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1917: o mundo vai mudar de face num país inesperado

Não sou historiador profissional nem amador esclarecido, mas militante de esquerda que, como é o caso para muitos, amadurece suas opiniões com leituras, discussões, reflexões pessoais ou coletivas. O desenvolvimento político dos últimos anos, nacional e internacional, tomou caminhos desastrosos. Após mais de meio século de domínio burocrático do  movimento comunista e do país que deveria representá-lo, ocorreu o retorno, junto aos países que influenciava, a um capitalismo alucinado e desregrado, na mais pura tradição liberal, em alguns traços lembrando o banditismo dos anos 1920 em Chicago! Dois livros clássicos podem ilustrar este passo no vazio: O “Discurso sobre a Servidão Voluntária“, de Etienne de la Boétie e o inacreditável ‘Que faire des Pauvres“, do eminente liberal John Locke. A servidão voluntária, material e psicológica, a segunda facilitando e promovendo a primeira, surge com o bizarro encanto de parte das massas pobres com as extravagâncias e posicionamentos anti-democráticos e anti-intelectuais – irracionais –  como no caso do bolsonarismo. O segundo, que indaga  “O que fazer com os pobres”, constitui uma ilustração limitada e já horrenda no que se passa na cabeça de um clássico liberal britânico e no terreno da Palestina, sinistro presságio do que parecem desejar as classes dominantes num plano internacional. Eis o capitalismo progressista. As revoluções passadas, de que trato neste texto, mostram que, dadas condições hoje ausentes e que cumpre obter, um outro futuro é possível.

A Revolução dita de 25 de Outubro, no calendário juliano em vigor na Rússia pré-revolucionária, ocorreu em 7 de Novembro de 1917, segundo o calendário atual, dito gregoriano. Foi muito mais do que um levante, como ocorreram inúmeras vezes na história, levando à troca dos governantes e a alterações sócio-econômicas eventualmente importantes, mas que não alteravam o regime de propriedade e de bloco de classes no poder. Em 25 de Outubro de 1917 o mundo mudou de face. Surgia algo novo, a promessa da futura sociedade socialista, em que a propriedade privada dos meios de produção seria substituída pela propriedade coletiva, com o desaparecimento das classes sociais – a estrutura social vigente por mais de cinco mil anos, sob formas de escravidão, feudalismo, capitalismo e suas combinações e variantes, mas sempre caracterizadas pela subordinação social ligada à distribuição desigual da propriedade, base material da sociedade de classes.

A morte de Lenin em 1924 e a expulsão de Trotski do Partido bolchevique em 1927, marcam o começo de um processo tenebroso de contra-revolução, que levou a inúmeras derrotas do movimento revolucionário, até a formalização do retorno da então União Soviética ao capitalismo, em 1989, formalizado por um curto discurso do Primeiro Ministro de então, Gorbatchev. Há bons livros de história a respeito e não pretendo repeti-los ou completá-los. Escolhi abordar um espaço temporal ou um evento determinado e explorar as hipóteses e opiniões a respeito, procurando destacar acontecimentos que evocam de alguma forma, a situação brasileira atual ou próxima. Também utilizarei, se oportuno, a clássica comparação entre as duas grandes revoluções, a francesa de 1789 e a russa, de 1917. A tomada do poder e as primeiras medidas dos novos governantes não serão tratadas aqui, mas me concentrarei nos desenvolvimentos políticos preparatórios e que se deram entre Março e Outubro de 1917. Pretendo estudar separadamente os eventos posteriores, notadamente o papel da guerra e da capitulação germânica em 1919 e colocar assim a Revolução de Outubro no contexto internacional que se seguiu.

Não se trata também de seguir um caminho de estrito determinismo, em que o que ocorreu no passado deva obrigatoriamente se repetir. Destaco as eventuais semelhanças entre os eventos políticos ocorridos e/ou a relação de forças entre as classes em disputa, com futuros desenvolvimentos iguais até um certo ponto e diversos a médio e longo prazo. Começo com as “Teses de Abril” de Lenin, escritas algumas semanas após a Revolução de Fevereiro, que levou uma representação burguesa a substituir, com vacilações, a autocracia feudal tsarista. Outros pontos nevrálgicos seguirão.

