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Dossiês

1917: o mundo vai mudar de face num país inesperado

Não sou historiador profissional nem amador esclarecido, mas militante de esquerda que, como é o caso para muitos, amadurece suas opiniões com leituras, discussões, reflexões pessoais ou coletivas. O desenvolvimento político dos últimos anos, nacional e internacional, tomou caminhos desastrosos. Após mais de meio século de domínio burocrático do  movimento comunista e do país que deveria representá-lo, ocorreu o retorno, junto aos países que influenciava, a um capitalismo alucinado e desregrado, na mais pura tradição liberal, em alguns traços lembrando o banditismo dos anos 1920 em Chicago! Dois livros clássicos podem ilustrar este passo no vazio: O “Discurso sobre a Servidão Voluntária“, de Etienne de la Boétie e o inacreditável ‘Que faire des Pauvres“, do eminente liberal John Locke. A servidão voluntária, material e psicológica, a segunda facilitando e promovendo a primeira, surge com o bizarro encanto de parte das massas pobres com as extravagâncias e posicionamentos anti-democráticos e anti-intelectuais – irracionais –  como no caso do bolsonarismo. O segundo, que indaga  “O que fazer com os pobres”, constitui uma ilustração limitada e já horrenda no que se passa na cabeça de um clássico liberal britânico e no terreno da Palestina, sinistro presságio do que parecem desejar as classes dominantes num plano internacional. Eis o capitalismo progressista. As revoluções passadas, de que trato neste texto, mostram que, dadas condições hoje ausentes e que cumpre obter, um outro futuro é possível.

A Revolução dita de 25 de Outubro, no calendário juliano em vigor na Rússia pré-revolucionária, ocorreu em 7 de Novembro de 1917, segundo o calendário atual, dito gregoriano. Foi muito mais do que um levante, como ocorreram inúmeras vezes na história, levando à troca dos governantes e a alterações sócio-econômicas eventualmente importantes, mas que não alteravam o regime de propriedade e de bloco de classes no poder. Em 25 de Outubro de 1917 o mundo mudou de face. Surgia algo novo, a promessa da futura sociedade socialista, em que a propriedade privada dos meios de produção seria substituída pela propriedade coletiva, com o desaparecimento das classes sociais – a estrutura social vigente por mais de cinco mil anos, sob formas de escravidão, feudalismo, capitalismo e suas combinações e variantes, mas sempre caracterizadas pela subordinação social ligada à distribuição desigual da propriedade, base material da sociedade de classes.

A morte de Lenin em 1924 e a expulsão de Trotski do Partido bolchevique em 1927, marcam o começo de um processo tenebroso de contra-revolução, que levou a inúmeras derrotas do movimento revolucionário, até a formalização do retorno da então União Soviética ao capitalismo, em 1989, formalizado por um curto discurso do Primeiro Ministro de então, Gorbatchev. Há bons livros de história a respeito e não pretendo repeti-los ou completá-los. Escolhi abordar um espaço temporal ou um evento determinado e explorar as hipóteses e opiniões a respeito, procurando destacar acontecimentos que evocam de alguma forma, a situação brasileira atual ou próxima. Também utilizarei, se oportuno, a clássica comparação entre as duas grandes revoluções, a francesa de 1789 e a russa, de 1917. A tomada do poder e as primeiras medidas dos novos governantes não serão tratadas aqui, mas me concentrarei nos desenvolvimentos políticos preparatórios e que se deram entre Março e Outubro de 1917. Pretendo estudar separadamente os eventos posteriores, notadamente o papel da guerra e da capitulação germânica em 1919 e colocar assim a Revolução de Outubro no contexto internacional que se seguiu.

Não se trata também de seguir um caminho de estrito determinismo, em que o que ocorreu no passado deva obrigatoriamente se repetir. Destaco as eventuais semelhanças entre os eventos políticos ocorridos e/ou a relação de forças entre as classes em disputa, com futuros desenvolvimentos iguais até um certo ponto e diversos a médio e longo prazo. Começo com as “Teses de Abril” de Lenin, escritas algumas semanas após a Revolução de Fevereiro, que levou uma representação burguesa a substituir, com vacilações, a autocracia feudal tsarista. Outros pontos nevrálgicos seguirão.