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1917: o mundo vai mudar de face num país inesperado

Não sou historiador profissional nem amador esclarecido, mas militante de esquerda que, como é o caso para muitos, amadurece suas opiniões com leituras, discussões, reflexões pessoais ou coletivas. O desenvolvimento político dos últimos anos, nacional e internacional, tomou caminhos desastrosos. Após mais de meio século de domínio burocrático do  movimento comunista e do país que deveria representá-lo, ocorreu o retorno, junto aos países que influenciava, a um capitalismo alucinado e desregrado, na mais pura tradição liberal, em alguns traços lembrando o banditismo dos anos 1920 em Chicago! Dois livros clássicos podem ilustrar este passo no vazio: O “Discurso sobre a Servidão Voluntária“, de Etienne de la Boétie e o inacreditável ‘Que faire des Pauvres“, do eminente liberal John Locke. A servidão voluntária, material e psicológica, a segunda facilitando e promovendo a primeira, surge com o bizarro encanto de parte das massas pobres com as extravagâncias e posicionamentos anti-democráticos e anti-intelectuais – irracionais –  como no caso do bolsonarismo. O segundo, que indaga  “O que fazer com os pobres”, constitui uma ilustração limitada e já horrenda no que se passa na cabeça de um clássico liberal britânico e no terreno da Palestina, sinistro presságio do que parecem desejar as classes dominantes num plano internacional. Eis o capitalismo progressista. As revoluções passadas, de que trato neste texto, mostram que, dadas condições hoje ausentes e que cumpre obter, um outro futuro é possível.

A Revolução dita de 25 de Outubro, no calendário juliano em vigor na Rússia pré-revolucionária, ocorreu em 7 de Novembro de 1917, segundo o calendário atual, dito gregoriano. Foi muito mais do que um levante, como ocorreram inúmeras vezes na história, levando à troca dos governantes e a alterações sócio-econômicas eventualmente importantes, mas que não alteravam o regime de propriedade e de bloco de classes no poder. Em 25 de Outubro de 1917 o mundo mudou de face. Surgia algo novo, a promessa da futura sociedade socialista, em que a propriedade privada dos meios de produção seria substituída pela propriedade coletiva, com o desaparecimento das classes sociais – a estrutura social vigente por mais de cinco mil anos, sob formas de escravidão, feudalismo, capitalismo e suas combinações e variantes, mas sempre caracterizadas pela subordinação social ligada à distribuição desigual da propriedade, base material da sociedade de classes.

A morte de Lenin em 1924 e a expulsão de Trotski do Partido bolchevique em 1927, marcam o começo de um processo tenebroso de contra-revolução, que levou a inúmeras derrotas do movimento revolucionário, até a formalização do retorno da então União Soviética ao capitalismo, em 1989, formalizado por um curto discurso do Primeiro Ministro de então, Gorbatchev. Há bons livros de história a respeito e não pretendo repeti-los ou completá-los. Escolhi abordar um espaço temporal ou um evento determinado e explorar as hipóteses e opiniões a respeito, procurando destacar acontecimentos que evocam de alguma forma, a situação brasileira atual ou próxima. Também utilizarei, se oportuno, a clássica comparação entre as duas grandes revoluções, a francesa de 1789 e a russa, de 1917. A tomada do poder e as primeiras medidas dos novos governantes não serão tratadas aqui, mas me concentrarei nos desenvolvimentos políticos preparatórios e que se deram entre Março e Outubro de 1917. Pretendo estudar separadamente os eventos posteriores, notadamente o papel da guerra e da capitulação germânica em 1919 e colocar assim a Revolução de Outubro no contexto internacional que se seguiu.

Não se trata também de seguir um caminho de estrito determinismo, em que o que ocorreu no passado deva obrigatoriamente se repetir. Destaco as eventuais semelhanças entre os eventos políticos ocorridos e/ou a relação de forças entre as classes em disputa, com futuros desenvolvimentos iguais até um certo ponto e diversos a médio e longo prazo. Começo com as “Teses de Abril” de Lenin, escritas algumas semanas após a Revolução de Fevereiro, que levou uma representação burguesa a substituir, com vacilações, a autocracia feudal tsarista. Outros pontos nevrálgicos seguirão.

