Imagine que você more na comunidade do Jacarezinho. Imagine também que você e seu par agendaram uma cesárea para o nascimento de mais um filho lá pela hora do almoço de hoje. A primogênita, a grande alegria da sua vida, já é uma linda mocinha de 9 anos de idade. Vocês três se programam para acordar às 8 horas da manhã, tomar o café e sair rumo à estação de metrô Triagem em direção ao hospital público. No próximo domingo vai ser Dia das Mães. Você perdeu seu emprego, alguns parentes e amigos faleceram de covid-19, mas o nascimento de seu filho… Ah! Essa alegria ninguém pode estragar!
Na sua cabeça sempre há muitas preocupações. O comércio de drogas domina o lugar em que você mora. A falta de escolas, creches e empregos pode dificultar o desenvolvimento das suas crianças. Há muitos jovens de 12 ou 13 anos sendo recrutados para serem soldados da linha de frente dos traficantes. A violência na sua comunidade é muito grande e até mesmo os namoros são controlados pelos criminosos. A coisa que você mais tem medo é de que seus filhos entrem para esse mundo.
Há 9 meses atrás, quando soube da nova gravidez, passou pela sua cabeça dar um jeito nessa situação. E se você ligasse para o Disque-denúncia para contar tudo o que estava acontecendo? “Alô, é da polícia? Aqui no Jacarezinho os traficantes estão aliciando jovenzinhos, treinando-os com fuzis para atirar nos policiais. Eles são do Comando Vermelho e não deixam a gente viver em paz. Controlam a entrada e saída da comunidade, interferem nos relacionamentos amorosos e, o pior, recrutam crianças e adolescentes como soldados do tráfico. Tenho uma lista com pessoas da comunidade que consegui identificar como traficantes aliciadores de menores: o Marcinho, o Alemão, o Bin Laden…”
Rapidamente essa ideia foi descartada, pois pareceria até absurdo fazer um telefonema assim. A Cidade da Polícia fica nos pés da sua comunidade, os policiais circulam dia e noite por lá, eles sabem de tudo que rola. Existe até uma UPP instalada ali perto. Todo mundo sabe o que acontece. Traficantes e policiais convivem diariamente, conversam, fazem acordos. Na verdade, não existe muito esse negócio de mocinho e bandido. Uma denúncia dessa seria ridícula e inútil.
No dia do parto do seu filho, 6 de maio de 2021, às sete horas da manhã, você acorda com um tiroteio: 200 policiais municiados e armados com fuzis, alguns “caveirões” e dezenas de viaturas sobem as ruas e becos do Jacarezinho, apoiados por um helicóptero barulhento que carrega um atirador de elite mirando os barracos lá embaixo. Eles trocam tiros com traficantes.
A correria e a gritaria começam na comunidade. Você e sua família se abaixam para não serem alvejados por uma bala perdida. Sua filha começa a chorar de medo. Os tiros quebram janelas, perpassam paredes, destroem seus móveis e fazem os cachorros latirem.
Pelos furos de bala nas paredes você observa homens brancos muito fortes, encapuzados, avançando pelo terreno e esculachando as pessoas que você conhece, muitos deles trabalhadores como você. Nota também que os traficantes fizeram barricadas e que os veículos da polícia não conseguem passar. A maioria dos bandidos está conseguindo fugir.
Um jovem entra na sua casa para se esconder e chega ao quarto da sua filha, que está embaixo da cama se encolhendo de medo. Logo atrás entra um policial que efetua uma série de disparos de fuzil e executa o rapaz ao lado dela. As paredes cor de rosa e o chão de azulejos brancos ficam cobertos de sangue, assim como o pijaminha de desenho animado que ela está vestindo.
O policial se dirige a você. Aponta-lhe um fuzil. Ordena que você se deite no chão. Outros policiais invadem a casa. Revistam seu corpo, suas gavetas, a carteira, os cômodos, os celulares e bagunçam tudo. Depois que percebem a sua inocência, você consegue explicar que há uma cesárea marcada para a hora do almoço, que seu filho precisa nascer.
Um policial arranca o lençol da sua cama de casal e envolve o corpo ensanguentado do traficante baleado. Com a ajuda de um colega, carregam-no para fora da residência. Durante a retirada, você identifica que o corpo pertence ao filho de um primo seu, que não é bandido, e pensa o quanto a noiva dele e a sua tia vão chorar a perda. O casamento estava marcado para hoje.
