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MUNDO

Ainda estamos aqui

Por Glória Trogo e Henrique Canary, da redação

Pandora (1894), John William Waterhouse

Ainda estamos aqui
Antes, de fato, as tribos dos humanos viviam sobre a terra
sem contato com males, com o difícil trabalho
ou com penosas doenças que aos homens dão mortes.
(…)
Mas a mulher [Pandora], removendo com as mãos a grande tampa de um jarro,
espalhou-os, e preparou amargos cuidados para os humanos.
Sozinha ali ficou a Antecipação [Esperança], na indestrutível morada,
dentro, abaixo da boca do jarro, e para fora não
voou. Pois antes [Pandora] baixou a tampa do jarro
(Hesíodo, Os trabalhos e os dias)

Diz a mitologia grega que Pandora foi enviada à Terra por Zeus para castigar os humanos pelo roubo do segredo do fogo. Zeus entregou um jarro ou caixa a Pandora e ordenou-lhe que nunca a abrisse. Mas Pandora não resistiu e, por curiosidade, abriu a caixa, libertando todos os males que vagam pelo mundo até hoje. Só uma coisa permaneceu na caixa: a esperança. O sentido do mito é discutível. A esperança pode ser encarada como um tormento que prende os seres humanos à ilusão de uma vida melhor ou como um alívio que deve nos acompanhar em tempos sombrios. De qualquer forma, a esperança é um poderoso sentimento. Ela não se confunde com o simples otimismo. Segundo o crítico literário britânico Terry Eagleton, o otimismo tem algo de banal. É simplesmente uma característica de certas pessoas que “olham o lado bom da vida”, nada muito além disso. Não constitui, por si só, um mérito. Com a esperança, as coisas são diferentes. Ela é uma convicção mais profunda, uma “postura epistemológica”, o resultado da compreensão de que a história não termina enquanto houver seres humanos sobre a Terra e que, por isso, como disse Pepe Mujica, nenhuma derrota e nenhuma vitória são definitivas.

A vitória de Trump e a crise de perspectiva

Aqueles que lutam por um mundo mais justo não têm tido dias tranquilos. Primeiro, foram as eleições municipais; agora, a vitória de Trump. O desalento é compreensível. Não foi qualquer derrota. Podemos sistematizá-la assim: a) Trump obteve uma vitória contundente, longe do cenário apertado previsto nas pesquisas; b) Chega à Casa Branca apoiado por uma maioria no Senado, na Câmara dos Deputados e na Suprema Corte; c) Vence em um cenário de avanço ideológico, eleitoral e organizativo da extrema-direita mundial. Já não se trata da “antecipação” de uma tendência, como foi em 2016, mas de um movimento sólido; d) Pode-se falar hoje de uma “Internacional de Extrema-Direita”, ou seja, de uma ampla articulação das forças mundiais da contrarrevolução; e) Não se trata do início, mas do auge da crise da democracia representativa. Os regimes políticos estão muito mais frágeis do que há 8 anos, abrindo mais possibilidades de sua substituição por formas ainda piores; f) Trump não é mais um “outsider”. Há uma fascistização da alta burguesia mundial, que encontrou no bilionário seu melhor representante até agora. Ele é a figura chave de um sistema inteiro que girou à direita (vide Elon Musk e seu papel na campanha); g) O próprio Trump se fascistizou. Antes, defendia posições de um populista de direita; hoje é um fascista típico; h) Há um novo ciclo de experiências ruins de governos liberais democráticos. Biden é sua maior expressão, mas há também Olaf Scholz na Alemanha e Emmanuel Macron na França. Também é preciso acompanhar a evolução do governo trabalhista na Inglaterra; i) Há um avanço qualitativo das tensões mundiais, com uma articulação mais definida dos blocos em disputa. Isso certamente empurrará Trump para uma agenda externa mais agressiva, o que deve agravar as tendências já existentes. O relativo isolacionismo de seu primeiro governo não funcionará mais; j) Não há, até agora, nenhuma crise mundial ou doméstica que atrapalhe seus planos, como foi com a pandemia em 2020-2022. A Covid-19 abalou enormemente a capacidade de ação dos governos de extrema-direita daquele ciclo. Hoje o caminho está livre.

de qualquer ângulo que se analise, tratou-se de uma vitória decisiva da extrema-direita e com grande potencial de estrago sobre as relações laborais, coloniais, diplomáticas, políticas, militares e econômicas no mundo inteiro

Ou seja, de qualquer ângulo que se analise, tratou-se de uma vitória decisiva da extrema-direita e com grande potencial de estrago sobre as relações laborais, coloniais, diplomáticas, políticas, militares e econômicas no mundo inteiro. Confirmou-se, mais uma vez, que a economia pura não vence as eleições, mesmo no país mais rico do mundo, onde esse fator é o mais importante desde sempre. Trump venceu porque fez luta política e ideológica, arregimentou seguidores fiéis que foram uma potente caixa de ressonância de suas ideias. Pelo lado oposto, o governo Biden foi decepcionante em termos de medidas sociais e sobretudo em justificar aquela indefinível esperança que está sempre presente no coração do povo quando um tirano é substituído por um governo democrático liberal clássico.

