intenção de ser dissuadido em sua busca pelo genocídio em Gaza. Também não será dissuadido por muito tempo em sua busca para enfrentar o Irã. Netanyahu, como eu e tantos outros observamos, quer manter a guerra o maior tempo possível. Ele estava, portanto, disposto a esperar por Rafah, e agora que a espera está prestes a terminar, poderá criar mais provocações para o Irã mais tarde.

Enquanto isso, o aumento generalizado da violência e do caos na Cisjordânia por colonos e militares continuará sua trajetória ascendente, com pouca esperança de que essa maré seja contida. Os últimos esforços para reunificar a liderança palestina fracassaram e a Autoridade Palestina colaboradora contenta-se em buscar a adesão plena às Nações Unidas, um sonho que os Estados Unidos frustraram mais uma vez.

Irã, Jordânia e outros países árabes

O Irã deixou claro a Israel que era capaz de se defender e estava preparado para fazê-lo. Os militares israelenses compreendem muito bem que o fato de que a barragem do Irã causou danos insignificantes teve muito a ver com que os Estados Unidos e o Reino Unido interceptarem muitos dos projéteis antes que Israel precisasse lidar com eles. E tanto Israel quanto seus aliados foram capazes de fazer isso porque o Irã lhes deu aviso prévio. O Irã não vai avisar Israel e seus aliados se quiser causar danos reais no futuro.

Isso não quer dizer que Israel não tenha uma defesa aérea muito formidável. Na verdade, o ataque a Esfahan, no Irã, na sexta-feira, foi concebido por Israel para mostrar a sua superioridade militar nesse respeito, o que é muito real. Embora o enorme sucesso de Israel e seus aliados em interceptar 99% dos projéteis disparados pelo Irã possa não ser totalmente replicado sem o aviso prévio fornecido pelo Irã, Israel respondeu demonstrando que apenas alguns de seus próprios mísseis foram capazes de penetrar nas defesas aéreas do Irã.

Ainda assim, o Irã deixou claro que Israel poderia ser atingido e o fez de uma forma que não levou a uma guerra regional.

Por outro lado, há a questão da tensão colocada nas relações do Irã com o mundo árabe. A República Islâmica tem tentado diminuir o volume de sua rivalidade com a Arábia Saudita, e tem encontrado um sucesso gradual.

Mas os sauditas veem esse esforço como a redução de riscos tendo outras opções de alianças caso os Estados Unidos não cheguem a um pacto de defesa e assistência nuclear que Riad deseja como compensação pela normalização das relações com Israel.

Este ataque do Irã indicou que a aliança na qual os EUA têm trabalhado tanto está se consolidando, apesar da persistente ausência de relações normais entre Israel e Arábia Saudita. Mesmo assim, a participação saudita na operação para derrubar aeronaves iranianas não deve ser exagerada. A Arábia Saudita, assim como a Jordânia e os Emirados Árabes Unidos, tinham um forte interesse em garantir que, quaisquer que fossem as intenções do Irã, o risco de danos a Israel fosse minimizado para evitar uma grande escalada. Eles pagariam alguns dos preços mais altos se houvesse uma guerra regional.

A Jordânia tem uma grande população palestina e a antipatia popular por Israel, sempre forte, está além do esperado desde o início do genocídio de Gaza. A percepção de que eles ajudaram a defender Israel irritou muitos jordanianos. Dadas as dificuldades econômicas da Jordânia, irritar o público com uma ação como esta não é útil para a estabilidade do Reino Hachemita.

O argumento do governo de que eles estavam defendendo a Jordânia de objetos que penetraram em seu espaço aéreo é um absurdo. Eles sabiam que não tinham com o que se preocupar, pois sabiam exatamente para onde aqueles mísseis e drones estavam indo. Mas, como os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita, eles estavam muito preocupados com as repercussões caso um míssil iraniano causasse danos reais a Israel e queriam garantir que não fossem pegos no meio de uma nova guerra.

A raiva popular foi porque a Jordânia estava tão alarmada com o fato de o Irã denunciá-los publicamente por “ajudar Israel”, e foi a razão pela qual eles foram rápidos em argumentar que não estavam ao lado de Israel e que derrubariam qualquer projétil estrangeiro que violasse seu espaço aéreo. Embora ainda não se saiba se eles realmente derrubariam um drone, míssil israelense ou, especialmente, uma aeronave tripulada, estavam enviando uma mensagem a Israel para deixá-los, e seu espaço aéreo, fora de quaisquer planos de retaliação. Pelo que se sabe, relatos iniciais indicam que Israel não usou o espaço aéreo jordaniano para este ataque.

Ao mesmo tempo, a ação da Jordânia visava também cimentar a sua relação com Washington. Os jordanianos precisarão dessa relação, especialmente se os ataques israelenses a aldeias palestinas na Cisjordânia aumentarem, atraindo respostas de grupos armados lá. Isso quase certamente será aproveitado por Israel como uma desculpa para iniciar operações militares em maior escala na Cisjordânia (embora eles tenham que exercer muito mais precisão do que em Gaza devido à presença de centenas de milhares de colonos israelenses).

Nesse caso, a Jordânia precisará contar com o máximo de cooperação possível de Washington para evitar um cenário em que Israel force os palestinos a saírem da Cisjordânia e atravessar o rio Jordão, como tentou, e não conseguiu, forçar as pessoas de Gaza para o Egito.

As muitas frentes em que Israel está lutando – incluindo, claro, o confronto com o Hezbollah no Líbano – continuarão a entrar em espiral até que os Estados Unidos e a Europa encontrem vontade política para freá-lo. Embora tenha havido alguns sinais de que essa vontade está começando a se formar, também é claro que, neste momento, o Ocidente não tem a visão ou a liderança necessárias para fazer o que é necessário para os melhores interesses de todos os envolvidos, exceto os de alguns líderes israelenses corruptos e zelosos.

Original em After Iran’s retaliation. Tradução de Waldo Mermelstein, do portal Esquerda Online.