Já liberado, você desce o morro até o metrô. É preciso chegar à maternidade para a cesárea. No caminho, quase todas as casas estão cravadas de bala. As janelas estão quebradas. O chão é um tapete de projéteis de munição. Há sangue por todos os lados, famílias chorando, comércios fechados e tubulações estouradas. Lá embaixo, aparece uma aglomeração de pessoas que exige chegar até uma fileira de corpos escoltada pela polícia, que não permite a aproximação. Estão gritando a dor das perdas. Quase todas as pessoas são negras.
Chegando à estação Triagem, você lê uma mensagem afixada na porta de entrada que informa que o metrô está fora de operação e então pergunta a uma pessoa desconhecida o motivo disso. Fica sabendo que os tiros chegaram até lá também e que acertaram trabalhadores. Sem tempo para pensar em muita coisa, vocês três pegam um ônibus para tentar chegar a tempo para a cirurgia. Será muito difícil remarcar o procedimento, pois os hospitais estão lotados de pacientes com covid-19 e é melhor garantir o que foi marcado.
A cesárea, enfim, é realizada. Nasce uma criança saudável, cheia de vida, uma alegria! Vocês recebem alta no mesmo dia e voltam para casa de carona com um amigo. A sua filha ficou traumatizada com o que passou e não está falando muito. Está difícil sorrir hoje, apesar do nascimento. Subindo o morro de volta, você encontra algumas pessoas lavando o sangue nas calçadas. O clima de todos é de choro e luto.
Já em casa, depois de limpar o sangue, varrer os cacos de vidro e comer algo, com todos deitados na cama, a televisão é ligada. A chamada do telejornal diz:
“Terror no Rio: 25 mortos. Polícia encontra míssil com traficantes na comunidade do Jacarezinho.”
Na tela, um homem branco e rico chamado José Luiz Datena é o âncora, ele nunca morou no Jacarezinho, mas mostra a cena de uma entrevista coletiva com quatro delegados de polícia explicando suas versões sobre o que houve pela manhã na comunidade. Eles dizem que executaram uma operação policial chamada Exceptis para livrar o morro da opressão dos traficantes aliciadores de menores.
Também dizem que procuravam por 21 bandidos. Desses, três foram mortos e três foram presos. Os demais conseguiram fugir. Também foram apreendidas algumas armas e o míssil, que não saem da imagem na tela da TV por um minuto sequer. Você fica sabendo que duas pessoas no metrô foram baleadas e duas linhas foram paralisadas, atrasando milhares de trabalhadores em pleno horário de pico. Três postos de saúde dos arredores foram fechados e adiaram a vacinação contra a covid-19. Oficialmente, 25 pessoas foram assassinadas, mas os moradores afirmam que o número é muito maior. Entre os mortos, há um policial. Um dos delegados, Rodrigo Oliveira, fala na coletiva. Atrás dele há um painel com cores do Brasil escrito “Polícia Civil, em defesa de quem precisar”. Ele diz: “A Polícia Civil não age na emoção. A operação foi muito planejada, com todos os protocolos”.
Revoltado, você pega o controle remoto. No próximo canal, o presidente Jair Bolsonaro aparece num encontro realizado no dia anterior com o governador carioca em exercício Cláudio Castro, acusado, na Operação Catarata, de receber propinas em contratos da Fundação Leão XIII. O encontro no Palácio das Laranjeiras termina com ambos sorrindo abraçados e fazendo sinal de arminha com os dedos. Sentindo-se mal, você troca o canal novamente.
Agora está passando a reprise de um filme, Tropa de Elite 2. Nas últimas cenas, o capitão Nascimento – promovido a coronel – está arrependido. Está depondo na CPI das milícias e afirma o seguinte: “Quando meu filho tinha 10 anos, ele me perguntou por que o meu trabalho era matar. Eu não sei responder à pergunta dele. Tenho 21 anos de polícia e não sei dizer por que matei, por quem matei. Mas o que eu posso afirmar é que o policial não puxa esse gatilho sozinho”.
A TV está ruim hoje. Durante a madrugada, o Jacarezinho está silencioso como há muito tempo não se via. Com as luzes apagadas, você nota que todos estão conseguindo dormir ao seu lado numa cama espremida, menos você. Você rememora a miséria da sua comunidade, que nunca foi resolvida, e as tantas operações policiais que não acabaram com o tráfico e resultaram em mortes de inocentes. Quantos mortos, quanta violência, quanto racismo. Quanto sangue! Com a cabeça no travesseiro, conversando consigo mesmo, uma pergunta o atormenta: “Por quê?”.
*História fictícia criada a partir de notícias e relatos da Chacina do Jacarezinho ocorrida em 06/05/2021
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