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Os militares no bando no poder

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

 

Por Gabriel Lecznieski  Kanaan*

Em meio à pandemia, a perspectiva dos militares sustentaram uma investida de Bolsonaro para fechar o regime se torna cada vez mais nítida no horizonte (seja com armas na mão, seja cruzando os braços e deixando as milícias se sujarem com o sangue da resistência democrática como aconteceu na Bolívia). Nessa conjuntura, os militares assumem papel ainda mais destacado das outras frações no bloco no poder, embora a própria instituição das FFAA possa eventualmente ser colocada em xeque por bandos armados ou, ainda, experimentar uma transformação interna substantiva, incorporando práticas internas de empreendedorismo miliciano como normalidade. Essa série de esboços analisa a atuação do partido militar (1) acompanhando suas relações com os outros grupos no poder no governo Bolsonaro e investigando possíveis fissuras dentro da ordem para avaliarmos em que direção irão marchar.

Para isso, dividimos essa série, fruto do trabalho coletivo no GTO, em 7 partes. A escalada dos militares na crise relembra as intervenções do alto escalão das Forças Armadas no processo de desestabilização das instituições aberto pelo golpe de 2016. As partes do corpo do governo Bolsonaro introduz a análise sobre as relações dos militares com os outras partes do corpo do governo Bolsonaro (a familícia olavista, os ultraliberais e a recém amputada perna lavajatista) com um debate teórico sobre como diferentes grupos da burguesia comandam o Estado capitalista. 

Tensionamentos entre os militares e a familícia olavista faz um retrospecto das brigas entre os dois bandos e aponta algumas das suas raízes comuns. A cara ultraliberal e entreguista dos militares traz alguns posicionamentos do alto comando defendendo as privatizações e o investimento estrangeiro (em gritante contradição com um suposto nacional-desenvolvimentismo dos militares) e reflete sobre o papel dos militares no processo de transição da quarentena à “normalidade”.  Os militares e a perna amputada lavajatista aponta a proximidade do pensamento dos dois bandos – que tem como missão messiânica livrar a pátria da corrupção e dos comunistas – e procura entender como o governo se reconfigura para substituir a perna amputada com a saída de Moro. 

A fantasia de moderadores dos militares e o avanço do golpe com Bolsonaro discute a hipótese de “golpe branco” aventada quando Braga Netto assumiu a Casa Civil, critica as ilusões em torno de Forças Armadas “moderadoras” da mídia burguesa e mesmo de setores da esquerda, e por fim, analisa os últimos avanços golpistas da caserna. E o último tópico, O “calcanhar de aquiles” da pata militar, reflete sobre os caminhos da esquerda socialista para reverter o avanço das tropas bolsonaristas, apontando como os militares, ao ocuparem o governo, expuseram um flanco pois, ao se tornarem vidraça, se expuseram às pedras

Assim, se as pedras que derrubarem Bolsonaro forem as arremessadas pela esquerda revolucionária, os militares ficarão nus quando sua fantasia de moderadores cair junto com o aspirante a ditador. Embora as tropas pretorianas de Bolsonaro avancem para tomar as instituições que restam da democracia, o caminho para o fechamento do regime não está trilhado, e pode ser bloqueado pela resistência antifascista. Como lembrou Virgínia Fontes, a “velocidade e a profundidade do enrijecimento (da reconfiguração fascistizante do Estado brasileiro) depende das múltiplas formas de resistência e enfrentamento populares”.

 


A escalada dos militares na crise

Parte 1 de “Os militares no bando no poder”

 

Valter Campanato / Agência Brasil

Bolsonaro agradece a Villas Bôas na cerimônia de troca do comando.

 

Com a crise econômica, política e social que atravessa o Brasil pelo menos desde o golpe de 2016, diferentes grupos das classes dominantes intensificaram sua luta pela direção do processo político. Nessa conjuntura, os militares assumiram cada vez mais protagonismo político, parecendo querer acertar contas com a constituição. Como alertou Virgínia Fontes, “está em curso um redesenho constitucional e institucional, realizado tanto por meio de Emendas Constitucionais, Medidas Provisórias, Decretos, leis, além de subterfúgios administrativos”. As condições para esse redesenho do Estado foram abertas pelo golpe de 2016. Em primeiro lugar, destacamos como a instabilidade gerada pela estratégia de “balançar o barco” da Lava Jato – acompanhada de perto pela Embaixada norte-americana, interessada na desestruturação da Petrobras e na desestabilização de uma potência emergente não alinhada – deslegitimou as instituições da democracia burguesa brasileira e abriu caminho para um assim chamado outsider do sistema político.

