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Ocupações do MST, sim!

Coletivo de Comunicação do MST na Bahia

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

  A mentira corre mais que a verdade.
                                                   A verdade é como o azeite, vem sempre à tona da água.
                                                                                            Ditados populares portugueses

1. A Bahia ganhou duas manchetes depois do carnaval. A mídia comercial transformou o episódio da ocupação de uma parcela de uma fazenda da Suzano na Bahia, organizada pelo MST local, em pretexto para um escândalo. Denunciou a mobilização de protesto do MST como “invasão criminosa”. Quis a ironia da vida que, na mesma semana, viesse a público a informação que grandes vinícolas da Serra Gaúcha como a Aurora, Salton e a Cooperativa Garibaldi, contrataram, através de uma obscura Fênix Prestação de Serviços, trabalhadores, que vieram, não por acaso, da Bahia, e estavam em condições análogas à escravidão, num alojamento onde viviam sob ameaças e vigilância armada, e de onde só podiam sair para trabalhar. O significado das duas notícias é indivisível, mas não ocorreu aos grandes grupos de mídia fazer qualquer conexão. As vítimas sem terra da concentração de latifúndios no Brasil são obrigadas a migrar de seus Estados no norte e nordeste para o trabalho sazonal de colheitas no sul e no sudeste, forçados a aceitar a superexploração. Ninguém pode acreditar que esta realidade poderá ser superada, algum dia, sem muita resistência e luta. Nenhuma mudança virá a “frio”. Terá que ser “a quente” ou nunca. A esquerda não pode vacilar. Ocupações do MST, sim! 

2. A Suzano não é, somente, uma “grande” empresa, é uma corporação multinacional poderosa: no seu site informa que tem 35.000 funcionários, controla 11 plantas industriais, possui 1,3 milhão hectares, capacidade instalada para a produção de 10,9 milhões de toneladas de celulose por ano. Além de mais de quinze Estados, no Brasil, atua na Argentina, EUA, Canadá, China, Suíça, entre outros países. Apesar desta dimensão gigante, ignorou durante meses, solenemente, os pedidos do MST para que fosse respeitado um acordo de 2010 para o assentamento de seiscentas famílias. Nada, nadinha, “niente da niente”. Pura soberba. Já as vinícolas gaúchas transferiram para a terceirizada Fênix a responsabilidade e pediram, “inocentemente”, desculpas e ponto final. Uma vergonha. Felizmente, a corajosa ABJD, Associação Brasileira de Juristas pela Democracia está lançando um Manifesto em que exige a expropriação das terras das empresas flagradas na exploração de trabalho escravo.   

3. Dias e dias de “barulho” indignado nas televisões, rádios e memes nas redes sociais “satanizando” o MST. Quatro argumentos foram esgrimidos em Editorial pela Folha de São Paulo, um grupo de comunicação que se alinhou com frações da burguesia liberal contra a candidatura à reeleição de Bolsonaro, não disfarçou muito o apoio à terceira via, no primeiro turno, com Simone Tebet, e agora faz uma disputa pública de exigência sobre o governo Lula. Primeiro: a fazenda de eucaliptos seria “produtiva”. Segundo: a ocupação seria uma invasão de propriedade privada, algo inviolável. Terceiro: o MST estava “apontando” contra a Suzano, mas na verdade queria pressionar pela indicação de cargos no INCRA. Quarto, mas não menos revelador, a reforma agrária seria uma política social obsoleta, arcaica e, pior ainda, muito “cara”, portanto, ineficaz, em função dos sucessos de produtividade do agronegócio.

4. Os quatro argumentos são insustentáveis. Primeiro: considerar “produtiva” a plantação de eucaliptos é um deboche, diante das sequelas irreparáveis geradas pelos “desertos verdes”, porque está reconhecido pelas mais insuspeitas fontes, que causam uma redução brusca na biodiversidade, e esgotamento das reservas de água. Segundo: nem, legalmente, a propriedade privada, menos ainda o latifúndio,  é considerada inviolável no Brasil, porque ela deve respeitar uma função social. Terceiro: é uma teoria conspiratória, digna de bolsonaristas desmiolados, associar a ocupação na Bahia com indicações no INCRA ou qualquer outro cargo no governo. Quarto: a denúncia obtusa da reforma agrária, em função de “embriaguez ideológica”, obedece somente à defesa dos interesses dos latifundiários do agronegócio, a fração mais selvagem e anacrônica do capitalismo brasileiro.  

5. As ocupações do MST merecem a mais irrestrita solidariedade. O MST já demonstrou, incontáveis vezes, firmeza na luta e flexibilidade tática. Acumulou habilidade de saber a hora de avançar, a hora de manter posições e a hora de recuar. Ações têm um impacto na consciência, não somente a luta de ideias. O argumentos são indispensáveis para legitimar a justiça das lutas populares, mas nada é mais importante que a mobilização de massas. Cerca de mil e quinhentos trabalhadores ocuparam a fazenda da Suzano. Eles não estavam lutando somente por eles. Estavam na luta contra as vítimas de trabalho escravo no Rio Grande do Sul. Estavam em luta por todos nós. Estamos em uma relação de forças em transição, depois de muitos anos, desde 2016, de uma situação reacionária. A fração burguesa liberal está em disputa pública obre os rumos do governo Lula. Movimentos sociais devem ter, também, iniciativa. Nos próximos dias 8 de março sairemos às ruas no dia internacional da luta das mulheres. E, no dia 21 de março, responderemos ao chamado unitário da Frente Brasil Popular e Sem Medo.   

NOTAS

1 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/02/trabalhadores-resgatados-em-situacao-analoga-a-escravidao-no-rs-voltam-para-casa.shtml Consulta em 06/03/2023

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/03/sem-causa.shtml Consulta em 06/03/2023.
3 https://super.abril.com.br/coluna/oraculo/por-que-eucalipto-e-chamado-de-deserto-verde/ Consulta em 06/03/2023.