1917: o mundo vai mudar de face num país inesperado – parte 2

por Bernardo Boris Vargaftig, de São Paulo (SP)

Após as Teses de Abril  

Mencionamos a chegada de Lenin a Petrogrado em 3 de Abril de 1917, após atravessar a Alemanha e a Suécia no trem abusivamente denominado “blindado”, negociado com o Estado Maior alemão. Não o era, não se tratava naquele momento de uma ação militar, mas da mudança dos rumos da já República russa que, numa conferência histórica na cidade polonesa de Brest-Litovsk, negociaria em 1919 com o Império Alemão a tão temida, pelo imperialismo ocidental, “paz separada”. Portanto, Lenin e Trotski, chefe da delegação soviética, conseguiram (graças a enormes concessões feitas aos alemães) a tão almejada paz separada.

Lenin foi acolhido com grande entusiasmo pelos trabalhadores e soldados que compareceram à sua chegada diante dos quais e dos políticos presentes defendeu seu ‘Programa de Abril’. Este se opunha à tendência reinante no partido bolchevique, localmente dirigido naquele momento por Stalin e Kamenev, que pregava a reaproximação com a ala esquerda dos mencheviques e o “apoio crítico” ao governo burguês de Kerenski e portanto ao prosseguimento “leal” da aliança guerreira. Lembro que após a vitória da revolução de Fevereiro 1917, instalou-se a república, presidida por Kerenski. A “democracia burguesa” era representada por um parlamento rale, a Duma, que os reformistas desejavam fortalecer, para assegurar sua autoridade frente aos Soviets, eleitos pelo proletariado e seus aliados. Na primeira de suas dez “Teses de Abril” (1), Lenin se coloca contra o chamado “defensismo revolucionário”, que de “revolucionário” tinha apenas o nome, argumentando que a prolongação da guerra somente se justificaria se a tomada do poder tivesse ocorrido e após uma declaração formal de renúncia a qualquer anexação territorial, assim como completa dissociação dos interesses do capital, como haviam feito os revolucionários franceses após 1792 (2). Discute também a posição pedagógica a ser tomada frente “à inegável boa fé de amplas massas dos ainda defensores do defensismo revolucionário”, que admitem a guerra por necessidade mas sem conquistas, sendo nisso enganadas pela burguesia. 

Em 1 de Março, durante a reunião do Comitê Executivo do Soviet, a ala dita de esquerda dos mencheviques havia afirmado que a tarefa do Soviet consistia em “forçar” a burguesia liberal a tomar o poder. Pelo modelo bolchevique, isto era o agente necessário de uma revolução necessária e necessariamente burguesa. Nove condições foram formuladas para que o Soviet apoiasse um governo provisório (lembremo-nos que era menos de um mês após a queda da monarquia) (3).

Um exame detalhado das “Carta sobre a tática” de Lenin (escrita entre 21 e 26 de Abril) mostra um resto de etapismo, quando ele afirma que a primeira etapa da revolução russa concedeu o poder à burguesia, que substituiu uma classe derrotada, a nobreza feudal. Esta passagem do poder de uma a outra classe, define uma revolução. A etapa seguinte, virtualmente contínua, seria a revolução socialista. O que já diferenciava sua posição daquele que desdenhosamente nomeava “velhos bolcheviques”, era que a completude das tarefas da revolução burguesa, como a distribuição de terras para fortalecer a burguesia rural, não poderia, nas condições do capitalismo em rápido desenvolvimento na Rússia, impedir outra passagem do poder, da burguesia aos trabalhadores. Dizia Lenin: As palavras de ordem e as ideias dos bolcheviques foram, em seu conjunto, inteiramente confirmadas pela história; entretanto, na realidade concreta, as coisas ocorreram diferentemente do que nós e ninguém poderia prever, de forma mais original, mais curiosa, com mais nuances”. 

