Pular para o conteúdo
Colunas

A fantasia de moderadores dos militares e o avanço do golpe com Bolsonaro

Parte 6 de “Os militares no bando no poder”

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Por Gabriel Kanaan

Com a entrada em campo das torcidas organizadas antifascistas, a luta de classes se acirrou. Dia 3 de junho, Mourão atacou as manifestações em defesa da democracia, defendendo que os delinquentes e baderneiros deveriam ser presos, e novamente ressuscitou o espectro do golpe de 1964 ao ameaçar que o país já aprendeu quanto custa esse erro

Com a escalada golpista de Bolsonaro sendo acompanhada pelas Forças Armadas, a fantasia de moderadores dos militares está caindo (mesmo que alguns ainda não tenham ouvido que o rei está nu). Foi com o foda-se” de Augusto Heleno (Ministro do Gabinete de Segurança Institucional – GSI) ao Congresso que as Forças Armadas, como analisou o GEDES, “cruzaram a linha do poder tutelar” e a “atuação do partido militar se tornou ainda mais nítida”. Como apontamos em “Tensionamentos entre os militares e a familícia olavista”, a nomeação de Braga Netto para a Casa Civil e do vice-almirante Flávio Rocha para a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) em fevereiro de 2020, no início da pandemia, simbolizou uma aproximação ainda maior dos militares e Bolsonaro

Esse aumento do poder dos militares no governo levou a teorias de que havia sido dado um golpe branco em Bolsonaro. Dia 2 de abril, o Defesanet (1) publicou a tese de que a nomeação de Braga Netto para a Casa civil era resultado de um acordo da alta cúpula militar para afastar Bolsonaro do poder (como vimos, tese propalada pelo olavismo desde o início do governo).

No entanto, concordamos com Demian Melo que é um equívoco acreditar que Bolsonaro não manda mais nada depois que Braga Netto assumiu a Casa Civil, afinal, “as Forças Armadas tem se colocado como sustentação do governo”. Mesmo a demissão de Mandetta foi endossada pelos militares. Como disse Martuscelli, argumentar que Bolsonaro está isolado e não governa mais e apontar Braga Netto como presidente operacional “é mais uma tentativa de querer desgastar o governo do que uma realidade de fato”. 

Com a nomeação de Braga Netto para a Casa Civil houve um reposicionamento dos militares. Isso não significou afastamento de Bolsonaro – pelo contrário. A face golpista do partido militar – e sua decisão por golpe com Bolsonaro – fica cada dia mais escancarada.

O mito das Forças Armadas moderadoras

Mesmo assim, parte da mídia ainda não ouviu que o rei está nu. A despeito do golpismo dos militares ser cada vez mais visível, a mídia burguesa que faz oposição a Bolsonaro (mas não aos cortes de direitos e privatizações comandas pelos seus ministros ultraliberais) insiste em ver os militares como um poder moderador. As lentes dos óculos pelos quais olham os uniformes verde-oliva tem efeito inverso às do filme “Eles vivem” (onde os óculos desmascaram a ideologia das classes dominantes), mantendo o jornalismo em um mundo de ilusões. Tal ilusão é reproduzida até mesmo por setores da esquerda. Aceitam a fantasia de moderadores que os militares estão usando

Apontemos apenas alguns exemplos. A Folha, no final de março, alardeou em sua manchete que a “ala militar tenta controlar crise em meio a insatisfação com Bolsonaro e Guedes”. Embora repita ao longo da reportagem que os militares estão “insatisfeitos”, “desconfortáveis”, e “tentam aplicar um freio” na política de Bolsonaro, Gielow (que assina a matéria) em nenhum momento cita sequer uma fonte anônima. A única referência não anônima da mídia para atestar a oposição dos militares ao presidente é a declaração do comandante do Exército Edson Leal Pujol, que disse ser a crise do Coronavírus “talvez a maior missão da nossa geração”, no mesmo dia (25 de março) em que Bolsonaro chamava o vírus de “gripezinha”. 

