Recentemente, matéria do Diário do Grande ABC deu visibilidade a levantamento a partir dos dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que diz que no ABC paulista ocorreram 2514 despejos ou reintegrações de posse nos últimos 5 anos. São Bernardo do Campo está no topo da lista, com 861 casos.
Essa realidade atinge pessoas que vivem por vezes a décadas na periferia da cidade. Atualmente, o deficit habitacional da mesma chega a 75 mil habitantes sem moradia de qualidade. São Bernardo do Campo, a cidade que orgulha-se de ser uma das mais ricas do país, não garante moradia digna para sua população.
E quando vemos qual é a população que mais sofre com a falta de moradia, constatamos que é em sua maioria negra, periférica e pobre. É o caso de Leandro, o “Mutano”, que recebeu notificação de despejo este ano e, ao lado de mais outras famílias que moram no Grande Alvarenga às margens da Represa Billings, não sabe se terá onde morar após possível despejo previsto para o começo do ano que vem. O jovem é artista, MC, um dos participantes do clipe de rap “Alvarenga de Ponta a Ponta”, o vídeo mais visualizado da página da Secretaria de Cultura da cidade que foi financiado através da Lei Aldir Blanc, música com letra que narra muitas mazelas que hoje atingem sua própria vida e de sua comunidade.
Desde quando você mora aqui? Quais as suas principais lembranças?
Eu moro aqui mesmo desde os meus 17 anos. Eu nasci aqui na cozinha na sala da minha tia, mas minha mãe se mudou conforme o tempo, tentando encontrar um lugar pra morar, né? E acabou voltando pra cá com meus 17, tanto que onde eu tô agora era a casa de um colega meu que minha mãe comprou da mãe dele, que era um barraquinho na época e conforme o passar do tempo a nós fomos construindo, transformando em alvenarias, tentando trazer um pouco mais de estabilidade e que eu me lembre desde os meus 17 anos que eu tô aqui. Hoje eu tenho 28 anos.
E você trabalha do quê? Qual a sua função?
Eu sou artista independente, autônomo, né? E é isso, não tem muito.
Quando chegou a notificação de despejo, quem trouxe essa notificação? E como você, a comunidade e os vizinhos se sentiram?
Essa notificação chegou com um pessoal da Secretaria de Habitação, o “pessoal do coletinho verde” lá que eles falaram que ia ter uma obra na Estrada dos Alvarengas e que a gente estava na margem que ia passar a obra e que a gente ia ter que sair daqui e ia cair no programa de habitação que eles iam fornecer o “predinho”, alguma coisa assim. E beleza, até então a gente concordou, acho que ia ser legal sair de um lugar que a gente não tá tão bem, que a gente tava estruturado mas não tá tão bem, que vai ser uma obra, vai acontecer uma obra e ir pra um lugar que vai estar mais… que vai querendo não ter um pouco mais de conforto e segurança pra mim e pra minha família mesmo.
E eles te deram alguma promessa de onde seria esse lugar? Explicaram como seria esse lugar? Deram alguma garantia?
Não, eles até de primeira instância mesmo eles falaram que seria nas proximidades do Las Palmas que é um bairro aqui vizinho E falaram que seria lá e a gente… o prédio estaria sendo construído mais um quanto antes pra gente estar já saindo de mediato da nossa casa pra lá aí conforme foi o passar do tempo eles deram sumiço e depois voltaram depois de seis meses em média falando que o prédio realmente estava sendo construído, mostrou os projetinhos do prédio. Aí ele falou, pessoal achou bonito, falou que vai ser um lugar de conforto e segurança para a família. Mas aí eles falaram que a gente ia ter que sair em média de 60 dias da nossa casa e eles iam estar auxiliando a gente no auxílio aluguel de 315 reais. Que querendo ou não a gente não consegue pagar um aluguel com 315 reais. Hoje em dia pelo menos um auxílio de um aluguel de uma casa é 800 reais pra cima. E o povo não achou muito legal. Aí eles falaram que a gente ia ter que procurar nossos direitos, alguma coisa assim, e que a notificação ia estar chegando pra gente sair em 60 dias. E eles não deram garantia que depois que vocês saíssem, vocês já fossem pro predinho, que eles disseram. Na primeira instância que eles falaram sim, a gente falou que o prédio ia ser construído mais rápido pra gente sair da casa direto pro prédio. Só que depois que eles voltaram, depois dos seis meses, eles falaram que a gente teria que sair e que ainda o prédio não tava sendo construído, mas ele tava pra ser construído.
