Pandemia e golpismo: a ‘tempestade perfeita’ no Brasil?

FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Por: Rejane Carolina Hoeveler* e Danilo George*

A Movimentação de Bolsonaro ao convocar os “atos” do dia 15 de março de 2020 pode evidenciar um novo cenário. Está em curso um uma nova fase do golpe e da desdemocratização, tantas vezes anunciado por Eduardo Bolsonaro – que sem parcimônia defendeu inúmeras vezes um “novo AI-5”. Não faltam anúncios dessas intenções, não apenas por parte do clã Bolsonaro mas também por altos escalões militares, como quando o então candidato à vice-presidência, o general Mourão, em uma entrevista à Globo News ainda em 2018, admitiu a possibilidade de um “auto-golpe”. A eloquente denúncia recente do general Santos Cruz deu conta de comprovar que o general Heleno e os outros quatro que apareciam na convocatória do dia 15/3 são parte ativa na mobilização, ainda que mais nos bastidores.

Não reconhecer esse novo cenário faz com que muitos dentro da esquerda ainda se baseiem em uma racionalidade/modalidade política que já foi ultrapassada pela própria eleição de Bolsonaro e pelo aceleramento da crise. O campo dos trabalhadores/popular está derrotado, e isso desloca o centro da conjuntura para as alternativas em disputa no interior das frações da classe dominante, levando em consideração, entretanto, a autonomia da política e as próprias divisões burguesas.

Temos o cenário de crise institucional galopante; uma crise econômica sem precedentes em escalada mundial; e uma crise política trazendo grande instabilidade para o capital. Combinadas à tragédia de uma pandemia, evidentemente gerarão enorme inquietude social, que terá que ser controlada. Aqui encontra-se a dimensão preventiva da portaria editada por Sério Moro e Henrique Mandetta, bem como da provável aprovação de um estado de calamidade que pode durar até dezembro.

Para que lado vai o pêndulo do capital? A posição dos grandes empresários, ao longo de 2019, foi de apoio, ativo ou passivo, ao governo. No entanto, com o agravamento da crise econômica se acentuaram e os limites de apoio da base da FIESP evidenciam tensões com Bolsonaro[1]. Tal posição foi expressa por Paulo Skaf, presidente da Fiesp e representante de outros aparelhos privados de hegemonia da indústria paulista e nacional. Incomodado com o episódio pitoresco onde Bolsonaro levou um humorista para fazer bizarrices com repórteres no dia do anúncio do “Pibinho” de Paulo Guedes, Paulo Skaf, disse que a federação ‘não tem alinhamento político nenhum” com o presidente da República; segundo uma reportagem, “enos de 24 horas depois de se encontrar com Jair Bolsonaro na sede Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) pela segunda vez em um mês”.[2]

Foram as próprias classes dominantes brasileiras, FIESP à frente, que interromperam de forma aventureira as aparências de normalidade democrática ao depor a presidente Dilma Rousseff, em 2016, sob o pretexto das “pedaladas” fiscais. Como a baixíssima popularidade de Temer poderia levar para a volta de Lula, logo apareceram mais casuísmos jurídicos para tirá-lo do páreo abrindo espaço para o protofascismo vencer as eleições, em manobras judiciais bonapartistas sob a liderança de Sérgio Moro. Tal pornografia jurídica foi exposta pelo The Intercept na série Vaza-jato[3]. Um segmento significativo das classes dominantes, FIESP à frente, se jogou nessa aventura golpista e perdeu o controle do processo. Esse segmento acreditava que poderia de alguma maneira controlar/contornar o presidente miliciano, deixando-o com suas bizarrices enquanto se ocupava do essencial: as contrarreformas contra a classe trabalhadora, e a busca pela retomada da taxa de lucro. Bolsonaro se tornou a alternativa real para derrotar o petismo para implementar a agenda mais dura do capital, e ganhou para sua campanha o engajamento ativo de alguns importantes empresários (e até mesmo estes, agora, passam a se descolar do governo).

Além da FIESP, Bolsonaro inicia outras quedas de braço com as frações golpistas de 2016. Isto também fica bem explícito na posição atual de Janaina Paschoal e Miguel Reale Jr, autores da farsa jurídica que derrubou Dilma Rousseff, e que agora se lançam em pedido de impeachment do miliciano (lamentavelmente comemorado por setores da esquerda, sintoma da confusão generalizada dentro de nosso campo).

Na crise institucional, o grupo golpista encabeçado pela “familícia” mede forças com o Congresso, o que fica evidente no intenso atrito com Rodrigo Maia, com o STF (que permitiu, há poucos meses, a soltura de Lula); e com o grupo Globo (que expõe o nexo investigativo entre a família Bolsonaro e a execução de Marielle). Ao longo de seu primeiro ano de mandato, Bolsonaro não fez a menor cerimônia em se desfazer de seus mais importantes operadores políticos no Congresso. O caso de Joice Hasselman, ex-líder do governo na Câmara, peça-chave na aprovação da reforma da Previdência, é exemplar. Porquê Bolsonaro e o general Heleno deram um retumbante “FODA-SE” ao STF e ao Congresso? Bolsonaro quer o conflito, enquanto os outros poderes buscam evitar um confronto aberto. Todos serão responsabilizados pela crise e ninguém quer “pagar o pato”.