No entanto, o próprio pronunciamento de Pujol foi superdimensionado por estes setores dos meios de comunicação. Afinal, embora enfatize a gravidade da situação, Pujol não se opõe à política do presidente em nenhum ponto concreto. No entanto, o setor da mídia burguesa que faz oposição à Bolsonaro saiu alardeando que o “pronunciamento de Pujol indica que Exército não agirá como guarda pretoriana de Bolsonaro” (Globo), e que Pujol “implodiu o discurso de Bolsonaro” com “o mais contundente dos pronunciamentos já feitos por ele na caserna” (Veja). Mesmo setores da esquerda seguiram a mídia burguesa e também superdimensionaram o pronunciamento de Pujol (como o GGN e o Brasil247). Concordamos com a análise (5:30–5:45) de Pinto, que argumentou como Pujol não quis atacar o governo com seu discurso, e sim conter danos.

Essa esperança levou setores da mídia burguesa a acreditarem que os militares do planalto poderiam desaprovar a comemoração do golpe de 1964 no dia 31 de março. Alguns dias antes da data, Gielow publicou a matéria “Militares temem efeitos do radicalismo com Bolsonaro isolado”, citando a “inquietação” de “comandantes ouvidos pela Folha”, que, sobre as comemorações do golpe, se perguntaram: “e se o protesto ocorrer e adicionar à lista de alvos os governadores ora em embate direto com o Planalto?”. O G1 também anunciou que uma “ala militar moderada” se posicionou contra a decisão de Bolsonaro de comemorar o golpe, sem nenhuma referência nem mesmo a fontes anônimas.

Como alertou Demian Melo, a esperança desse setores da mídia no poder moderador dos militares cai na mitologia liberal das “Forças Armadas profissionais”, esperando legalidade e profissionalismo de setores do Exército. Faz parte da formação profissional dos militares a disciplina golpista. Essa esperança fecha os olhos para o histórico (e o presente) golpista do setor das FFAA que militares como Heleno e Mourão representam: como lembra Demian, Heleno começou sua carreira militar como ajudante de ordens do Sílvio Frota (general ultrarreacionário que em 1977 tentou dar um golpe em Geisel por acreditar que o então presidente era moderado demais), e Mourão, como vimos em “A escalada dos militares na crise”, atiçou várias vezes nos últimos anos a tese golpista de intervenção militar. 

A escalada do golpismo com Bolsonaro

A partir dos atos do dia do foda-se contra o Congresso e o STF (Supremo Tribunal Federal) no dia 15 de março, abriu-se uma nova fase do golpe e da desdemocratização. Embora os militares tentem aparentar moderação, estão acompanhando a escalada. Afinal de contas, Bolsonaro mobiliza a base das Forças Armadas, as polícias e os setores agregados para induzir os generais a tomarem posicionamentos mais radicais, com o risco de se descolarem de suas bases. Sua convocação para os atos do dia 15 são o exemplo disso. As postagens que chamavam ao evento veiculadas certamente pelo gabinete do ódio traziam a imagem dos militares do planalto na capa. Ao mesmo tempo em que o Clube Militar convocou a população para a manifestação do dia 15 e Heleno a respaldou com seu “foda-se” ao Congresso, Santos Cruz criticou o uso da imagem dos militares do planalto pelas postagens de convocação. 

Os atos subsequentes, convocados para as portas dos quartéis, são o exemplo mais claro de pressão. Bolsonaro convocou sua base de policiais e milicianos para comemorar o golpe de 1964 na frente dos QG’s dia 31 de março. Ao contrário do esperado pela mídia, o Ministério da Defesa (MD), o Exército, a Marinha e a Aeronáutica lançaram uma nota louvando o “Movimento de 1964” e pontuando que “a Marinha, o Exército e a Aeronáutica, como instituições nacionais permanentes e regulares, continuam a cumprir sua missão constitucional e estão submetidas ao regramento democrático com o propósito de manter a paz e a estabilidade”, leia-se, reprimir todas movimentações populares que ameacem a dominação burguesa. O Clube Militar também lançou nota de apoio ao governo, e Villas Bôas declarou que “pode-se discordar do presidente, mas sua postura revela coragem e perseverança nas suas próprias convicções”.

