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Colunas

A vidraça militar e as pedras antifascistas

Parte 7 de “Os militares no bando no poder”

Pam Santos / Fotos Públicas

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Por Gabriel Kanaan

A construção dos atos antifascistas em defesa da democracia em meio à pandemia resultou da urgência de barrar a tentativa do bolsonarismo de aproveitar a crise para fechar o regime e causar ainda mais mortes e sofrimento. Foi em reação à escalada fascista de Bolsonaro – acompanhada pelos militares – que as torcidas organizadas e o movimento negro dirigiram a volta da bandeira da democracia às ruas, e barraram a estratégia bolsonarista de, desdenhando da “gripezinha”, monopolizar as ruas (que a esquerda, por prezar pela vida, havia decidido desocupar durante a pandemia) com sua base miliciana-olavista, que o clã não tem remorsos em sacrificar. O risco assumido pelas pessoas que foram às ruas defender a democracia, mesmo sabendo da gravidade da crise sanitária que vivemos, expressa a firmeza da determinação de que é necessário derrubar Bolsonaro antes que ele nos derrube. Contra o fascismo, não há possibilidade de empate.

No entanto, parte da esquerda ainda fecha os olhos para o fechamento do regime que vem a galope. Lula, em meio à crise, parece esperar os efeitos mirabolantes de 2022 da mesma forma que os democratas da época de Bonaparte esperavam o segundo domingo do mês de maio de 1852 (quando, segundo a Constituição, deveriam ocorrer novas eleições), mesmo que Bonaparte já tivesse fechado o Congresso e assassinado ou exilado a oposição proletária (obviamente não tiveram eleições em 1852 – Bonaparte declarou-se imperador da França e só caiu quando a Comuna de Paris o derrubou 19 anos depois). Apostar em um retorno milagroso aos “anos gloriosos” do lulismo é crer nos mitos do desenvolvimentismo da burguesia interna brasileira e do nacionalismo dos militares, enterrados na tragédia de 1964 e novamente na farsa de 2016. 

À esquerda, os movimentos subalternos mobilizam as lutas pela vida para além do calendário eleitoral. Como analisaram Danilo George e Rejane Hoeveler, a conjuntura aberta pela pandemia, ao mesmo tempo que é tempestade perfeita para a estratégia de fechamento do regime de Bolsonaro, também escancara como, para o capital, o lucro está acima da vida, evidenciando a necessidade urgente da saúde pública e da luta contra a privatização da vida. A tempestade também escancara o caráter expropriador do capital financeiro, que, como apontou Flávio Miranda, lucra sobre os escombros da pandemia recebendo milhões do Estado enquanto milhões de pessoas permanecem “em análise” para receber o auxílio emergencial. A necessidade de reconversão produtiva das unidades produtivas para que produzam máscaras, respiradores, álcool etc. coloca o próprio controle dos empresários sobre as fábricas. A pandemia explodiu a latente crise do capital.

Escancarada a compulsão do empresariado em colocar o lucro acima da vida, a urgência da luta pela vida na pandemia se torna cada vez mais a urgência da luta pela construção de um programa de transição ao socialismo. Essa luta será interrompida, no entanto, se Bolsonaro conseguir cumprir suas promessas de campanha e enterrar de vez o que resta da democracia no Brasil, colocando os partidos e movimentos sociais da esquerda na ilegalidade e fechando o Congresso e o STF (vale lembrar como o destino de Bolsonaro – ficar, fascistizar ou cair – depende do seu desempenho na economia, que até agora patina: em 2019, o PIB cresceu apenas 1,1%, taxa inferior aos também baixos índices de 1,3% dos anos do governo Temer).

Essa possibilidade exige a construção da unidade de ação mais ampla possível, mesmo com setores da burguesia, para barrar as investidas fascistas de Bolsonaro. A saída da crise, no entanto, não pode ser dirigida por quem quer voltar à “normalidade” pandemônica pré-crise, quando o valor da vida dos povos indígenas, do povo negro, das mulheres, de todas populações periféricas, pesava menos que o lucro na balança do empresariado.