O clã miliciano liderado por Bolsonaro, uma vez no poder, construiu ainda maior apoio de setores do Exército (tanto nas bases como na alta cúpula); do fundamentalismo religioso; da maior parte do empresariado e ainda de parte das massas, mostrando que essa fidelidade política/ideológica ultrapassa a antiga fidelidade momentânea em razão de um bom ou mal desempenho do PIB. Tais setores obscurantistas estão naquilo que classificam como uma “cruzada” contra a imprensa, contra os “inimigos da Pátria” e da “família”, e contra o que resta das instituições do regime democrático-burguês – tudo isto alocado no alargado rótulo de “esquerdismo”. Sabemos que parte importante da base social de Bolsonaro são grupos milicianos, polícias militares, agentes da contravenção e setores subalternos do aparato repressivo do Estado – incluído o Exército, pois Bolsonaro mobiliza esses setores por fora da hierarquia, colocando-se como uma espécie de sindicalista no poder que subverte o próprio Poder.

Os instrumentos e dispositivos dessa mobilização permanente são novos, embora já os tenhamos visto operar desde pelo menos a campanha eleitoral de 2018, que por si só já mostrou toda a fragilidade das instituições da democracia burguesa no Brasil. A partir da instalação da CPMI das Fake News, ficou claro que Bolsonaro tem muito a esconder sobre os sujos métodos de “hackeamento” da democracia. O assassinato do capitão Adriano e a recente morte suspeita do principal coordenador da campanha de Bolsonaro, o ex-ministro Gustavo Bebbiano, são casos evidentes de queima de arquivo que se relacionam com o caso do assassinato de Marielle Franco e provavelmente com outras coisas mais. Tudo isto nos mostra que, para Bolsonaro, é um jogo de tudo ou nada. A equação é simples: uma queda de Bolsonaro, ou sua não reeleição, significa a exposição de seu envolvimento com uma ampla variedade de ações de contravenção, incluindo extermínios programados.

Parece uma hipótese bastante plausível que Bolsonaro esteja, neste momento, “esticando a corda” para haver uma justificativa de ruptura institucional. Esperar que Bolsonaro respeite o calendário eleitoral regulamentar nesse contexto é um grave equívoco – e nesse sentido, a estratégia do PT em apostar em 2022 deve envelhecer antes de crescer. Entretanto, também é plausível a hipótese segundo a qual essas últimas manobras de Bolsonaro sejam sintoma não de sua força, e sim de sua fraqueza; e pode ser que seja costurada uma outra frente golpista com a intenção de “suicidá-lo” politicamente antes que o caldo entorne de vez. Em ambos casos, entretanto, o que se coloca no horizonte é um fechamento do regime.

Nossos destinos estão atados aos do resto do mundo: embora as fronteiras estejam se fechando, o capitalismo segue sendo um sistema global. Por ironia da História, se reverteram os papéis: ao contrário do que pregava a histeria da extrema-direita, afinal, a doença não veio dos imigrantes, e sim das elites. E no final das contas, são elas que se aproveitarão do “choque” da pandemia para tentar impor políticas que atendem aos seus interesses, como muito bem lembrou Naomi Klein.[4]

A situação é paradoxal, pois, embora a portaria de Moro e Mandetta[5] esteja respondendo a um problema real (as medidas para garantia do isolamento para não sobrecarregar o sistema de saúde), significa essencialmente o aumento da capacidade de repressão do Estado, em uma fórmula que combina biopolítica, Estado de exceção, bonapartismo, ou como queiramos denominar. A provável aprovação de um estado de calamidade nos próximos dias dará a devida chancela legal para ações cada vez mais autoritárias de controle preventivo às inquietudes sociais.

A esquerda precisa urgentemente superar o atual estado de apatia e/ou pânico, retomando a iniciativa política, sem alimentar esperanças que em curto prazo de tempo haja uma transformação tão radical do senso comum e um fortalecimento das lutas mais orgânicas. Apostando primordialmente nas lutas sociais ao lado dos mais vulneráveis, aqueles que mais sofrerão com a pandemia, e organizando a resistência a um provável fechamento do regime. Nosso dever é, em primeiro lugar, sobreviver ao cataclisma fazendo uso da solidariedade ativa, e com esta, apontar um caminho que possa recolocar a voz dos explorados e oprimidos em pauta. Cresce a consciência, em várias partes do mundo, para a necessidade de sistemas públicos, gratuitos e de cobertura ampla. A pandemia do novo coronavírus mostra, da maneira mais trágica, como simplesmente não existe possibilidade de saúde na primeira pessoa. O capitalismo é a verdadeira doença que pode destruir a humanidade, com a devastação da natureza e a dessolidarização social. O fascismo neoliberal, com seu explícito desprezo pela vida, é apenas seu sintoma mais mórbido.

[1] Análise Reunião da Fiesp mostra os limites do apoio industrial a Bolsonaro – O Globo.

[2] ‘Não acompanhei, você é que está me contando’, diz Skaf sobre Bolsonaro usar comediante para ironizar PIB – BBC.

[3] Linha do Tempo Vaza Jato – The Intercept.

[4] SOLIS, Marie. “Naomi Klein explica como los gobiernos y la elites mundial intentarán explotar la pandemia.” Vice, março de 2020. Disp em: El Coronavírua es el desastre perfecto para el capitalismo de desastre – Climaterra.

[5] TALENTO, Aguirre. “Moro e Mandetta editam portaria que autoriza uso da polícia contra quem descumprir quarentena do vírus”. O Globo, 17 de março de 2020. Disp em: O Globo.

*Rejane Carolina Hoeveler é colunista do Esquerda Online, historiadora e membro da Resistência, tendência interna no PSOL. Mestre e doutoranda em História Social na Universidade Federal Fluminense (UFF). Ativista feminista no Rio de Janeiro. Co-organizadora do livro A onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil (Rio de Janeiro, Mauad, 2016).

*Danilo George é historiador e membro do Subverta, tendência interna no PSOL.