É preciso acompanhar também como se comportarão as instituições do regime nos Estados Unidos e no mundo. Não esqueçamos que Trump vem de uma tentativa frustrada de golpe de Estado. Frustrada, mas que lhe rendeu um importante acúmulo de forças. Depois do 06 de janeiro de 2021, muitos analistas prognosticaram sua ruína e a inevitável decadência de seu movimento. Mas aconteceu o exato oposto. As instituições cederam e Trump só se fortaleceu desde então. Agora ele sabe que nem mesmo a institucionalidade do Estado mais poderoso do planeta é um obstáculo absoluto. Isso fortalece enormemente o questionamento das instituições desde uma ótica fascista. No Brasil, por exemplo, aumentará a pressão pela anistia dos golpistas e, em primeiro lugar, de Bolsonaro. Se um presidente que tentou um golpe pode ser reeleito nos Estados Unidos, por que não no Brasil?

Por fim, é importante notar que depois de um governo democrata desmoralizante, que perdeu apoio inclusive entre aqueles que mais dizia defender, como a população negra e latina, o trabalho de organizar uma resistência de massas ficou mais difícil. Lembremos que o primeiro mandato de Trump foi marcado por um importante movimento de massas expresso no Black Lives Matter. Não está claro como as coisas serão agora.

Algumas consequências de médio e longo prazo

A vitória de Trump confirma, em primeiro lugar e acima de tudo, que a luta contra o fascismo e a extrema-direita é a marca do nosso tempo histórico. Não se trata de uma onda passageira, mas de um ciclo de duração ainda indefinida. A ascensão da extrema-direita se enquadra no cenário de multicrise que vive o mundo: 1) a crise econômico-social aberta com o colapso financeiro mundial de 2008; 2) a crise do sistema mundial de Estados provocada pela ascensão da China e seu bloco; 3) a crise da democracia burguesa; 4) a crise subjetiva do proletariado e suas organizações e 5) a crise climática. Todas essas crises se aceleram e se aprofundam, delineando assim as características mais gerais do período.

Analogias são perigosas porque a história nunca se repete. Mas podem ser úteis para termos noção do horizonte que se nos apresenta. A humanidade já viveu um período de ascensão aparentemente irrefreável das forças fascistas: os anos 1930. O fascismo chegou ao poder na Alemanha e Itália, mas sua influência não se restringiu a esses países. O Japão vivia sob um regime militarista e colonialista de características fascistizantes. O fascismo tinha adeptos na Inglaterra, nos Estados Unidos, venceu a Guerra Civil na Espanha e recebia apoio de massas na França de Vichy, dirigida pelo colaboracionista Philippe Pétain. No próprio Brasil semicolonial, Getúlio Vargas flertou com o fascismo o quanto pôde e seu regime foi caracterizado como semifascista por várias organizações da época e historiadores de hoje.

Agora o objetivo é eliminar de vez a “ameaça comunista”, destruir a esquerda e os movimentos sociais em toda a frente, deportar milhões de seres humanos, acabar com os direitos reprodutivos, por fim à educação e à saúde públicas, preparar o enfrentamento definitivo com a China, impulsionar com toda a força a indústria do petróleo, estabelecer um forte controle sobre as semicolônias da América Latina, retomar a disputa da África, aprofundar o jugo sobre a Europa, avançar na construção da “Grande Israel”, por de joelhos o Irã.

Assim, uma onda histórica de avanço da extrema-direita não é exatamente uma novidade. Qual é, então, o horizonte atual? Os planos do trumpismo não são mais mediados e confusos como eram há 8 anos: “construir um muro”, “aumentar tarifas alfandegárias” etc. Agora o objetivo é eliminar de vez a “ameaça comunista”, destruir a esquerda e os movimentos sociais em toda a frente, deportar milhões de seres humanos, acabar com os direitos reprodutivos, por fim à educação e à saúde públicas, preparar o enfrentamento definitivo com a China, impulsionar com toda a força a indústria do petróleo, estabelecer um forte controle sobre as semicolônias da América Latina, retomar a disputa da África, aprofundar o jugo sobre a Europa, avançar na construção da “Grande Israel”, por de joelhos o Irã. Não parece que essa força avassaladora possa ser parada sem algum grau de enfrentamento e violência (doméstica e entre Estados).