Portanto, nas ações unitárias para derrubar Bolsonaro, nossas forças não podem se diluir em um programa de retorno à “normalidade” lento, gradual e seguro. A unidade de ação é tática, tendo como objetivo central dividir o campo do inimigo para enfraquecê-lo. Mas a superação da crise só pode ser fruto da articulação dos movimentos subalternos, uma estratégica Frente Única de Esquerda, que transforme em hegemônica a defesa da vida acima do lucro. Como disse Valerio Arcary, a tática da unidade de ação pelo Fora Bolsonaro não diminui, pelo contrário, exige a necessidade da estratégia da Frente Única de Esquerda. 

Isso passa pela destruição dos dogmas ultraliberais e entreguistas hegemônicos entre as Forças Armadas. Pelo que argumentamos nesta série, qualquer esperança em construir essa direção junto com algum setor de generais “nacionalistas” ou “legalistas” é ilusória. Mesmo a esperança alimentada pela mídia de que os militares rompam com Bolsonaro é irreal. Como argumentou o GEDES na parte II de sua análise, “é irreal pensar que o principal partido do governo, detentor dos principais cargos, vá sair do governo”. Ainda mais depois de terem “voltado ao centro da política” através de eleições (embora golpeadas com o impedimento de Lula). Se seguirão com Bolsonaro, aponta o GEDES, “é uma questão que diz menos respeito às FFAA e sim às ferramentas democráticas de afastamento do presidente, baseadas no legislativo, no judiciário e na pressão popular”. A maioria do Legislativo, que negocia com Bolsonaro sua permanência em troca de cargos, e o Judiciário, cujo presidente Dias Toffoli suspendeu a decisão judicial de tirar do ar a nota das Forças Armadas comemorando o golpe de 1964, não transparecem muita esperança.

Múltiplas tensões estão criando fissuras entre os próprios bandos armados. Como vimos, um setor dos praças se distanciaram Bolsonaro após o corte dos seus direitos previdenciários. A crescente organização dos/as policiais antifascistas, que recentemente lançaram um manifesto assinado por mais de 500 agentes das forças de segurança, é fundamental para a quebra da hegemonia bolsonarista nos bandos armados. O entreguismo de Bolsonaro, por exemplo, é um dos pontos atacados por um dos dirigentes do movimento. E as próprias tensões entre os militares, as polícias e as milícias podem enfraquecê-los, embora nesse caso o processo ocorra à revelia das ações da esquerda.

A mobilização fascista de bandos armados que atuam na perseguição das lideranças da esquerda, na cidade e no campo, somam forças aos bandos armados oficiais. Mesmo com a organização dos/as policiais antifascistas, ainda estamos muito distantes de uma correlação de forças onde possamos medir forças com esses bandos, e é cada vez mais urgente planejar nossa segurança. Uma hipótese que urge ainda mais tal movimento é, como comentou George, que as Forças Armadas cruzem os braços e deixem as milícias se sujarem com o sangue da resistência antifascista, como fizeram na Bolívia. Se assim ocorrer, as milícias irão, como destacou Suzeley Mathias, cobrar dos militares ainda mais espaço no poder.

No entanto, o fato de terem se lançado na aventura bolsonarista, ao mesmo tempo que aumenta as chances da nossa derrota com a instauração de nova ditadura militar, pode nos ajudar. Os militares, ao entrarem no governo, deram legitimidade a Bolsonaro, já que eles são vistos como um poder moderador pela mídia e mesmo por parte da esquerda. Mas ao mesmo tempo, nas palavras do GEDES, eles viraram vidraça e se expuseram às pedras. João Filho, outra referência no acompanhamento da atuação do partido militar, concorda que eles perderam respeitabilidade. Eles avançaram tanto pela trilha aberta por Bolsonaro que não querem mais recuar. Assim, se arriscam a cair junto com o capitão caso a queda do governo seja dirigida pela esquerda. Com um militar responsável pela política genocida do Ministério da Saúde, a imagem das Forças Armadas como “racionais” ficou ainda mais borrada. Para o desespero da caserna, o navio desgovernado do capitão Bolsonaro pode acabar desembarcando nas Malvinas brasileiras. Ao empurrarmos Bolsonaro da borda da sua terra plana, precisamos impedir que os militares consigam cortar as amarras que os ligam umbilicalmente ao bolsonarismo olavista, e empurrá-los junto. Antes dos militares conseguirem acertar as contas com a Constituição de 1988, vamos acertar as contas com a “transição lenta, gradual e segura” e fazer a caserna pagar em dobro todo sangue e lágrimas que arrancaram durante a ditadura empresarial-militar e continuam arrancando na democracia blindada que resultou da “transição transada”.