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MUNDO

“Tendas por todos os lados” enquanto Rafah luta para manter um milhão de palestinos

Deslocados várias vezes pela guerra, muitos na cidade no extremo sul de Gaza estão vivendo em abrigos improvisados, sem comida, água ou cobertores suficientes.

Por Mohammed Zaanoun, do portal +972Mag. Tradução de W. Mermelstein, do Eol
Mohammed Zaanoun

Cerca de metade da população da Faixa de Gaza – cerca de 1 milhão de pessoas – está agora amontoada na pequena cidade de Rafah, no sul da Faixa, perto da fronteira com o Egito. Antes da guerra, a cidade e seus arredores abrigavam menos de 300.000 pessoas, mas centenas de milhares de outras chegaram nos últimos três meses de toda Gaza como resultado das ordens de expulsão de Israel e seus bombardeios incessantes por terra e ar.

Como o resto de Gaza, Rafah não tem comida, água, remédios ou abrigo suficientes para acomodar seus residentes permanentes, muito menos o grande número de pessoas que agora buscam refúgio na cidade. Muitas famílias estão dormindo em barracas, se puderem encontrar alguma; se não o conseguem, dormem nas ruas. Muito poucos são autorizados a cruzar a fronteira para o Egito. Quase todo mundo está extremamente faminto e com frio.

Atualmente estou hospedado em Rafah com minha esposa e quatro filhos pela segunda vez desde o início da guerra. Deixamos nossa casa no noroeste da Cidade de Gaza em 7 de outubro; desde então, fomos repetidamente forçados a nos mudar como resultado de ataques aéreos israelenses e ordens de expulsão, e eu retirei meus filhos duas vezes de debaixo dos escombros.

A casa dos meus sogros no centro da Cidade de Gaza, onde procuramos abrigo pela primeira vez depois de fugir de casa, foi destruída; o apartamento que posteriormente alugamos em Rafah por cerca de um mês foi severamente danificado; e mais tarde descobri que nossa própria casa também estava muito danificada e que os soldados israelenses a certa altura a usaram como base.

Mohammed Zaanoun
Crianças palestinas vistas em um acampamento de tendas na cidade de Rafah, no sul de Gaza, em 9 de janeiro de 2024.

Depois de passar mais um mês com parentes na cidade de Khan Younis, fomos forçados a retornar a Rafah devido ao avanço das forças terrestres israelenses. Desta vez, eu não tinha condições de alugar um apartamento aqui devido aos preços exorbitantes – atualmente em torno de US$ 2.000 por um pequeno apartamento – então acabamos ficando com parentes de minha mãe no Corredor Philadelphi que é paralelo à fronteira com o Egito.


>> Leia também: O governo da “segunda Nakba” aproveita o momento


Estou lutando para conseguir comida e água aos meus filhos. Meu filho Kenan, de 2 anos, fica pedindo leite, que eu não consigo. Eles estão traumatizados e têm uma reação muito forte ao som de bombas e explosões. Muitas vezes é desafiador trabalhar, pois as crianças não me deixam sair. E com as forças israelenses supostamente se preparando para reocupar o Corredor Philadelphi, em breve poderemos ser forçados a sair novamente. Não sei mais para onde ir.

Há alguns dias, deixei meus filhos e fiz a viagem até o centro de Rafah para comprar comida e água. Ao longo do caminho, vi apenas tendas, parei e falei com alguns dos deslocados. Estas são as suas histórias.

Mohammed Zaanoun
Salam Al-Sinwar, 24

Estou morando nessa barraca com meu marido e quatro filhos, de 3, 7, 10 e 12 anos. Tivemos que deixar nossa casa na Cidade de Gaza porque havia bombardeios ao nosso redor. Quando saímos, nossa casa estava meio destruída. Agora, dizem que está completamente destruída.

Da Cidade de Gaza, primeiro nos mudamos para o campo de Al-Nuseirat [no centro de Gaza] e depois para Rafah. Eu não queria sair. Toda a minha vida, tudo e todos que conheço estão no norte. Não conheço ninguém aqui em Rafah. Viemos sem nenhum de nossos pertences, pois não podíamos levar nada conosco.

Quando chegamos em Rafa, ficamos nas ruas por três dias até que alguém nos trouxe essa barraca. Há insetos aqui que vêm de debaixo da areia, e faz um frio congelante. Os adultos não conseguem lidar com esse clima, especialmente à noite – então como as crianças podem?

Meus filhos estão doentes. Estão sempre com frio e fome. Não temos condições de comprar nenhum alimento, então esperamos que as pessoas nos tragam [de caminhões com ajuda]. Não quero comer nem beber, tudo o que quero é comida e água limpa para os meus filhos.

Um dos meus filhos é surdo-mudo e também sofre de uma doença cardíaca. Ele tem 7 anos e não sabe dizer se está com fome, sede ou frio. Mas eu sei que ele está.