1917: o mundo vai mudar de face num país inesperado – parte 5

por Bernardo Boris Vargaftig, de São Paulo (SP)

A resolução da crise se aproxima

Em 5 de setembro, o soviet de Moscou adota uma moção bolchevique; em 9 de setembro os bolcheviques obtêm uma maioria no Soviet de Moscou que, no dia 23, elege Trotski à sua presidência. É uma viravolta. De imediato, à partir do fundo de seu esconderijo, com duas cartas seguidas, Lenin interpela o Comitê Central: “Os bolcheviques devem tomar o poder” e “O marxismo e a insurreição”, redigidos em 12 e 13 de setembro e que o Comitê Central recebe no dia 15. Após a maioria obtida pelos bolcheviques nos Soviets das duas capitais, Lenin escreve que «podem e devem tomar o poder em suas mãos (…) a maioria do povo está conosco». «É preciso colocar na ordem do dia a insurreição armada em Petrogrado e Moscou – e em sua região – com a conquista do poder e a derrubada do governo» , sem aguardar.

Kamenev se opõe à sua proposta. A maioria do Comitê Central, amedrontada, decide por 6 a 4 (inclusive Trotski) e 6 abstenções, não comunicar a ninguém a proposta e conservar um único exemplar nos arquivos; Assim, Lenin é paralisado. Por proposta de Kamenev, decide-se tudo fazer para impedir manifestações nas casernas e usinas, ou seja, nada fazer, aguardar e continuar o debate em sua próxima sessão de 20 de setembro.

Um ano mais tarde, Zinoviev afirmará: «Nesta época, nosso Comitê central não estava de acordo com o camarada Lenin. Quase todos nós pensávamos que era cedo demais e que os S-R e mencheviques eram ainda amplamente seguidos.»  Para a maioria do Comitê Central, o partido bolchevique deve desempenhar o papel de uma oposição de esquerda parlamentar à «democracia» empoderada. Em Stockholm, Radek está prestes a participar de uma conferência sobre a paz ao lado dos mencheviques e dos S-R.  Lenin, que considera urgente formar a III Internacional, exige que ele a boicote. “Não podíamos nos decidir a fazer o salto que julgávamos prematuro», escreverá Radek oito anos mais tarde.

Enquanto os camponeses tomam as terras, centenas de milhares de soldados camponeses abandonam as trincheiras e retornam aos vilarejos, fuzil no ombro, passeando e pilhando. Onze anos mais tarde, Gorki evocará esta invasão de tropas que retornavam a suas casas e que temia que eliminasse os próprios bolcheviques: »Era uma tempestade, um furacão, quebravam e arrancavam tudo». Em 1927, Bakhmentiev, antigo embaixador nos Estados Unidos, escreverá: «Houve um homem, Lenin, que não temeu assumir a responsabilidade histórica e proclamou um slogan que correspondia à energia, à explosão de desejo social e à sombria maldade animal que se acumulara durante séculos.»  Lenine quer dar uma forma política a esta força cega, que senão estaria condenada a se esgotar na desordem e no caos.

Entre 13 de setembro e 3 de outubro os camponeses se levantam nas regiões de Kishinev, Tambov, Taganrog, Ryazan, Kursk e Penza. As expedições punitivas enviadas pelo Governo Provisório desmoralizam os soldados e erguem contra si os camponeses. É então que Lenin grita a essas massas desesperadas: «Pilhem o que foi pilhado!». Esse slogan tem sido abundantemente citado, sendo a essência de sua política. Lenin comentará com Trotski. «De fato eu o disse um dia, disse para esquecer imediatamente, mas fizeram disso um programa.» Ele lança ao contrário um grito angustiado de alarme em “A catástrofe iminente e como conjurá-la“: «Os trens vão parar. A chegada de matérias primas e de carvão cessarão. Como a chegada de cereais (…) Uma catástrofe de amplitude incrível e a fome nos ameaçam inelutavelmente (…) Todos o dizem. Todos o reconhecem. Todos o afirmam. E nada se faz senão votar e votar resolução sobre resoluções.» É preciso tomar o poder para agir”