No item 2 das Teses afirma Lenin que o que havia de original na situação da Rússia naquele momento era a transição da primeira etapa da revolução que havia empoderado a burguesia devido à fraqueza do movimento operário, para a segunda etapa, que empoderaria o proletariado e o campesinato pobre. Qualquer que fosse sua posição sobre a polêmica entre a revolução por etapas e a revolução permanente, é inegável que Lenin, embora explicitando que a etapa democrático burguesa (dita primeira etapa) precede a etapa socialista, logo daria um conteúdo totalmente diverso do posicionamento stalinista e menchevique  ou do socialista histórico Plekhanov. O raciocínio de Lenin é curioso é discutível: se o que permitiu que a  burguesia ocupasse o poder na dita primeira etapa foi a fraqueza da classe operária, pode-se concluir que a distinção entre a primeira e a segunda etapa desapareceria se a classe trabalhadora fosse mais politizada e organizada, como seria o caso da Europa Ocidental e da Alemanha, país fetiche dos bolcheviques. Assim, a divisão do processo histórico revolucionário em etapas seria um conceito tático, eventual e não obrigatório, pois resulta da situação concreta e não de uma lei histórica, quase hegeliana, caminhando para a realização da história.  

Lenin defendia a revolução alemã e mundial, e chamava os socialistas e trabalhadores alemães para uma aliança com os revolucionários russos. Além disso, pregava um apoio total à revolução camponesa em curso e à criação de uma nova Internacional, pois a segunda havia traído ao apoiar a guerra imperialista.

Um intervalo para tirar uma conclusão do que precede. Como já disse, Lenin estimulava as confraternizações na frente da batalha, para combater a guerra imperialista. Lembremos que tanto a burguesia quanto os mencheviques e Stalin se opunham ao que o último denominava “ações desorganizadas”. Lenin foi chamado de “anarquista” alheio à realidade russa, devido a seus anos de ausência, de estar “sentado no trono de Bakunin” (teórico do anarquismo). Resistiu às pressões, ao se recusar a aplicar fórmulas dúbias, como o apoio ao que o governo Kerenski teria de bom e repúdio ao que teria de mau. Esta formulação, sob pretexto de “realismo”, levaria o Partido, o Soviet e o movimento popular ao reboquismo. Logo que lhe fosse útil, a burguesia se liberaria desta aliança oportunista, que lhe teria servido em momento de fraqueza para bloquear os avanços socialistas (4). Com as ressalvas óbvias de período e das condições específicas, esta situação não é inédita. O mesmo ocorreu na guerra europeia anti-monárquica empreendida pelos jacobinos franceses em 1792, sob a direção de Robespierre e Saint-Just. Ocorreu também na 1a guerra mundial e, no caso russo, graças à paciente construção do Partido bolchevique nos anos precedentes, como à existência de Lenin e Trotski. A situação criada pela revolução de Fevereiro, ao introduzir as massas na história, caminhava rapidamente para o aguçamento da revolução permanente, desmentindo os epígonos da revolução por etapas. As Teses de Abril, além de influenciarem radicalmente a política em curso, possuíam um enorme potencial educativo. Mesmo que Lenin não tenha empregado o termo “revolução permanente”, ele acolheu plenamente a adesão de Trotski aos bolcheviques, foi seu principal proponente. Bem antes dos eventos aqui relatados, Lenin afirmou em setembro de 1905, que “da revolução democrática começamos logo a passar, à revolução socialista, na medida das nossas forças e das forças do proletariado consciente e organizado. Somos pela revolução ininterrupta. Não nos deteremos a meio caminho”. 