Três domingos depois, no dia do Exército (19 de abril), atos ocuparam a frente dos quarteis clamando por intervenção militar para fechar o Congresso, o STF e acabar com a quarentena. Sob os gritos de “mito”, Bolsonaro começou sua fala empoleirado em cima do carro, ao estilo sindicalista, gritando que “não queremos negociar nada, o que nós queremos é ação pelo Brasil. Todos, sem exceção, tem que ser patriota (…) e fazer tudo que for necessário (…) todos no Brasil tem que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro”. 

No dia seguinte, Bolsonaro, como sempre, assoprou, dizendo “democracia e liberdade acima de tudo”. A mídia disse que os militares desaprovaram Bolsonaro com base em fontes anônimas e na declaração do Ministro da Defesa general Fernando Azevedo sobre os militares estarem atentos à Constituição (que é o mesmo livro que usam para justificar um golpe). Enquanto isso, Bolsonaro remaneja seu pelotão miliciano, sua real guarda pretoriana, para a frente dos quartéis, para exigir ditadura militar. Ela é, como disse Marx sobre a Sociedade 10 de Dezembro de Bonaparte, “a única classe na qual pode se apoiar incondicionalmente”.

Segundo as sempre anônimas fontes do Estadão, os militares reprovaram a participação de Bolsonaro no ato do dia 19. Teriam dito os generais que se fosse “em qualquer outro lugar seria mais do mesmo (…) mas em frente ao QG, no dia do Exército, tem uma simbologia dupla muito forte”, tendo sido uma “provocação desnecessária e fora de hora”. É bom lembrar, no entanto, que a mídia tenta superdimensionar as tensões das Forças Armadas com o presidente (como discutiremos no tópico “A busca da mídia por um militar messiânico”). Azevedo também se pronunciou dizendo que as Forças Armadas trabalham para “manter a paz e a estabilidade do país, sempre obedientes à Constituição Federal”. Mas, como sempre lembra Mourão, na mentalidade da caserna o artigo 142 da Constituição autoriza o golpismo dos militares.

Novas aglomerações de manifestantes em apoio a Bolsonaro tomaram as ruas dia 3 de maio em apoio a Bolsonaro. A guarda pretoriana distribuiu socos e pontapés à imprensa, e em meio às já antigas faixas com os slogans “Nova constituição anti-comunista”, “AI-5 já, 142 já”, “Intervenção militar com Bolsonaro”, “Foda-se o Congresso”, “STF sabotadores”, se misturavam máscaras da cara de Moro marcadas com “traidor” na testa. Dessa vez, os protestos em São Paulo ocuparam os portões do prédio da FIESP. Em Brasília, Bolsonaro foi saudar o protesto e disse que “pedia a Deus que não tenhamos mais problemas essa semana, porque chegamos no limite, não tem mais conversa, daqui pra frente, não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição, ela será cumprida a qualquer preço, e ela tem dupla mão”. Na maior faixa do ato, estava escrito “Soldados da aeronáutica apoiam Bolsonaro”, mensagem à imprensa que, mesmo escorraçada do ato a pontapés pelos que empunhavam a faixa, continua a se refugiar na ilusão de que, “pelos menos a Aeronáutica e a Marinha” são “legalistas”. Bolsonaro ressaltou que tem o apoio do alto comando Forças Armadas, com quem se reuniu na véspera do ato e quem já havia acusado o Judiciário e o Congresso de cercear o Executivo dia 21 de abril, dois dias depois que o STF barrou a indicação de Ramagem.

A nota do Ministério da Defesa sobre os atos do 3 de maio, novamente, diz que as 3 Forças “respeitam a Constituição” (uma das principais reivindicações das manifestações é a aplicação do artigo 142…) e defende a “liberdade de expressão” dos atos defendendo intervenção militar, acrescentando que “mas a agressão a profissionais de imprensa é inaceitável”, o que, embora possa parecer uma crítica, repetiu o discurso de Bolsonaro, que a atribuiu as agressões a “algum infiltrado”.