Para reforçar sua credibilidade vacilante, o governo provisório convoca em Moscou uma conferência dita democrática (14-21 de setembro), designada por ele mesmo, assembleia desprovida de representatividade que, ao final, designa em seu seio um Pré-Parlamento. Kerenski retarda assim as eleições para a Assembleia Constituinte, à qual atribui todas decisões sobre a terra e a paz e concentra assim sobre si um descontentamento enorme.

Lenin decide então se aproximar do local de ação. Em 17 de setembro, abandona Helsinki e se instala em casa de um jornalista em Vyborg, cidade finlandesa fronteiriça, a uns 50 quilômetros ao norte de Petrogrado. Schotman, seu agente de contacto, vem vê-lo. Lenin o interroga: «Será verdade que o Comitê Central me proibiu de aparecer em Petrogrado?» O Comitê Central utiliza a prudência para afastar o desordeiro.

Em 21 de setembro, por proposta de Trotski, este Comitê decide boicotar o Pré-Parlamento, por maioria de uma voz (9 contra 8). Seria a primeira ruptura clara com o poder. Os adversários da insurreição protestam, teria havido embate! A decisão definitiva deverá ser tomada numa conferência do partido com os representantes bolcheviques nomeados ao Pré-Parlamento por Kerenski. A conferência rejeita o boicote por 77 votos contra 50, decisão que o Comitê Central ratifica bem depressa. A partir de seu esconderijo, Lenin felicita Trotski por haver apoiado o boicote e protesta: “É necessário boicotar o Pré-Parlamento. É preciso se retirar nos Soviets (…) , nos sindicatos (…), nas massas. É preciso chamá-los à luta!»

Em 21 de setembro, diante da recusa do Comitê executivo do Soviet, com maioria S-R e menchevique, de convocar um congresso nacional, o Soviet de Petrogrado o convoca por rádio para 20 de outubro. As eleições aos Soviets exprimem a rejeição da política do governo provisório. Em outubro, o voto bolchevique vira uma avalanche. Assim, em Petrogrado os bolcheviques obtêm a maioria absoluta dos votos já em setembro e quase tanto em Moscou. Obtém a maioria em dezenas de Soviets, 2/3 em Saratov, Syzran, Tsaritsyno e Tver; ¾ em Ekaterinburg e Kostroma, 90% em Kaluga e todos delegados de Ivanovo-Voznesensk. A própria pequena burguesia se aproxima e em 25 de setembro, nas eleições para a Duma municipal de Moscou, os bolcheviques obtêm 51% dos votos e os mencheviques, 4%. Já no final de setembro, divisões inteiras do exército adotam resoluções afirmando que somente permanecerão na frente de batalha até o começo de novembro. 

Em 23 de setembro, quando o Soviet de Petrogrado elege Trotski à sua presidência, a sessão do Pré-parlamento é inaugurada sob tristes auspícios: a curva da produção econômica naufraga, cresce a curva dos preços, enquanto a curva das greves galopa, embora os bolcheviques, que temem que os trabalhadores se esgotem em lutas parciais, tentem segura-los. Os bolcheviques assistem à sessão onde os discursos vazios sucedem a proclamações pomposas. Lenin bombardeia o Comitê Central hesitante com apelos cada vez mais urgentes, que ficam sem resposta e organiza seus partidários para conseguir forçar a mão. Em 29 de setembro ameaça demitir-se para melhor defender seu ponto de vista junto aos militantes e no congresso do Partido. Em 1 de outubro, numa carta ao Comitê Central e aos Comitês de Petrogrado e Moscou, ele exige: «os bolcheviques devem tomar o poder imediatamente. Ao fazê-lo, salvarão a revolução mundial (…) Temporizar é um crime contra a revolução (…) a onda de anarquia em curso poderá se tornar mais forte que nós”. Ele julga a vitória assegurada e muito provavelmente sem efusão de sangue e rejeita a ideia de aguardar o segundo congresso dos Soviet. Em 3 de outubro, o Comitê Central propõe-lhe de se instalar em Petrograd, para facilitar a ligação consigo. Lenin não deixa por menos e em 6 de outubro se instala na capital em casa da militante bolchevique Margarita Feofanova.