Analisamos o papel da Embaixada na formação da Lava Jato em nossa pesquisa sobre a atuação da Embaixada dos EUA no Brasil, onde investigamos os laços que ela construiu com juízes, promotores e policiais brasileiros através do Projeto Pontes, um programa de treinamentos sobre “combate ao terrorismo e à corrupção” iniciado em 2009. Os treinamentos focaram em métodos que a Lava Jato utilizou como centrais, como a “cooperação internacional formal e informal”, delações premiadas e principalmente o “modelo de task force” (força-tarefa). O projeto planejou detalhadamente a formação da task force da Lava Jato em Curitiba, para, nas palavras da vice-Embaixadora Lisa Kubiske, “permitir o acesso a especialistas dos EUA para orientação e apoio contínuos”. O Projeto Pontes é apenas um exemplo da gigantesca rede de influência que o Department of Justice (DOJ) dos EUA e os escritórios de advocacia norte-americanos criaram ao redor do globo para promover lawfare (guerras jurídicas) com a justificativa de combater a corrupção. Essa conexão especial da Lava Jato com os norte-americanos foi evidenciada ainda mais pela Vaza Jato. Essa relação especial, no entanto, não pode ofuscar como todos os setores das classes dominantes brasileiras, de alguma maneira, estão vinculados ao capital-imperialismo estadunidense.

Os partidos políticos da direita brasileira (também abalados pela Lava Jato em menor escala), paralelamente, conspiraram para derrubar Dilma e, como disse o cacique do PMDB Romero Jucá, “estancar a sangria”. Aécio pediu recontagem dos votos na eleição de 2014 (adiantando a teoria conspiratória bolsonarista sobre as urnas serem fraudadas) e ṕassou a mobilizar o bando golpista com Temer, Cunha e afins para um “grande acordo nacional” pelo impeachment, “com o Supremo, com tudo”. As burguesias brasileiras também se dividiram, com setores beneficiados pelas políticas do PT fortemente atingidos pela Lava Jato e a crise econômica, e as demais exigindo benesses similares. A entrada das burguesias nessa aventura consolidou o impeachment e o precificou: o custo da aventura deveria recair sobre as classes trabalhadoras. O apoio dos militares nos bastidores garantiu a transição. A ascensão da familícia ao poder não estava nos cálculos iniciais e foi resultado da ação paralela desses (pelo menos) quatro setores. Eles nunca se sentiram confortáveis com um operário e uma ex-guerrilheira na presidência (mesmo com o transformismo do PT em gestor do capital), e na conjuntura aberta pela crise econômica, política e social que chegou ao Brasil como marolinha mas depois o atingiu como um tsunami, aproveitaram para reativar sua perene estratégia anticomunista preventiva.

Relembremos os eventos mais importantes da participação dos militares na desestabilização das estruturas institucionais da democracia burguesa: Mourão, em setembro de 2015, já defendia a deposição de Dilma, dizendo que era preciso “despertar para a luta patriótica” e “descartar a incompetência, a má gestão e a corrupção”. Sob pressão do Ministério da Defesa, Villas Bôas substituiu Mourão por Pujol, mas não o repreendeu e o remanejou para chefiar a Secretaria de Economia do Comando do Exército. Enquanto era secretário, Mourão afirmou em uma palestra para a Maçonaria em setembro de 2017 que “ou as instituições solucionam o problema político através da ação do Judiciário, retirando da vida pública os elementos envolvidos em ilícitos (Lula), ou então nós teremos que impor isso”. Nada aconteceu, mas três meses depois, quando disse que o governo Temer era um balcão de negócios, acabou perdendo também o posto de secretário. Villas Bôas também ameaçou intervenção militar caso o STF não votasse a favor da prisão de Lula em abril de 2018, e voltou a ameaçar em outubro de 2019 caso o STF decidisse soltá-lo. No final do ano passado, Villas Bôas também acusou “dois deputados da esquerda” de o sondarem em 2015 para saber como os militares reagiriam caso Dilma decretasse “estado de defesa”. As organizações militares também se posicionaram: o Clube Militar, por exemplo, reafirmou em fevereiro de 2018 que Lula era um “populista, criminoso e corrupto” e “deveria ser exemplarmente punido”.

Mesmo assim Lula foi solto e buscou dialogar com os militares. Para superar ilusões sobre as Forças Armadas como supostamente moderadoras, analisaremos na sequência a relação do segmento militar com as outras partes do corpo do governo Bolsonaro: a própria familícia olavista, os ultraliberais e os lavajatistas (que acabam de desmembrar o corpo com a saída de Moro do governo, deixando-o manco: no entanto, o corpo já costura uma nova perna miliciana para sustentar sua cabeça protofascista e ultraliberal).

 

*Doutorando em História na UFF, membro do GTO (Grupo de Trabalhos e Orientação, coordenado pela professora Virgínia Fontes.

NOTAS

1 – O termo partido militar está sendo utilizado de maneira experimental. Observamos um fenômeno complexo, que merece categorização posterior, pois tal partido regrupa de um lado a hierarquia das FFAA e, de outro, militares na ativa e reformados integrando o governo Bolsonaro. Mas pode envolver outras forças policiais.