“Nada é tão poderoso neste mundo como uma ideia cujo momento chegou.”
Provérbio popular espanhol
1. Sim, é possível. Boulos pode vencer com uma cara de esquerda, sem dissimulação. Estamos a mais de um ano de distância das eleições, e isso impõe limites para previsões sérias. O contexto da conjuntura, em especial, a avaliação do governo Lula em 2024 será central. Mas não impede tirar lições do passado. A esquerda venceu três vezes as eleições para prefeitura em São Paulo, mas nunca uma reeleição. Não foi uma coincidência. Parece haver um padrão: o PT vence a prefeitura, mas não consegue a reeleição, e só se recupera oito anos depois, o intervalo longo de duas gestões. Ou seja, o desgaste social e político da direita foi sempre decisivo para abrir o caminho da vitória, mas garantir a continuidade do projeto, até hoje, não foi possível. Ou seja, cometeu muitos erros. Reconhecer que esta condição estará presente em 2024 estabelece um primeiro marco para a discussão. Em 1992, Maluf venceu e conseguiu eleger Pitta em 1996. Em 2004, José Serra venceu e conseguiu eleger Gilberto Kassab pelo PSD em 2008. Em 2016, João Dória venceu, e conseguiu eleger Bruno Covas em 2020. Bolsonaro e Lula são as duas lideranças mais influentes no Brasil. Ambos terão um papel imenso nas eleições municipais, mas 2024 não será uma cópia de 2020 ou 2022. O bolsonarismo vai ter muitas dificuldades de transferência de sua influência para Ricardo Nunes do MDB. Já a possibilidade de Lula poder repetir a façanha de transferência de votos que garantiu Haddad no segundo turno de 2018 para Boulos é muito maior. A corrente que sempre defendeu que a esquerda não pode vencer eleições com sua própria cara errou. Este debate assumiu várias formas. Vem desde 2018, quando surgiu a polêmica de que somente Ciro Gomes poderia vencer Bolsonaro e, portanto, o PT e o PSol deveriam recuar das candidaturas de Haddad e Boulos, e apoiá-lo. Erraram. Há uma oportunidade e é preciso se preparar para lutar com vontade de vencer. A esquerda deve inspirar “instinto de poder”, “conquistar” a cidade e provar que, mais do que ganhar a prefeitura, quer “mudar a vida”. Isso é possível.
2. Consideremos os números com atenção. O pior momento da extrema-direita foi em 2008, depois do desastre de Pitta e de três derrotas seguidas de Paulo Maluf que caiu de 17% em 2000, para 12% em 2004, e 6% em 2008. Embora Celso Russomano, em 2012, tenha conseguido ocupar parte deste espaço, com quase 22%, a extrema-direita não se recuperou, até que em 2015/16 ganhou audiência nas passeatas da Avenida Paulista, e foi essencial para eleger Doria prefeito em primeiro turno, e a vitória de Bolsonaro em 2018. O pior momento do PSDB foi em 2000, quando o auge do desgaste do governo FHC reduziu o voto dos tucanos com Serra a 17%. Recuperaram em 2004 com 43,5%, caíram para 22,5% em 2008, mas é preciso lembrar que a eleição foi vencida por Kassab que era uma sublegenda de Serra e, embora tenham vencido o primeiro turno com Serra em 2012 com 30%, perderam na virada do segundo turno para o PT de Haddad, por 44% a 55%. O seu auge foi a eleição de Dória, em primeiro turno, em 2016 com mais de 53% em primeiro turno. O pior momento do PT foi em 2016 com Haddad tentando a reeleição com 16,7%. Em1992, Suplicy tinha conquistado 30,6% e perdeu para Maluf no segundo turno, mas chegou a 42%. Em 1996, Erundina perdeu para Pitta com 22,8% no primeiro turno, e 37,7% no segundo. Em 2000, Marta Suplicy ficou na frente de Maluf no primeiro turno com 34,4%, e venceu no segundo com 58,5%. Em 2004, Marta teve 35,8% no primeira e 45% no segundo. Em 2008, Marta teve 32% no primeira, mas só chegou a 39% no segundo. Em 2012, o PT ficou em segundo lugar com 29,7%, um por cento atrás de Serra, mas venceu de virada no segundo turno com 55% a 44% para Serra.
3. O contexto da relação social e político de forças é a chave destas oscilações. Em 1988, o país estava no miolo do ascenso contínuo de mobilização operária e popular da década de oitenta, e sofria a experiência da superinflação e da crise crônica do governo Sarney, que abriu o caminho para que Lula chegasse ao segundo turno da primeira eleição presidencial. Em 2000, o Brasil estava diante da crise final dos ajustes neoliberais que, durante dez anos, tinham sido iniciados por Collor, mantidos por Itamar Franco e, depois por Fernando Henrique Cardoso, esgotado pelo desemprego crônico, e ferido pelos escândalos que precipitaram a reeleição. Em 2012, em uma situação de quase pleno emprego e redução das desigualdades sociais, a popularidade de Dilma Rousseff era elevada, depois de dez anos de gestão de governos de coalizão liderados por Lula. Parece razoável discernir um padrão: a esquerda vence em São Paulo depois do desgaste de gestões dos partidos de direita, ou “fadiga de material” de prefeitos desmoralizados, como Jânio Quadros em 1988, Celso Pitta em 2000, e Gilberto Kassab em 2012, e no embalo de uma disposição de luta mais elevada. Ricardo Nunes fez até hoje um governo reacionário, cúmplice dos interesses imobiliários, e medíocre em todos os terrenos. Mesmo que decida “embandeirar”, por desespero, a zeladoria como eixo de final de mandato, deve apodrecer, politicamente, no cargo. O apoio de Bolsonaro poderá ser o ‘abraço dos afogados”. Mas não será derrotado sem uma luta duríssima, porque a eleição paulistana será a principal antessala da eleição presidencial de 2026, a “mãe” de todas as batalhas de 2024.