Em 7 de outubro, em nome dos bolcheviques, na tribuna do Pré-parlamento, Trotski acusa o governo provisório de provocar as revoltas camponesas e a guerra civil e abandona a sala com todos eleitos bolcheviques, clamando: «Todo poder aos Soviets ! Toda terra ao povo! Viva a Assembleia Constituinte!» No dia seguinte, o órgão da Bolsa exige «uma luta impiedosa e intransigente contra o bolchevismo». 

Sentindo chegar o fim, os americanos Thomas e Robbins, da Cruz Vermelha, o menchevique Dan, o S-R Zenzinov e o Ministro da guerra Verhovski tentam convencer Kerenski de desarmar os bolcheviques, aplicando seu programa: anunciar a abertura de negociações de paz com os alemães, transferir as terras dos grandes proprietários aos comitês camponeses, anunciar a rápida convocação da Assembléia constituinte, formar um governo constituído unicamente dos dirigentes dos Soviets. Kerenski recusa. Como em Julho, ele pensa liquidar com o exército toda manifestação insurrecional, embora, desde o episódio de Kornilov, quando traiu todo mundo, seja detestado por soldados e oficiais. 

Lenin se sente tão isolado pelo Comitê Central que, em 8 de outubro, redige um texto que intitula com amarga ironia “Conselho de um exterior” (traduzido oficialmente por “um ausente», mas o term russo «postoronny» significa exatamente «aquele que está afastado»). Ele esboça um plano da insurreição, pede que seus leitores se lembrem dos preceitos de Danton (Audácia, mais audácia, sempre audácia) e de Marx e, impaciente, martela: «o sucesso da revolução russa e da revolução mundial dependem de dois ou três dias de luta.» O Comitê Central continua surdo. Em 9 de outubro, o Soviet de Petrograd, presidido por Trotski, cria um Comitê Militar Revolucionário. Neste dia, Lenin «passa por cima» do Comitê Central, que continua imóvel, ao enviar uma carta aos bolcheviques delegados da região norte ao Congresso dos Soviets, na qual escreve «A temporização é a morte!» 

Para tomar as coisas em suas mãos. Lenin sai do esconderijo e reúne o Comitê Central em 10 de outubro, no apartamento de um menchevique, cuja esposa, é bolchevique e convenceu seu marido de ficar fora. Lenin denuncia  a indiferença manifestada para com a insurreição, desde o início de setembro, o que é incompatível com a perspectiva de tomada do poder pelos Soviets. Ora, “o momento decisivo se aproxima. A situação internacional exige que tomemos a iniciativa”. As massas são indiferentes? «Elas estão fartas de palavras e de resoluções. A maioria está hoje conosco. A situação internacional está perfeitamente amadurecida para a tomada do poder (…). A palavra de ordem de entrega das terras aos camponeses tornou-se a palavra de ordem de todos camponeses. As condições políticas estão portanto maduras.”Aguardar até a Assembléia constituinte, que de qualquer forma não estaria a nosso favor, é absurdo. » Assim, ele submete ao Comitê Central uma resolução que afirma: «O levante armado inevitável está na ordem do dia. É preciso tomar as medidas práticas que se aplicam”. Lenin obtem uma vitória aparentemente esmagadora, pois 10 membros votam a favor de sua resolução contra 2 (Kamenev e Zinoviev). Porém Ioffé, encarregado do resumo da reunião, passou seu tempo rabiscando desenhos e omitiu de mencionar a discussão animada suscitada pela resolução. A carta «Sobre o momento atual», enviada no dia seguinte por Zinoviev e Kamenev, às principais organizações do partido, registra a duração e a dureza dos debates.