Não é evidente que o fascismo consiga implementar todo o seu projeto. Mas isso não importa tanto e é parte do próprio plano. O modus operandi do fascismo tem sido, exatamente, o acúmulo de forças por meio da tentativa permanente (ainda que sem sucesso ou com sucesso apenas parcial) de aplicar seus planos. É o método de “testar os limites”. Foi assim com o Capitólio nos EUA e com o 8 de Janeiro no Brasil. Com isso, mantém sua base social mobilizada e excitada. Suas derrotas parciais e temporárias demonstram para a base fascista que se trata de uma luta de longo prazo “contra o sistema” e por isso é preciso manter a ofensiva e a mobilização, fortalecer os líderes etc. E é mesmo provável que eles estejam se preparando para uma luta de longo prazo. Porque eles também têm uma avaliação de que o mundo atual não se sustenta em perspectiva. É preciso então impor uma nova ordem de coisas na economia, na política, nas relações internacionais etc. É um projeto fascista completo, digno desse nome.

Por fim, é preciso reconhecer que a vitória de Trump afeta imediata e profundamente o Brasil. Isso é assim não apenas porque dá uma injeção de ânimo no bolsonarismo. Esse é o fator mais subjetivo e talvez nem seja o central. O fundamental é que o enorme poderio político, econômico e diplomático do Estado norte-americano será colocado a serviço do fortalecimento de Bolsonaro, que hoje já se encontra mais perto da anistia do que da prisão. Essa dinâmica tende a se intensificar. Quem já achava que os democratas eram golpistas (e estavam certos!) – que espere até Trump mostrar as garras. É de Elon Musk, um de seus maiores apoiadores, o famoso twitte: “Daremos golpes em quem quisermos. Lidem com isso”.

Assim, o cenário que se desenha é o mais sombrio dos últimos 90 anos. Ele impõe desafios gigantescos à esquerda e coloca debates como a própria questão da sobrevivência da humanidade e sua civilização.

É possível a esperança?

Dissemos mais acima que os anos 1930 se caracterizaram pela ascensão do fascismo. Mas não só. Houve também resistência: política, militar, cultural, eleitoral, diplomática. No final, mais militar do que qualquer coisa. E ela venceu. E assim foi em outros episódios sombrios da nossa história. Houve o Golpe Militar de 1964 e o AI-5 de 1968, mas também a reorganização política e sindical dos anos 1970, o movimento pela anistia e as Diretas Já!

Marx dizia que os seres humanos fazem a própria história, mas não de acordo com sua vontade, e sim segundo as condições herdadas do passado. Isso quer dizer que uma geração não escolhe o terreno da luta nem o inimigo que vai enfrentar. Recebe esses elementos do tempo que lhe coube viver.

A derrota do fascismo em sua nova versão é a tarefa do nosso tempo histórico, da nossa geração. Mas isso não será feito sem uma luta cruel e sem uma importante transformação na própria forma da esquerda se relacionar com as massas e fazer política.

A derrota do fascismo em sua nova versão é a tarefa do nosso tempo histórico, da nossa geração. Mas isso não será feito sem uma luta cruel e sem uma importante transformação na própria forma da esquerda se relacionar com as massas e fazer política.

O próximo período deve ser marcado pela reconstrução da esquerda e sua reconexão com os movimentos sociais. O termo reconstrução é grave, mas necessário. A esquerda foi quase anulada como força social e política de impacto e por isso fascismo e liberalismo sonham juntos com um mundo em que só há direita e centro. Mas esses são sonhos vãos. A esquerda não morreu, como dizem alguns; existe e existirá resistência. Ainda estamos aqui.

E não somente nós. Os movimentos sociais não desapareceram. Sofreram uma profunda transformação, mas existem. Assumiram novas pautas, recusam (com razão) certas práticas e dogmas do passado, mas seguem vivos e com relativo peso em determinados territórios.

Multiplicam-se e diversificam-se os espaços de resistência. O próprio avanço do fascismo cria também as novas trincheiras da luta: a cultura, a ciência, a arte, a educação, o esporte, a internet. São frentes tão reais e importantes para a disputa da hegemonia quanto os sindicatos.

A classe trabalhadora não desapareceu. Ela também se transformou. Vive uma profunda crise subjetiva, mas nunca foi tão vasta, diversa, internacional, produtiva e socialmente importante como agora. É verdade que no passado era muito mais fácil organizar e mobilizar a classe trabalhadora. Mas isso só era assim porque as gerações que vieram antes encontraram uma forma de diálogo. Nós temos que encontrar a nossa.

A crise do projeto socialista não paralisou totalmente o afluxo de sangue novo para os movimentos sociais e organizações de esquerda. Os jovens têm vindo. A ideia do socialismo penetra numa estreita, porém importante franja do ativismo. Eles são difíceis de entender, têm grandes expectativas, se decepcionam com facilidade, mas o futuro lhes pertence.