No estágio golpista em que nos encontramos, no entanto, a própria Folha, entusiasta da “ala militar moderadora”, admitiu que, segundo suas fontes anônimas, o STF foi “duramente criticado” por todos comandantes militares na reunião com Bolsonaro que antecedeu o ato. No dia seguinte, no G1, Valdo Cruz disse que apenas uma parte dos presentes na reunião endossou as críticas, e Andrea Sadi, que os generais foram uníssonos em afirmar que ninguém endossou as críticas. Ou estão ouvindo o que querem, ou os próprios militares começam a aplicar a tática do morde e assopra.

A nota do GSI de Heleno dia 22 de maio elevou a novo patamar a posição golpista dos militares. O Ministro ameaçou o STF ao dizer que sua “tentativa de comprometer a harmonia entre os poderes (em referência à sugestão de Celso de Mello à Procuradoria Geral da República (PGR) de investigar o celular de Bolsonaro) poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. Heleno foi apoiado pelo MD de Azevedo, por uma nota de solidariedade de 83 coronéis e 3 generais que prevê “guerra civil” contra os apadrinhados que se acham deuses do Olimpo do STF e a imprensa canalha”, e pelo Clube Naval, para quem o STF está tumultuando o país. Com a escalada autocrática dos militares a poucos metros do cume, a cortina ilusória da moderação militar começa a cair até para jornalistas que previram os militares desembarcando do governo com Moro, que agora apontam como até a Marinha, recorrentemente apontada como não alinhada a Bolsonaro, se posiciona na defesa do governo.

Ineditamente, na manifestação do dia 17 de maio, apareceram poucas faixas contra o STF e o Congresso: o próprio Bolsonaro pediu às lideranças do ato que guardassem os cartazes. Naquele dia, general Heleno (GSI), general Azevedo (MD), general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), almirante Bento Albuquerque (Minas e Energia) e o tenente-coronel Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia) foram saudar o protesto. Como analisou Piero Leirner, o governo fez um roque, a jogada do xadrez que avança a torre e recua o rei: Bolsonaro deu um passo atrás abaixando as faixas para os militares marcharem um passo à frente e apoiarem abertamente as manifestações. Dois dias antes, em uma coletiva de imprensa, Ramos e Braga Netto já haviam minimizado a pandemia e atacado os jornalistas por focar na COVID-19 enquanto “morrem milhares de pessoas por ano em acidentes de carro”. E no dia anterior (14 de maio) Mourão publicou a nota no Estadão culpando a imprensa, o STF, o Congresso e os governadores por “estarem levando o país ao caos”. 

Em uma primeira mirada, Bolsonaro poderia parecer perder a oportunidade, ao minimizar a pandemia, de aproveitar a necessidade de restrição da circulação para aprofundar o estado de sítio, como tem defendido Steve Bannon e como faz Viktor Orban na Hungria. No entanto, também há uma estratégia por trás do “e daí?” de Bolsonaro, como ficava cada vez mais claro ao passo que as mobilizações fascistas monopolizavam as ruas (até pouco tempo esvaziadas pela esquerda, que preza pela vida): Bolsonaro estava apostando em ocupá-las com suas carreatas da morte e seu exército pretoriano, que o clã não tem remorsos em sacrificar, para avançar sua escalada fascista. Frente à perspectiva dessa escalada fascista fechar o regime, os movimentos de torcidas organizadas antifascistas, dos movimentos de negras e negros e do MTST dirigiram a necessária retomada das ruas pela esquerda, barrando a estratégia do presidente de monopolizá-las. No próximo e último texto dessa série, faremos algumas observações sobre essas estratégias para derrubar o governo e fazer os militares caírem junto.


NOTAS

1 – O Defesanet foi criado em 1999 e é editado por Nelson Francisco Düring, segundo o blog Brasil 247 um jornalista especializado em assuntos militares. Segundo documento vazado pela WikiLeaks em 2012, o Defesanet é parceiro da Stratfor, um “laboratório de ideias” do Texas que usa as informações do Defesanet. O site parece ser, portanto, uma referência internacional, e ter influências do capital-imperialismo estadunidense. Em outro documento vazado pela WikiLeaks aparece possível explicação para o site ter tantas informações militares  internas: a diretora da Stratfor diz que “há rumores de que o Defesanet seja usado como um canal para vazamentos dos oficiais militares brasileiros”.