Quero voltar para casa, onde tenho minhas roupas, roupas dos meus filhos e cobertores. Quero um lugar aconchegante para meus filhos. Não quero ter que depender de favores alheios para sobreviver.

Mohammed Zaanoun
Nurhan Hasonah, 20, com sua filha.

Tenho uma filha, de 2 anos. Ela é toda a minha vida.

Sou do bairro de Al-Rimal, na Cidade de Gaza. Quando o bombardeio começou, mudamos de bairro em bairro algumas vezes. Quando [o exército israelense] nos disse para abandonar o norte, mudei-me com minha filha, pais e irmãos para Al-Nuseirat. Ficamos lá por dois meses.

Depois tivemos que sair de novo, e acabamos em Deir al-Balah [cidade no centro de Gaza], mas não conseguimos encontrar abrigo lá. Havia barracas por toda parte, e as escolas e abrigos estavam cheios, então fiquei com minha filha na rua por um dia antes de vir para Rafah. Aqui, passamos mais um dia inteiro na rua até que alguém nos trouxe uma barraca. Rafah é uma cidade de tendas – aonde quer que se vá, veem-se tendas.

Passo a maior parte do dia fora da tenda. É tão pequena e apertada. Nada na tenda é nosso, recebemos tudo de outras pessoas. Os cobertores não são suficientes. Minha filha não troca de roupa há semanas e eu luto para encontrar fraldas aqui. Não cozinhamos porque não temos condições de comprar lenha. Comemos o que as pessoas ou organizações de ajuda nos trouxerem. Uma vez a cada poucos dias recebemos pão e alguns legumes.

O que está acontecendo em Gaza não é destruição, é aniquilação. Destruíram toda a Faixa. É muito difícil descrever o que passamos e ainda estamos vivendo. Meu bairro, Al-Rimal, era o coração pulsante de Gaza, cheio de vida, negócios, entretenimento e cultura. Quando saímos, foi como o dia do juízo final.

Meu único sonho é que essa guerra acabe para que eu possa voltar para casa. Peço a Deus que eu possa voltar para a Cidade de Gaza.

Mohammed Zaanoun
Amjad Wahdan. 20 anos

Sou de Beit Hanoun [cidade no extremo norte de Gaza]. Saí durante os primeiros dias da guerra para diferentes bairros ao redor da Cidade de Gaza: primeiro para Tal al-Zaatar e depois, para Sheikh Radwan. Então o exército [israelense] nos forçou a mudar para Al-Nuseirat. Ficamos lá por 70 dias, mas novamente tivemos que sair por causa do bombardeio e das ameaças do exército.

Aqui estamos agora, em Rafah, sentados na rua. Nossa tenda fica em uma calçada. Compramos madeira, nylon e capas para dar sombra. Cada barraca custa cerca de NIS 600 shekels [cerca de US$ 160]1. Estamos todos aqui, a família toda: meus pais, avós, tios e suas famílias – cerca de 80 pessoas no total.

Esta é a minha primeira vez em Rafah. Até agora, tinha passado toda a minha vida em Beit Hanoun. Eu nunca tinha chegado ao sul. Não sei onde estou.

Mohammed Zaanoun, 60 anos
Hanan Barakeh.

No primeiro dia da guerra, deixamos nossa casa na cidade de Abasan al-Jadida a leste de Khan Younis e nos mudamos para a cidade. Ficamos na casa da minha filha, em que morava com o marido e os filhos. Éramos oito na casa, e ficamos lá por dois meses até que o exército começou a soltar panfletos dizendo para partirmos para mais ao sul. Fugimos sob o bombardeio e viemos para o bairro de Al-Shabora, em Rafah, para esta barraca na estrada.

Eu tinha uma casa linda, com chuveiros e três banheiros. Agora veja como estamos vivendo. Não podemos tomar banho aqui. É impossível para as moças conseguirem.

Aqui não há comida, mas às vezes grupos de ajuda vêm e distribuem muito pouco alimento para muitas pessoas. Eu gostaria de poder trabalhar. Todas as mulheres aqui querem trabalhar e ser pagas. NIS 20 [cerca de US$ 5] por dia seria suficiente para eu conseguir comida para meus filhos. Não posso cozinhar porque não tenho condições de comprar lenha. E mesmo que pudéssemos, é perigoso por causa de todo o nylon [do qual a maioria das barracas é feita].

Se pudesse, voaria para minha casa. Mesmo que a casa seja destruída, prefiro montar uma barraca lá e um dia reconstruir nossa casa.

Mohammed Zaanoun é um fotojornalista baseado em Gaza.
1 Nota da edição brasileira do EOL: o Shekel é a moeda israelense. Em Gaza, ele é a moeda corrente, pois Israel controla todo o comércio para e da Faixa. Assim como os documentos de identidade pessoal que são feitos por Israel. São detalhes fundamentais e que mostram que Gaza nunca foi desocupada, ao contrário da propaganda sionista.
Original em ‘Tents everywhere’ as Rafah struggles to hold a million Palestinians