Por: Michel Silva, de Blumenau, SC
Possivelmente uma das séries mais comentadas e elogiadas recentemente tem sido Black Mirror. Essa série tem um princípio bastante simples: mostrar os efeitos da tecnologia sobre a sociedade em um futuro (bastante) próximo. A maior parte dos treze episódios exibidos até o momento está centrada nos efeitos do “espelho negro” – que pode ser interpretado como uma tela de celular ou mesmo uma tela de televisão – sobre a vida das pessoas. Contudo, os episódios da série não são um elogio à tecnologia, mas uma crítica ao caráter deletério que provoca na convivência em sociedade e na vida das pessoas.
Os temas abordados são os mais variados. No primeiro episódio da série, uma princesa é sequestrada e exige-se um bizarro pagamento de resgate: o primeiro-ministro britânico deveria manter relações sexuais com um porco, e o ato transmitido ao vivo pela televisão. Embora o governo se esforce para manter o máximo de sigilo acerca do sequestro e do pedido de resgate, a mídia não apenas divulga todos os detalhes, como constrói uma narrativa sensacionalista. Quanto à população, aguarda ansiosamente pela execução do bizarro pagamento, em frente à televisão, deixando inclusive as ruas completamente vazias. Contudo, esse mesmo público, em frente à televisão, se mostra enojado quando a condição do pagamento do resgate é cumprida pela primeira-ministra.
O controle do “espelho negro” sobre a vida das pessoas também se expressa na relação com as aparências que se busca manter. Nesse aspecto, o primeiro episódio da terceira temporada acaba assumindo um tom cômico por lembrar muito o cotidiano atual das pessoas nas redes sociais. No episódio, todas as pessoas passam a maior parte do tempo fixadas em seus celulares, atribuindo notas de um a cinco para todas as pessoas com quem interagem. O que se vê é uma competição de popularidade em tempo real, onde as maiores notas garantem o acesso a uma série de bens de consumo e privilégios.
Contudo, os debates podem ser maiores do que apenas o “espelho negro”. No primeiro episódio da segunda temporada, uma jovem busca na tecnologia formas de suprir a ausência do namorado recentemente morto. Começa com uma espécie de bate-papo, em que textos escritos em vida pelo jovem morto servem como parâmetro para que sejam elaboradas, por uma espécie de inteligência artificial, as respostas mais prováveis em um diálogo. Contudo, essa tecnologia que permite o diálogo com um ser artificial arquivado em uma “nuvem” virtual avança até que seja possível reviver uma réplica do jovem morto em um androide, que não apenas fala e exterioriza sentimentos, mas que até mesmo faz sexo. Ele seria um ser artificialmente criado que aparentemente poderia substituir o ente morto. Contudo, como fica demonstrado na parte final do episódio, o androide não tem como ser a mesma pessoa, afinal é um ser criado com rotinas mecânicas e definidas e que não tem a autenticidade imperfeita de uma pessoa real.
Outro tema que aparece em diferentes episódios é o que poderia ser chamado de uso da tecnologia para promover formas paralelas de justiça. No segundo episódio da segunda temporada, acompanhamos uma jovem sem memória que por uma razão desconhecida por ela é perseguida e atacada por pessoas mascaradas. Ao mesmo tempo que alguns tentam matá-la, outras pessoas permanecem fixas em seus celulares, gravando as imagens da perseguição. No final descobre-se que a mulher perseguida foi cúmplice no sequestro e assassinato de uma criança, e que a perseguição diária é sua punição, teatralizada dia a dia por aquelas mesmas pessoas.
Essas formas de punição também aparecem no terceiro episódio da terceira temporada, no qual um conjunto de pessoas que tiveram vídeos e imagens íntimos acessados pela internet se vê obrigado a executar tarefas a mando de um desconhecido, que entra em contato apenas por mensagens de textos, e que os ameaça com o vazamento das imagens e a exposição de seus “podres”. Contudo, mesmo após o cumprimento das tarefas, todas as imagens e vídeos são divulgadas, e então o espectador descobre que as personagens pelas quais nutriram simpatia e até compaixão durante o episódio têm nos materiais vazados crimes como pedofilia e racismo, entre outros. No caso dos dois episódios, trata-se de punições que ocorrem de forma imediata, por meio de tortura psicológica, tendo pessoas comuns como juízes.