A oposição era entre revolucionários auto-proclamados “realistas”, como o eram naquele momento os mencheviques e bolcheviques como Stalin e Zinoviev e aqueles que, como Lenin e Trotski, subordinavam sua tática à sua estratégia e assim fortaleciam o movimento dos oprimidos contra a conciliação com os opressores. Esta é uma constante histórica. Não significa desprezar as oportunidades de enfrentar o inimigo principal, neutralizando o inimigo momentaneamente secundário, mas exige que se mantenha clareza a respeito de sua natureza. Não adiantava “pressionar” o primeiro-ministro Kerenski ou a burguesia empoderada no Parlamento (a Duma), senão como forma de desmascará-los, como não adianta “pressionar” Lula para que ele se transforme em aliado estratégico. Ao contrário, esta posição gera ilusões. Com as reservas de surpresa, Lula está exposto, senão condenado pelo que tem feito (e não feito), a ser um Kerenski com características próprias, cujo prestígio rebaixa o movimento de massas, capacidade negativa que faltava a Kerenski, contrariamente a Lula, desprovido de apoio de massas. 

No dia 4 de Abril, horas após sua chegada, as “Teses de Abril” foram lidas por Lenin em duas reuniões de militantes, uma exclusiva aos bolcheviques e outra que incluía os mencheviques. Inicialmente, Stalin e Kamenev pretendiam nesse momento selar a fusão com os chamados “mencheviques de esquerda”. Ao tomar a palavra, Lenin explicitou os dez pontos de seu documento e inverteu a situação. Para ele, somente a “ditadura do proletariado”, destruindo a relação inédita que se estabelecera entre o governo burguês que substituiu a monarquia desde Fevereiro e a “ditadura democrática” operária e camponesa (os Soviets)  e iniciando a revolução contra a guerra, teria condições para levar a termo a revolução democrática russa. Note-se um resto de etapismo nestas formulações, verdade que bem encurtado e, por outro lado, uma grande prudência nas decisões. De fato, em outros momentos, Lenin prevenia que as ilusões ainda vigentes entre os trabalhadores sobre um “caminho pacífico” ao bem estar, senão ao socialismo, deveriam ser pacientemente combatidas, pois estas ilusões dificultariam, ou até impediriam, a consolidação do novo poder. Apesar deste reconhecimento, Lenin continuava entretanto a identificar verbalmente etapas no processo revolucionário. Interessante notar que muito mais tarde, quando o stalinismo iniciava sua ineluctável decadência (nos anos 1970], muitos intelectuais comunistas e afins, como os franceses Althusser ou Jean Ellenstein “descobriram” seus defeitos, mas não conseguiram estruturar uma crítica global e muito menos propor sua substituição. Daí seu ódio zoológico ao trotskismo (5) como proposta marxista para uma visão global da luta de classes. Mais tarde, muitos intelectuais comunistas e afins, como Ellenstein, que teve um curto período de glória mediática na França, como acontece frequentemente (vide os chamados Novos Filósofos, situados bem à direita ou Régis Debray ou mais tarde Michel Onfray), “descobriram” seus defeitos mas não conseguiram frutificar, mesmo se o último gentilmente afirmou que a teoria trotskista da revolução permanente estava proxima da teoria leninista da revolução não interrompida, mas também afirmar, ao defender a tese do socialismo num só país, que Stalin tinha razão contra Trotski, sem aliás argumentar. Vimos bem a que desastre levou este conceito, que substituiu a política internacionalista que seguiu 1917 pela defesa dos interesses da camada burocratica, como na Espanha da guerra civil, na China dos primeiros tempos do Kumintang, na França da Frente popular substituída em meses pelo regime pro-nazista de Pétain e tantos outros.

O debate entre os adeptos do etapismo (social-democratas ou stalinistas) e os chamados trotskistas tem ao menos três aspectos..O primeiro é um viés político-policial, iniciado na URSS em processo de burocratização, que implicava no não reconhecimento do debate de ideias e no apriorismo de um julgamento – ou sem julgamento – que por definição conduzia ao Gulag ou ao fuzilamento. O segundo, travado majoritariamente fora da URSS, onde era impraticável, foi encoberto pelas acusações extravagantes de conspiração nazi-nipo-trotskista; levava ao ostracismo na melhor das hipóteses, eventualmente à execução. O terceiro, pouco aparente pois invisível, consistia, como o é ainda em parte,  simplesmente em ignorar os chamados trotskistas (que preferem aliás a denominação de marxistas revolucionários). Isto aparece com grande evidência nas discussões entre intelectuais sobre as causas da degeneração do Estado operário soviético, onde os extensos trabalhos de Trotski e de seus seguidores, como Daniel Guérin, Daniel Bensaid, Victor Serge, Jean-Jacques Marie, Pierre Broué, muito raramente são mencionados, mesmo quando o assunto lhes é diretamente endereçado. Em contraste, os primeiros trabalhos de Domenico Losurdo, uma espécie de Olavo de Carvalho da parte menos informada da esquerda, podem ter algum interesse (6).