Essa carta de seis páginas, plataforma dos que se opõem à insurreição, preferindo uma perspectiva parlamentar, não constitui, escrevem eles, senão uma resumo curto de suas intervenções na reunião. Segundo eles, vista a bolchevização rápida dos Soviets, uma insurreição armada na véspera das eleições à Assembléia constituinte, colocaria em xeque o destino do Partido e da revolução russa e internacional. Um desenvolvimento pacífico da revolução garantiria aos bolcheviques um terço, senão mais, de cadeiras na Assembléia Constituinte, que formaria, com os Soviets, um governo combinado. Aí estaria a vitória dos bolcheviques. 

Após esse voto, Dzerjinski propõe, para manter a unidade do Comitê Central de formar, para a direção política nos dias imediatos, um Birô político composto por sete membros do Comitê Central. Ao lado de Lenin, Trotski, Stalin, Sokolnikov e Bubnov, Kamenev e Zinoviev são incluídos como opositores declarados da insurreição que denunciam no dia seguinte. Esse Birô político capenga formado por partidários e adversários da insurreição nunca se reunirá, mas sobreviverá na história escrita. Segundo o testemunho de seu secretário pessoal, Tovtukha, Stalin, para se atribuir um lugar imaginário na insurreição, em 1924 substituirá de sua própria mão a frase  «para a direção política nos dias próximos» por «para a direção da insurreição (assim mesmo, bizarramente assumida por seus dois opositores declarados!). Graças a essa falsificação, o papel do Birô político na direção da insurreição tornou-se a pedra angular do mito do papel dirigente na revolução de um Comité Central paralizado e paralisador. 

A preparação da insurreição votada não avança. Minoritários, Zinoviev e Kamenev impõem na realidade sua orientação. O regime é entretanto um moribundo. Em 14 de outubro, os «Izvestia», órgão oficial dos Soviets, escrevem: «Estamos a um fio do abismo (…) Aqui, tudo está a um fio da ruína, o abastecimento, os transportes, as finanças, a industria, o exército, a frota, Petrogrado, o Governo provisório e a Assembléia Constituinte, em uma palavra, tudo. Na menor tensão, na menor sobrecarga, o fio será rompido e então… ». Na véspera, a sessão do Conselho da República foi iniciada com duas horas de atraso, por falta de participantes, desencorajados, desmoralizados e impotentes. Muitos assentos permaneceram vazios. Kerenski, orgulhoso, declara: «Sou um homem condenado, tudo me é indiferente.» Nessa frase teatral se exprime a agonia de um governo de coalizão sem perspectiva, que em sete meses nada fez senão agravar a desordem e o caos que haviam levado ao naufrágio da monarquia.  Cada dia que passa é um passo suplementar em direção do deslocamento e da anarquia. 

Essa situação não pode perdurar: ou os bolcheviques tomam o poder ou as massas desencorajadas se lançarão em explosões desordenadas e desprovidas de perspectiva. A oposição parlamentar, da qual sonham Zinoviev e Kamenev, não é senão um sonho vazio. Se Lenin tivesse sido abatido em julho de 1917, os camponeses teriam certamente confiscado as terras e os soldados desertado em massa, mas o Comitê Central bolchevique não teria organizado a insurreição, a anarquia galopante teria deslocado o país ou conduzido a uma ditadura de tipo fascista, cinco anos antes da Itália, onde o mesmo cenário ocorreu entre 1920 e 1922. Sem a força de Lenin, dirá Trotski, a revolução teria fracassado pois, em caso de situação revolucionária «diante da passividade do partido, as esperanças das massas serão substituídas pela desilusão (…) ; o inimigo se recuperará de seu pânico e aproveitará dessa desilusão (…). Lenin tinha razão: agora ou nunca.»