Portanto, há na série um conjunto de críticas, que passam pelo uso da presença exagerada e controladora da tecnologia na sociedade. Por outro lado, diante de todo o pessimismo que impregna os episódios, não se apresentam possíveis saídas para a solução dos problemas, ou melhor, naquela sociedade entra-se em um círculo cujas alternativas já estão controladas. Sabe-se que a tecnologia é dominada por alguém, possivelmente com recursos financeiras e se materializa em empresas, mas a crítica expressa na série acaba sendo muito mais para as consequências do que para possíveis causas. Em função disso, a crítica expressa nos episódios acaba sendo muito mais uma forma emocional e imediata do que a construção de um projeto alternativo. Existem alguns exemplos significativos disso.
No segundo episódio da primeira temporada, um grupo de jovens passa os dias pedalando em bicicletas e assistindo a todo tipo de vídeos, entre jogos, desenhos, eróticos, entretenimento e outros. Esse trabalho é recompensado com pontos que permitem a eles viver naquele espaço, uma vida limitada a assistir a programas de televisão e se alimentar. Um dos grandes sonhos expressos por alguns deles é poder deixar a bicicleta e se tornarem estrelas, inspirados nas celebridades que admiram das telas. O jovem protagonista acaba se apaixonando por uma das garotas e doa sua pontuação para que ela participe do teste de um programa de talentos. Ela, apesar da belíssima voz e excelente execução da música, não é considerada uma extraordinária cantora pelos jurados, mas, devido a sua beleza, é convidada a se tornar atriz em filmes eróticos. Embora hesitando no começo, acaba por aceitar o convite.
O jovem protagonista, enraivecido, se joga a conquistar todos os pontos possíveis para poder chegar a participar do programa de talentos e tentar se vingar do sistema que havia cooptado sua grande paixão. Para tanto, passa horas e mais horas sobre a bicicleta. Deixa de comer para não gastar seus pontos. Ele acaba por conseguir a pontuação necessária para se entrar no programa e executa uma apresentação de dança, mas sua atuação principal é uma denúncia do sistema de imagens falso que predomina naquela sociedade.
Ele afirma, ameaçando se suicidar, segurando um pedaço de vidro no pescoço: “Estamos tão loucos de desespero que não conhecemos nada melhor. Só objetos falsos e coisas para comprar. É como nos comunicamos, como nos expressamos. Compramos coisas”. Apesar do susto inicial, para surpresa do protagonista, os jurados do programa não apenas afirmam concordar com o discurso raivoso do jovem, como o convidam para fazer participações em um programa para dizer “verdades” sobre a sociedade. A raiva sem projeto político acaba por ser cooptada pela sociedade do espetáculo, tornando-se também um produto rentável.
A ausência de projeto político também se expressa em outro episódio em que se discute alternativas para a sociedade, ou melhor, mostra-se que em realidade não existem alternativas. Nesse episódio, é colocado em cena um ursinho azul criado por computador, chamado Waldo. Conhecido por seu sarcasmo e pelos muitos palavrões que fala, o ursinho acaba sendo colocado como candidato em uma eleição parlamentar local. Nos debates e em sua propaganda, ele se limita basicamente a “queimar” os demais candidatos e desqualificar qualquer proposta política que se apresente. Com isso, acaba não apenas caindo nas graças do público, mas se tornando favorito na eleição.
O comediante que dá vida ao Waldo, que tem um envolvimento pessoal com a candidata trabalhista, acaba por se arrepender dos rumos que as coisas vão tomando, ainda que tardiamente e sem a possibilidade de consertar o estrago que havia feito com Waldo. Mesmo perdendo a eleição, ficando atrás somente do candidato conservador, Waldo é exportado para o mundo. Essa forma de fazer a política desprovida de conteúdo acaba por ser levada a sério pelas pessoas, que se sentem cansadas do discurso dos partidos tradicionais e das promessas não cumpridas pelos “políticos”.
Esse esgotamento da política e esvaziamento de conteúdo do debate leva parte considerável das pessoas a passarem a não levar a sério mesmo projetos políticos consistentes, abrindo espaço para as alternativas de direita. São experiências recentes desse esvaziamento da política as desastrosas experiências com Donald Trump, nos Estados Unidos, e Beppe Grillo, na Itália.
Black Mirror apresenta um quadro pessimista não apenas de um futuro próximo, mas também da nossa própria sociedade. Os elementos abordados permitem perceber a urgência de se repensar a forma como estamos organizando nossas sociedades e que temos a necessidade urgente de questionar as raízes desses problemas. Se a série não apresenta uma crítica radical da sociedade do capital, pelo menos aponta um conjunto de elementos que permitem avançar em muitas análises e propor a construção de alternativas que estejam no mundo real. Para superarmos a atual forma de produção da vida, não há a necessidade de quebrar os espelhos que nos reflete, mas de olharmos para além deles e enxergar a sociedade real que nos cerca.
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