1917: o mundo muda de face num país improvável 

Esta situação, sob formas diversas, se repete no curso da história. Apoiar um governo reformista, que pode sê-lo em maior ou menor grau, como do tipo lulista com “Reformas sem Reformas” ou outra variante enganosa, exige discussão. Pode-se, para o debate, propor que tal governo tenha uma ala “aceitável”, mesmo que provisoriamente, até quando as massas entenderem, através de suas lutas e da intervenção de sua vanguarda real ou suposta, que as reformas são enganosas e desmobilizadoras, além de passíveis de anulação a qualquer momento e a qualquer pretexto pelo adversário de classe (como ocorre com Miley na Argentina, após anos de lero-lero peronista, patrioteiro e adormecedor). 

Pode-se também pretender que não há sentido em apoiar medidas reformistas que serão logo mais anuladas pelo complexo Estado burguês-patronato; é portanto preciso desmascará-las, mesmo se as forças para exercer uma oposição consequente não existam no momento, o importante é preparar o futuro, quebrar ilusões. Entretanto, contrariamente a esta posição, não há sentido denunciar como inócuas reformas favoráveis aos trabalhadores – como ajudas de todo tipo, melhorias na saúde, educação ou condições de trabalho e vida – denúncias que exporiam negativamente a vanguarda em desenvolvimento como adepta do “quanto pior, melhor”. É necessário ganhar a confiança e respeito de sua base social. Ambas posições, a estratégica e a tática, condicional e temporária, são isoladamente corretas e falsas ao mesmo tempo e portadoras de perigos, têm uma relação dialética de unidade dos contrários. Uma pode ser sectária e isolacionista e a outra, oportunista e criadora de ilusões, sujeita a desmentidos no terreno. Na realidade, não é desonroso que, dentro de limites, a tática difira da estratégia, o que constitui “Um passo atrás, seguido por dois passos adiante”, alterando-se ligeiramente a célebre frase de Lenin. 

Lenin limitava inicialmente o alcance imediato da revolução ao horizonte democrático-burguês. Segundo Trotski, ele “queria dar a entender que, para manter a unidade com o campesinato, o proletariado se veria obrigado a prescindir da colocação imediata das tarefas socialistas durante a próxima revolução. Mas aquilo significava para o proletariado renunciar à sua própria ditadura. Consequentemente, a ditadura era, em essência, do campesinato, mesmo que dela participassem os operários”.

Intervindo no Congresso do POSDR em 1906 em Estocolmo, disse Lenin, replicando a Plekhanov: “De que programa estamos falando? De um programa agrário. Quem se supõe que tomará o poder com esse programa? Os camponeses revolucionários”. Confundia Lenin o governo do proletariado com o governo dos camponeses? Não” dizia ele, referindo-se a si próprio – “Lenin diferenciava o governo socialista do proletariado do governo democrático-burguês dos camponeses”. Diga-se de passagem, ele então não abordava o óbvio problema do destino da propriedade fabril burguesa, a produção e a apropriação da mais-valia persistindo intactas – o que suscitaria o choque imediato com os interesses do proletariado.

Trotski não pertencia, neste período, a nenhuma das duas principais correntes do movimento operário russo, mas a um grupo local de Petrogrado (7). Para ele, “o proletariado, chegado ao poder, não deve limitar-se ao marco da democracia burguesa, mas deve empregar a tática da revolução permanente, ou seja, anular os limites entre o programa mínimo e o máximo da socialdemocracia, passando para reformas sociais cada vez mais profundas e buscando um apoio direto e imediato na revolução do Oeste europeu”.