As greves incendeiam todos setores, uns após os outros. Em 14 de outubro, o jornal de Gorki, Novaia Jizn anuncia uyma catástrofe alimentar: Petrogrado necessita de 48.000 pounds (um poud = 16 quilos) de trigo por dia. Em 11 de outubro recebeu 18.000 pounds, no dia 12, 12.000 e no dia 13, 4.000. A fome se aproxima. Em 16 de Outubro, o ministro do Abastecimento, desesperado, se interroga sobre como obter trigo: dobrando o preço de compra ou utilizando a força armada e conclui: «se, dobrando o preço, continuarmos a não receber o pão de que necessitamos, seremos evidentemente obrigados a recorrer à força militar, pouco segura! » A guerra civil agravará o problema. 

Entre 10 e 16 de outubro, Lenin, mudando de apartamento diariamente, encontrará Zinoviev, Kamenev, Sokolnikov, redator-chefe da Pravda, e Piatnitski, de Moscou, todos hostís à insurreição, para convencê-los do contrário. Em vão. Em 16 de outubro ele novamente reúne o Comitê Central ampliado a quadros de Petrogrado, sem Trotski, retido no Soviet. Ele repete: «A situação é clara: “ou a ditadura de Kornilov ou a ditadura do proletariado e das camadas mais pobres do campesinato». Kamenev e Zinoviev martelam: «Aguardemos!» Lenin explode: «Aguardemos o que? Aguardemos um milagre, aguardemos que a corrente tumultuosa e catastrófica dos acontecimentos desapareça diante da convocação pacífica, tranquila, legal e sem enfrentamentos da Assembleia Constituinte». Esta esperança vazia se aparenta ao cretinismo parlamentar, de onde decorre a necessidade absoluta (…) da insurreição armada.»

Os debates mostram a força das resistências e o abismo que separava a análise de Lenin da análise dos quadros do partido; os presentes rebatem sem cessar «em Narva o moral está muito baixo devido às demissões (…), em Cronstadt o moral baixou (…), ninguém está disposto a ir à rua (…), a ideia de levante bolchevique não é popular (…), o pessimismo domina» etc. Zinoviev e Kamenev repetem argumentos. Lenin não se deixa abater por esse ceticismo generalizado; para ele, a realidade das relações de força se exprime muito imperfeitamente na consciência que os homens (e os dirigentes) têm dela. Sua moção a favor da insurreição recebe 20 votos, contra 2 (Zinoviev e Kamenev) e algumas abstenções. Entretanto, Zinoviev obtem 6 votos, 15 contra e 3 abstenções para uma resolução que declara «qualquer manifestação inaceitável até que tenha sido consultada a fração bolchevique no Congresso dos Soviets» Assim, quatro dos que votaram na moção de Lenin votaram na de Zinoviev que diz o contrário! Diversos dos que votaram na moção de Lenin nada fazem para aplicá-la. O Comitê Central cria em seu seio um Círculo Militar Revolucionário de cinco membros (Stalin, Sverdlov, Bubnov, Uritski e Dzerjinski), destinado a aplicar a decisão, mas ele nunca se reunirá. Esta passividade se assemelha à sabotagem. Kamenev anuncia que abandona o Comitê Central.

Lenin tomou nota das intervenções. Logo que retorna a seu abrigo, numa Carta aos Camaradas, procura refutar um a um os argumentos dos adversários da insurreição que, «os quais, se referindo ao estado de espírito das massas, atribuem-lhes sua própria covardia» e pergunta: «Será possível conceber uma sociedade capitalista na véspera de sua falência sem que o desespero invada as massas oprimidas?»

No dia seguinte, ele encontra clandestinamente os dirigentes da Organização Militar Bolchevique, unânimes em atrasarem a insurreição por algumas semanas (após o congresso dos Soviets) e prometendo empregar este prazo para o preparo da insurreição, ou seja, fazer amanhã o que Lenin exige deles, em vão, já há um mês. Lenin rejeita sua proposta e exige que o levante ocorra antes do congresso dos Soviets, para colocá-lo diante do fato consumado.

