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BRASIL

Arsenal na casa de Roberto Jefferson é ponta do iceberg: CACs já possuem mais de um milhão de armas

Crescimento do armamento sob Bolsonaro é ameaça à democracia

Henrique Canary, de São Paulo, SP
Reprodução/Redes sociais

O caso da tentativa de homicídio por parte do ex-deputado federal Roberto Jefferson contra policiais federais no último domingo no Rio de Janeiro revela, além de uma série de outras coisas, o grave problema do descontrole armamentista incentivado por Bolsonaro e dominante hoje no país. Como se sabe, Jefferson atacou a diligência da Polícia Federal com bombas de efeito moral e um fuzil com mira a laser, ferindo quatro policiais, uma delas na cabeça. O episódio é mais uma prova de que a luta do bolsonarismo pela desregulamentação do controle de armas não tem nada a ver com a “autodefesa” do “cidadão de bem”. Trata-se unicamente de mais uma mecanismo para destruir a democracia no país, com o armamento de milícias violentas simpatizantes da ultradireita e defensoras do presidente.

Desde que assumiu o cargo, Bolsonaro fez simplesmente explodir os números relativos ao armamento no país. Em quase quatro anos, o governo editou 38 atos normativos que facilitam o acesso a armas e afins, como munição e equipamentos. A desregulamentação acabou de fato com vários mecanismos de controle previstos no Estatuto de Desarmamento, em vigor no país desde 2003 e que estabelece uma série de exigências para a posse e o porte de armas.

As medidas são de uma barbaridade sem tamanho e os números são alarmantes. Em primeiro lugar, o bolsonarismo escolheu os CACs (Clubes de Caçadores, Atiradores e Colecionadores) como mecanismo preferencial para o armamento de seus apoiadores. Essas estruturas, controladas supostamente pelo Exército, aglutinavam 117.465 membros em 2018. Em 2022 esse número passou para 605.313 pessoas. Ou seja, mais do que quintuplicou. Os próprios clubes tiveram um crescimento exponencial no mesmo período, passando de 773 unidades em 2018 para 1.644 em 2022.

Como funciona então o acesso às armas para quem tem uma licença CAC? O governo aumentou de 12 para 30 o número de armas que um caçador pode ter. Isso inclui até 9 armas de uso exclusivo das Forças Armadas, como pistolas automáticas e rifles de repetição. Para atiradores, o limite passou de 16 para 60 armas e para colecionadores não há um limite de fato já que cada colecionador pode ter até 5 armas de cada modelo (antes era 1 arma de cada modelo).

O resultado dessas medidas não tardou a aparecer e mostrou que o armamento é a única política realmente eficaz do governo Bolsonaro. O número total de armas nas mãos de CACs foi de 255 mil em 2018 para 1.085.888 em 2022, ou seja, mais do que quadruplicou. Para se ter uma ideia, em 2019 e 2020, primeiros anos do mandato de Bolsonaro, foram 320 mil novos registros. Já em 2021 esse número saltou para 467 mil novas licenças expedidas.

Quem olha de fora, pode pensar que não existe nada de mal nesses números, já que são armas registradas, utilizadas em atividades legais. Mas isso não é assim. Pesquisas mostram que 40% das armas ilegais apreendidas em operações policiais tiveram origem legal. Ou seja, as armas legais são a principal fonte de armamento do crime, organizado ou não. Nos últimos tempos tem aumentado o número de denúncias de compra de armas por CACs e revenda para estruturas criminosas. Os CACs, além de outras coisas, viraram uma verdadeira indústria laranja de compra e revenda de armas pesadas e de uso exclusivo.

E as coisas não tendem a melhorar. Está em tramitação no Congresso Nacional o PL 3.723/2019, que acaba com a impedimento do transporte de armas carregadas a qualquer horário do dia e limita o rastreamento de munição. O rastreamento de munição é um dos principais mecanismos de investigação utilizados pela polícia no desbaratamento de ações violentas e combate ao crime organizado. Ele permite rastrear uma cápsula encontrada em uma cena de crime até sua origem, revelando todos os compradores e vendedores legais desde a fábrica. Isso vai acabar.

Apesar das medidas de liberalização, é necessário apontar que a compra e o licenciamento de armas continua sendo uma atividade bastante cara, o que desfaz completamente o mito de que quem está se armando é o “cidadão comum”. Na verdade, o perfil do CAC brasileiro é de homem branco de renda média e alta, ou seja, o apoiador típico de Bolsonaro.

E esse é todo sentido da política armamentista de Bolsonaro. Quem assistiu às imagens da famigerada reunião ministerial de abril de 2020 deve lembrar do discurso de Bolsonaro: “É escancarar a questão do armamento. Eu quero todo mundo armado!”. Desde que sentiu a possibilidade de perder as eleições, o bolsonarismo transitou de uma defesa do armamento para autodefesa contra o crime comum para uma defesa abstrata da “liberdade”. “Povo armado jamais será escravizado”, costumava dizer o ditador fascista Benito Mussolini e Bolsonaro o repete a toda hora. Durante o auge da pandemia, quando entraram em vigor várias medidas restritivas determinadas por governadores e prefeitos, Bolsonaro chegou a afirmar que, se estivessem armadas, as pessoas não aceitariam tais medidase se rebelariam contra a suposta “tirania sanitária”.

Não apenas este site, mas inúmeros analistas têm afirmado que o episódio Roberto Jefferson é um pequeno ensaio do que pode vir mais à frente com a derrota de Bolsonaro nas eleições. Pois é necessário lembrar que o perfil Roberto Jeferson também é típico da escória humana que o bolsonarismo tem mobilizado em sua defesa: misógino, racista, elitista, fascista e… armado até os dentes.

Conseguirá o bolsonarismo colocar em movimento essa horda em reação a uma possível derrota no próximo dia 30? Quem se tranquiliza com o fato de que Roberto Jefferson fracassou em seu teatro patético, pense de novo. O bolsonarismo não se reduz a Bolsonaro e sua luta não se reduz à luta eleitoral. Ele veio para ficar e permanecerá na cena política depois do dia 30, independente dos resultados (entre outras coisas, porque a burguesia brasileira resolveu aceitar tranquilamente o fascismo como um “player” legítimo do jogo político). O bolsonarismo como expressão do fascismo brasileiro se prepara para uma marcha de longa duração. Pode sofrer um revez no próximo domingo, mas não será derrotado por completo. Ao contrário, terá dado um salto de qualidade em relação a 4 anos atrás, pois estará mais organizado, mais coeso, mais consciente e mais armado.

Assim, pode ser que, por erros táticos cometidos durante a campanha, não vejamos um “novo Capitólio” de imediato caso Bolsonaro perca. Mas é preciso saber que é para isso que o bolsonarismo se prepara. É isso que ele quer. Esse é o sentido de sua existência. O fascismo se nutre, mas não pode viver apenas de vitórias eleitorais. Ele precisa esmagar fisicamente o movimento operário, a esquerda, o movimento estudantil, negros, LGBTQIA+, indígenas, os oprimidos em geral, os movimentos democráticos e ecológicos, enfim, tudo que existe de progressivo na sociedade. E para tanto, precisa de armas. Pois bem, a má notícia é que ele já as tem.