Nahuel Moreno, em 1980 (8) comparou de forma muito original os aportes respectivos de Lenin e de Trotski às questões programáticas em discussão. Disse ele: “Não é a mesma coisa um acerto político e a estruturação bolchevique do partido. Por exemplo, a teoria da revolução permanente foi de Trotski, mas ele não construiu o partido bolchevique. A  teoria da ditadura democrática do proletariado e do campesinato – equivocada – foi de Lenin e no entanto ele construiu o partido bolchevique. Não há uma relação mecânica: posição política = partido bolchevique”.  

A solução ao problema espinhoso da escolha entre a Reforma e a Revolução, proposta formalmente por Trotski em 1938, é o chamado Programa de Transição. Construído em função de problemas e reivindicações específicas, este programa se ancora na realidade do terreno, é realizável e se inicia dentro do regime capitalista, mas se projeta, se consolida e se perpetua, no programa socialista. Faz intervir os interessados e minimiza o papel “distributivo” do aparato estatal burguês. Como exemplo, uma reivindicação salarial se prolonga através da escala móvel de salários sob o controle das organizações dos beneficiários, ou ainda as melhoras imediatas das condições de vida se estendem às medidas amplas que somente o regime socialista pode prover, pois afetam o sacrossanto “direito de propriedade”. Isto aparece claramente na questão do ensino e da saúde, em que as reivindicações salariais dos trabalhadores se associam à luta por um ensino democratico e medidas sanitárias socializadas, submetidas a um controle permanente pelas organizações dos trabalhadores envolvidos, pessoal do ensino e da saúde.  

Como o destaca Valério Arcary (9), nada de comum entre Lula e associados e os  reformistas do tipo Kerenski, num país em revolução, em presença de uma força social como foi a gigantesca massa camponesa militarizada, massacrada e politizada pela guerra mundial e cujo principal desejo era “Paz e Terra”. A existência do partido bolchevique, dos Soviets, Conselhos de Trabalhadores, mesmo se inicialmente dominados pelos partidos reformistas e pequeno-burgueses, em coexistência instável com a representação clássica das forças burguesas (no caso, Duma = Parlamento, governo provisório) foi a chave que permitiu aos bolcheviques derrotar os reformistas, sem se encontrarem na posição inconfortável e perigosa de se oporem a melhorias imediatas em benefício de um futuro supostamente dourado mas incerto. Outros fatores que distinguem a firme oposição leninista às tentativas reformistas de apoio “condicional” a Kerenski anulam qualquer pretensão de comparar o governo Kerenski ao atual governo Lula, apesar dos esforços em curso para fantasiar reformas pequenas em grandes acontecimentos. Estes fatores são a interminável guerra mundial, em que os combatentes russos eram em sua maioria camponeses, ainda influenciados pelo reformismo e pela extremamente reacionária Igreja ortodoxa – mas que logo abandonariam, frente à firmeza da política que Lenin soube impor ao seu Partido. No Brasil, o único análogo político teórico (e bem relativo) à Primeira Guerra Mundial foi a ditadura de 1964 que, esgotada politicamente, encontrou nos reformistas o instrumento necessário para que a burguesia capturasse o espólio sem pagar o tabelião… Os reformistas burgueses, quiseram e conseguiram passar o Rubicão, abandonando a ditadura, mas deixando intocados os seus responsáveis. No caso russo, graças à política imposta por Lenin de não se deixar seduzir pelo canto de sereia do reformismo e do etapismo, foi possível conduzir a tomada do poder pelos Soviets em Outubro 1917. 

Trotski defendia a revolução permanente, ao dizer que “A vitória completa da revolução democrática na Rússia apenas se concebe na forma de ditadura do proletariado, secundado pelos camponeses”. A ditadura do proletariado, que inevitavelmente poria sobre a mesa não apenas as tarefas democráticas, mas também socialistas, daria ao mesmo tempo um impulso vigoroso à revolução socialista internacional. Apenas a vitória do proletariado do Ocidente poderia proteger a Rússia da restauração burguesa, dando-lhe segurança para completar a implantação do socialismo”.