Apesar desses raros encontros, Lenin não pode participar no preparo de uma insurreição, cuja lentidão o faz ferver, senão através de cartas e de mensagens cada vez mais impacientes, que nem sempre são respondidas. Mantendo assim afastado o verdadeiro inspirador da insurreição e retardando assim a implementação das decisões votadas, o Comitê Central, pela sua passividade, freia a ação, estimula as hesitações e reforça os elementos mais hesitantes e céticos trabalhados pela dúvida.

Em 17 de outubro, o Comitê Executivo central dos Soviets retarda a abertura de seu congresso de 20 a 25 de outubro. Neste mesmo dia, Novaia Jizn assinala a existência de uma carta de Kamenev contra a insurreição que circula nos círculos «bem informados» da capital. Lenin recebe o jornal no dia 17 às 20 horas. Ele pensa que Kamenev e Zinoviev não são responsáveis pela difusão de uma carta, acredita ele, destinada a uma simples difusão interna e discussão no Partido. No dia seguinte, 18, Novaia Jizn publica uma declaração de Kamenev resumindo a carta: Zinoviev e ele são – diz ele – contrários a qualquer ação armada próxima pelo partido bolchevique, que aliás, nada decidiu neste sentido. Além disso, acrescenta, «uma série de camaradas de base consideram que tomar a iniciativa de um levante armado nesse momento (…), alguns dias antes do Congresso dos Soviets, seria uma decisão inadmissível, fatal para o proletariado e a revolução.» Ambos se opõem publicamente à tomada do poder antes do congresso dos Soviets, pois esperam obter a maioria contra Lenin e Trotski na reunião dos delegados bolcheviques ao congresso. Esta sua esperança nada tem de ilusória.

Informado por telefone a respeito do conteúdo da carta, Lenine explode contra «esse incrível ato de “fura-greve» e exige a expulsão do partido dos dois homens. No Rabotchi Pout de 20 de outubro, Staline, que se opõe aos dois, publica uma carta e uma nota anonima cuja paternidade admitirá, onde critica a «tonalidade áspera» de Lenin. 

De seu esconderijo, onde aguarda a cada dia o mensageiro diário que lhe traz as notícias, Lenin não pode organizar praticamente a insurreição que fez votar. Frente às hesitações, ao ceticismo, até mesmo à paralisia da direção, ele se impacienta. Os preparativos da insurreição são aliás assegurados pelo Soviet de Petrogrado e por seu Comitê Militar Revolucionário presidido por Lazimir, um S-R de esquerda. Trotski estima que a tomada de poder acompanhe o congresso dos Soviets, para ligar ambos estreitamente e assim atribuir plena legitimidade à tomada do poder. Já Lenin teme que a associação do levante com o congresso constitua um pretexto, para não se agir na espera de um congresso, tudo dependendo de uma maioria insegura. 

Segundo Trotski, a insurreição seguiria o congresso como sua sombra e se desenvolveria tanto melhor porque apareceria como defensiva; em 24 de outubro, ele define as decisões do Soviet de Petrogrado como sendo «atos de ofensiva” que, na realidade, conservariam um caráter ondulante, meio camuflado, preparatório.»  Porém, vista por Lenin, em seu esconderijo forçado, onde retém sua ansiedade, a tática de Trotski que retarda certas decisões para não antecipar as decisões do congresso, somente pode suscitar sua desconfiança. A ambiguidade proposital dos discursos e das medidas tomadas, pode permitir a transformação da camuflagem do congresso em atentismo passivo. É a política pública de Zinoviev e Kamenev e não exposta por muitos outros. Contra essa passividade, onde vislumbra a morte da revolução, Lenin se recusa a subordinar a tomada do poder a uma maioria duvidosa no congresso, sensível a uma manobra eventual da direção. Os dirigentes do Comitê Executivo Central, associados ao aparelho de Estado, saberão como manipular os mandatos. Cada qual dentre eles aliás se atribuiu um mandato, sem serem delegados e retardaram de cinco dias a abertura do congresso, para melhor controlarem os delegados. Os bolcheviques não têm garantia alguma de terem a maioria. Assim, ele quer que a insurreição preceda e não siga o congresso.