Entendi. Tinha um projeto, mas a construção não tava avançada. E esse auxílio aluguel ele ia durar quanto tempo mais ou menos?
A média que nós estavamos vendo é que para as pessoas que estão na área de risco esse auxílio aluguel é de 315 por 6 meses, em média, ele se caixa no auxílio emergencial, que é por causa que você cai numa zona de risco, dizem eles, né? Aí, mas querendo ou não, seis meses, um auxílio de 300 contos, a gente não paga aluguel.
E vocês se organizaram pra se defenderem disso?
É, sim, veio um pessoal, a gente falou que ia chamar advogado, tanto que a minha vizinha, ela falou que a gente ia ter que não ficar parado que a gente ia lutar pelos nossos direitos. E eles falaram, não, realmente, vocês tem que lutar pelos direitos de vocês, então vai lá, porque a gente não pode fazer muita coisa. Aí veio um pessoal do MST, alguma coisa assim. Aí eles deram um certo apoio pra gente, no máximo que eles podiam tá, nos aconselhando ali também pra gente não desistir e lutar pelos nossos direitos. E foi daí sim que a gente tava conseguindo meio que entender o que a gente tava lidando, querendo ou não. E a gente tava meio leigo, cara, chegou, falou que a gente tem que sair e já era, mas a gente não sabe como lidar com isso.
Mas depois disso que o MTST veio aqui e outros movimentos a apoiar vocês, a comunidade meio que começou a se dispersar, né? Como a gente viu aqui, algumas pessoas já foram embora, certo?
Sim, sim. Conforme o passar do tempo, aquela aliança que todo mundo tem no começo de não querer sair, acaba ficando meio enfraquecida com a pressão do governo mesmo, né? Dessa pressão política que tem muita pessoa com poder que falam “você não vai ter direito ao auxílio, vai ficar sem nada e vai ter que se virar sozinho”. Foi como, numa das reuniões, um dos caras deve ter falado lá pra… que eu não me lembro muito bem a cara do meliante. Mas foi mais ou menos isso.
Entendi. E como que vai ser o seu final de ano com toda essa pressão que você tá sofrendo? Porque o despejo está previsto mais ou menos para o início do ano que vem, né? E se acontecer esse despejo que a gente espera que não aconteça, você tem ideia de para onde você iria? Tem alguma alternativa real que foi apresentada para além do auxílio, para além dessa promessa de construção de prédio?
Simplesmente eles querem que a gente se encaixa no auxílio de 315 reais. E se a gente não se encaixar eles vão vir aí e vão passar derrubando as casas tudo que é o que estão dizendo né, que vão passar derrubando e se você não sair vão derrubar com as suas coisas dentro ou no máximo se tiver dó de você vão tirar suas coisas pra fora com você deixando ou não e vão derrubar sua casa. E o final de ano eu não sei porque querendo ou não a gente… eu mesmo, eu não to conseguindo ter tempo pra pensar 2, 3 dias a frente, eu tenho que pensar no agora.
Você quer falar mais alguma coisa? Alguma consideração final?
Ah mano… eu acho que é só um desleixo da nossa política, do nosso governo, de São Bernardo principalmente, que é muito tucano do papo amarelo que só sabe falar mentira, que só pensa no bolso dele, e é isso.
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A cidade de São Bernardo do Campo aderiu ao projeto “Cidades Antirracistas” do Ministério Público de São Paulo, ao passo que a administração atual foi denunciada para diversas instituições, incluindo o próprio MPSP e até mesmo à ONU, por racismo institucional, denúncia que inclui o processo de despejos.
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