É uma divergência estratégica: “O bolchevismo não estava contagiado pela crença no poder e na força de uma democracia burguesa revolucionária na Rússia. Desde o princípio reconheceu a significação decisiva da luta da classe operária na revolução vindoura, mas o seu programa se limitava, na primeira época, aos interesses das grandes massas camponesas, sem a qual – e contra a qual – a revolução não teria podido ser levada a cabo pelo proletariado. Daí o reconhecimento provisório do caráter democrático-burguês da revolução e de suas perspectivas.

Ainda em Abril, Lenin produziu muitos documentos polêmicos. Destaco a sua “Carta sobre a Tática”, escrita durante a segunda quinzena de Abril 1917, porque põe o dedo na ferida a respeito da relação entre a chamada “ditadura democrática” (grosso modo, supostamente a primeira etapa da revolução, e sua suposta segunda etapa, socialista). Aqui, não figuram os termos “revolução permanente” ou “ininterrupta”, mas os conceitos são claros.

Notas

1 Consultei as “Teses” e outros documentos políticos dos bolcheviques da época, em Gian Giacomo Cavicchioli, Octobre 1917, Éditions Science Marxiste, Montreuil-sous-Bois, França, 2017.
2 Consultar O bolchevismo e o jacobinismo por Albert Mathiez, Scientia, Paris, 1920. D. Guérin, marxista francês próximo do trotskismo, escreveu um importante estudo sobre a revolução francesa, que mereceria tradução (D. Guérin, La lutte de classes sous la Première République, Gallimard, Paris, 1968).
3 C. Miéville, Outubro, história da revolução russa, p.77, Boitempo, S. Paulo, 2017
4 Discutimos a Rússia, mas é inevitável evocar o Brasil de hoje, em que Lula desempenha, queira ou não, uma posição no jogo das disputas políticas idêntico ao de Kerenski, com diferenças táticas e episódicas, mesmo os personagens diferindo: Kerenski triste e pouco eficaz e Lula, alegre, eficaz, sobretudo na manobra para enganar e surpreender o adversário. Ambos representam, ao final das contas, um conservadorismo, tristonho para um e carnavalesco para o outro. Não é preciso dizer quem é quem…
5 Em seu livro Os Comunistas, o célebre escritor francês Aragon, membro do CC do PCF, faz um de seus  heróis positivos (sic) afirmar: “Os trotskistas, é bem simples, são tiras. Não constituem um problema filosófico”.
6 Reconheça-se que D. Losurdo publicou trabalhos interessantes e originais sobre o caráter reacionário do liberalismo, como “La Contre-histoire du du Libéralisme” La Découverte, Paris, 2013 ou “Hegel, Marx e a tradição liberal“,  Editora UNESP, S. Paulo,1988. Contrariamente a esta produção séria, Losurdo escreveu asneiras, tais como a polêmica fora de propósito com o historiador trotskista Jean-Jacques Marie (designado como trotscólogo!) sobre o assassinato de Trotski.
7 Ao chegar a Petrogrado, Trotski ingressou no grupo “Interbairros”, uma organização local do Partido Operário Social-Democrata Russo, que tinha uns cinco mil membros. A partir daí, estabeleceu fortes vínculos com os bolcheviques, que conduziram a sua posterior adesão.
8 N.Moreno, Informe ao CC do PST peruano, Marxismo Vivo, 05, p. 167, Editora Sundermann, S. Paulo, 2015.
9 V. Arcary, em Esquerda Online” 13/07/2023: “Hoje a oposição de direita neofascista influencia pelo menos 30% do país, o que nada tem a ver com a situação revolucionária na Rússia à partir de Fevereiro 1917. Apoiar o governo, mesmo condicionalmente, representaria no momento que nos interessa reforçar diretamente o inimigo; hoje, no Brasil, a participação no governo “reformista” constituiria uma associação a uma política de alianças com o grande capital – “mas o ïnimigo central é o fascismo, que só pode ser derrotado com a Frente Única de Esquerda, inclusive com a esquerda moderada”.