As lutas seguem gerando uma vanguarda relativamente pequena, mas que busca uma alternativa. Não são marxistas, muito menos revolucionários; muitas vezes não são nem socialistas e às vezes são mais liberais do que de esquerda. Mas são curiosos e estão dispostos a aprender.

As lutas seguem gerando uma vanguarda relativamente pequena, mas que busca uma alternativa. Não são marxistas, muito menos revolucionários; muitas vezes não são nem socialistas e às vezes são mais liberais do que de esquerda. Mas são curiosos e estão dispostos a aprender. O diálogo com essa vanguarda é possível se abrirmos um pouco mais os ouvidos além da boca.

Esses são nossos companheiros de luta. Esses somos nós. E se perante essa nova geração estão colocadas tarefas históricas de excepcional dimensão, então é porque o material humano é apropriado. Porque a história não cria sujeitos perfeitos; ela só pode usar as ferramentas de que dispõe. E ela tem um especial talento de fazer milagres com muito pouco.

Isso não quer dizer que basta sentar e esperar a história acontecer. A vida é ação. O trabalho será gigantesco, “infernal”, como dizia Maiakóvski em seu poema sobre Lênin. Trata-se, até certo ponto, de um recomeço: a formação e o debate na esquerda; a reconquista da vanguarda para a ideia do socialismo; a reconexão com os movimentos sociais e a periferia; a superação de um sectarismo infantil que procura sempre culpar a própria esquerda por todos os pecados do mundo; a busca pelos precários e desorganizados; a valorização das táticas de unidade; o aproveitamento das oportunidades, das “janelas na consciência” por onde se pode entrar; a utilização pedagógica das experiências concretas da classe; a consideração de sua diversidade religiosa, racial, regional, de gênero e identidade sexual; a combinação entre um programa de esquerda e a Frente Única como condição inescapável para sua implementação; a sujeição dos mandatos parlamentares e posições institucionais ao restabelecimento dos vínculos com o movimento de massas; a rejeição ao fratricídio permanente, principalmente entre as minúsculas organizações da esquerda socialista. E sobretudo: a luta feroz em cada batalha – eleitoral, sindical, política, econômica, cultural. Cada centímetro do terreno importa.

Dentro desse vasto processo, a esquerda anticapitalista tem um papel fundamental: ser o polo consciente da unidade e a vanguarda das lutas concretas, ao mesmo tempo em que aponta para uma estratégia de superação do capitalismo e construção de uma nova sociedade, o socialismo.

A ampla reconstrução da esquerda não se confunde com mais um giro de adaptação ao centro, ao sistema ou ao regime democático-burguês. Em um certo sentido é uma renovação porque o mundo mudou. Em outro, é o resgate de uma tradição: a ousadia na luta pelo sonho de justiça social. Dentro desse vasto processo, a esquerda anticapitalista tem um papel fundamental: ser o polo consciente da unidade e a vanguarda das lutas concretas, ao mesmo tempo em que aponta para uma estratégia de superação do capitalismo e construção de uma nova sociedade, o socialismo.

Paulo Freire transformou a esperança em verbo e cunhou o termo “esperançar”. Sendo verbo, precisa de um sujeito, da ação de pessoas para fazer girar a roda da história. Esses são dias para lamber feridas, mas também para lembrar do papel da ação coletiva como sujeito de um novo futuro. A saída da onda de derrotas que estamos metidos só pode ser produto da ação organizada de pessoas. São os sujeitos coletivos que sustentam uma corrida de revezamentos para construir o futuro. A democracia brasileira (mesmo débil e capenga) não pode ser explicada sem compreender o papel de quem lutou na ditadura. As revoluções vitoriosas não podem ser explicadas sem mencionar quem combateu nos refluxos que as antecederam; as grandes conquistas não encontram outra explicação que não seja as derrotas anteriores a elas. O acerto é constituído de uma história de tentativas e erros. Mas não é qualquer erro, não é qualquer derrota que tem este poder criativo: são somente aquelas que, a partir de uma produção coletiva, geram lições, conclusões, para que o amanhã não seja um ontem com outro nome.

Nesses dias difíceis, é bom lembrar um outro poema de Maiakóvski, o bardo da revolução, mas também o poeta trágico. Sua poesia é um sopro de vida, o voo da esperança, aquela que finalmente se liberta do fundo da caixa enviada por Zeus pelas mãos de Pandora:

Não estamos alegres,
É certo,
Mas também por que razão
Haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
É agitado.
As ameaças
E as guerras
Havemos de atravessá-las.
Rompê-las ao meio,
Cortando-as
Como uma quilha corta
As ondas.