4. O principal argumento esgrimido contra Guilherme Boulos é que ele pode passar para o segundo turno, como em 2020, mas vai perder as eleições. Por quê? Porque ele é de esquerda “demais”, e a esquerda nunca foi maioria em São Paulo. Este argumento tem um grão de verdade, mas é falso. A esquerda não deve renunciar a defesa de seu programa. Sempre fomos, ideologicamente, uma corrente de opinião minoritária. Não só em São Paulo, aliás, em todo o Brasil. Mas isso não é nem o mais importante, nem decisivo em eleições, como demonstrou, de forma, dramaticamente, apertada a eleição de Lula em 2022. A força da esquerda deve ser considerada em quatro dimensões diferentes: a força social, política, eleitoral e ideológica. O mais importante é a força social e política. A força social da esquerda é a expressão da sua implantação nas lutas dos explorados e oprimidos e suas organizações. Ela se manifesta como capacidade política maior ou menor em função dos fluxos e refluxos das lutas populares. Quando há lutas nos fortalecemos. Quando a moral cai, enfraquecemos. Há uma relação dialética entre força social, política e eleitoral. A vitória de Lula, em especial na capital, colocou na ordem do dia a possibilidade de Boulos vencer. Nossos inimigos são muito conscientes disso, por isso devem se unir em torno de Ricardo Nunes. A dimensão ideológica é sempre a mais desfavorável de todas, porque prevalece no senso comum, mesmo das camadas mais oprimidas do povo, as ideias que são dominantes na sociedade. Elas correspondem à visão de mundo da classe que domina e dirige: os capitalistas. Somos uma minoria, ideologicamente. Porém, esta ideia é parcial, portanto, perigosa, porque pode alimentar o derrotismo, antes da luta começar. A extrema-direita é, também, ideologicamente, minoritária, embora, politicamente, muito poderosa. Os números disponíveis oscilam, mas parece razoável estimar o núcleo duro do bolsonarismo em algo em torno de 12%, segundo as pesquisas, embora possa arrastar até 30% do eleitorado, se tiver uma candidatura poderosa. Acontece que em São Paulo, para 2024, não têm. Mantidas as atuais condições, a extrema-direita deverá apoiar o atual prefeito Ricardo Nunes, que nem sequer foi eleito. Assumiu diante da morte de Bruno Covas. O clã da família Tatto, liderado por Jilmar e seus irmãos Arselino, Ênio, Nilto e Jair Tatto, tem hegemonia eleitoral na Capela do Socorro, e muita influência na estrutura interna dos diretórios do PT na capital, e se posicionou contra Boulos por outras razões. A principal não é o medo da esquerda perder as eleições, que é impossível de ignorar, mas o receio de Boulos vencê-las. Se isso ocorrer, a relação política de forças entre PT e PSol muda de qualidade. O nome deste reflexo é sectarismo. Não é um bom critério.
5. Campanha eleitoral é a forma concentrada de luta de partidos. Existem, historicamente, três principais correntes políticas em São Paulo: a extrema direita, os liberais conservadores e a esquerda. A força relativa de cada uma oscilou nas últimas décadas, em função das conjunturas. Não são homogêneas. Dentro da extrema-direita há várias alas, inclusive os neofascistas. Entre os liberais, há os de centro-direita e os de centro-esquerda. Há, também, várias esquerdas, desde os “mega” moderados aos “super” revolucionários. Uma análise marxista considera uma pluralidade de fatores, mas prioriza uma análise de classe. A extrema-direita se apoia em frações burguesas e setores da classe média proprietária que se identificaram, durante duas décadas, com o “malufismo”, hoje herdada pelo bolsonarismo; o tucanato do PSDB, a principal representação nos últimos trinta anos da fração mais influente da burguesia paulista, e que tem o apoio da maioria da classe média; e a esquerda que se expressou por meio do PT, e se apoiou nos anos 1980 nos setores organizados da classe trabalhadora, mas ampliou sua influência nos anos 1990 para setores médios e, sobretudo, depois da vitória de Lula, para o semiproletariado popular na periferia. No Brasil, a imensa maioria do povo não cultiva uma identidade ideológica forte. Tampouco mantém uma lealdade partidária. A esquerda foi associada, simplesmente, à ideia de oposição, durante muito tempo, como uma herança de duas décadas de ditadura militar, ou seja, o intervalo de uma geração. Ser de oposição era ser de esquerda. Mas isso mudou, depois de treze anos nos governos federais em Brasília. Ser de esquerda passou a ser indivisível, também, da aspiração por justiça social. Sofremos derrotas grandes, pesadas, dolorosas. Mas não fomos destruídos. E os quatro anos de Bolsonaro não foram em vão. Foi possível vencer em 2022. E a gestão de Ricardo Nunes e de Tarcísio de Freitas serão julgadas, severamente, em 2024. Existe a possibilidade de vencer.
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