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Os bandos armados e a pata lavajatista amputada

Parte 5 de “Os militares no bando no poder”

Agência Brasil

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Gabriel Lecznieski Kanaan

Lavajatistas e militares apregoavam uma afinidade fundamental: os dois bandos diziam partilhar a missão de salvar a nação da corrupção e dos comunistas (embora lavajatistas foquem nos corruptos e militares no comunismo, ambos discursos vêm sempre vinculados). Na condução do governo Bolsonaro, os dois bandos marcharam de mãos dadas. Augusto Heleno chegou a subir em caminhão de som para defender o “herói Moro” logo depois que os “esquerdopatas” do Intercept derrubaram a fantasia de “apartidários” de Moro e Dallagnol. Mourão e Azevedo seguiram Heleno e declararam que tinham total confiança no Ministro da Justiça. Moro retribuiu o apoio dos militares se posicionando ao lado do “herói nacional” Villas Bôas, quando o general era atacado por Olavo. O general Santos Cruz chegou a ameaçar que se Bolsonaro rompesse com o Ministro da Justiça, iria “pagar um preço muito alto”.

Com o aprofundamento da crise do governo potencializada pela pandemia, Moro já havia começado a tentar aparentar distanciamento. No fim de março, a Folha disse que ele estava “indignado” por Bolsonaro não seguir o discurso sobre a pandemia que tinham combinado. Moro anunciou sua saída do governo dia 23 de abril, apontando como motivo a demissão, por Bolsonaro, de Maurício Valeixo, o ex-chefe da Polícia Federal (PF) e braço direito de Moro (a medida de Bolsonaro foi para barrar as investigações da PF sobre as milícias digitais do gabinete do ódio e acerca das relações da sua família com as milícias, mas o objetivo principal foi aumentar seu controle sobre as polícias, parcela fundamental da sua base social).

A mídia burguesa que faz oposição ao governo, iludida pela fantasia verde-oliva de “moderadores”, logo viu as Forças Armadas pulando do barco atrás do ex-ministro. Suas fontes sempre anônimas alarderaram que os militares estavam decepcionados”, sentindo-se traídos” pelo governo de um zumbi”, e repensando a permanência” em um governo que teria acabado”. No entanto, Heleno, Braga Netto e Ramos atenderam prontamente quando Bolsonaro os destacou para dissuadir Moro. Depois da missão falhar, miraram sua artilharia contra Moro e, nos seus depoimentos sobre a reunião de 22 de abril (dados antes da divulgação da reunião), os militares do Planalto negaram as acusações do ex-Ministro da Justiça sobre Bolsonaro ter falado em intervir na PF. Para a desilusão dos que imaginaram um desembarque das Forças Armadas, a amputação da pata lavajatista fez crescer ainda mais a pata militar.

Tensões entre as Forças Armadas e o Ministro da Justiça

Embora os militares do Planalto parecessem alinhados a Moro (enquanto ele era ministro), a relação não parece ter sido plenamente recíproca. Quando o então Ministro da Justiça teve que ser árbitro de tensões entre o presidente e setores das FFAA, ficou do lado de Bolsonaro

1) Um primeiro exemplo é que Moro não tomou nenhuma medida para frear a atuação das milícias. O “pacote anticrime de Moro cita as milícias apenas uma vez, e para reduzir a pena mínima dos milicianos. Moro atendeu às aspirações protofascistas do bolsonarismo, que (como discutiremos em “Autocráticos e protofascistas”) mobiliza milicianos, policiais e soldados em manifestações de rua para avançar sua escalada autoritária e induzir o alto escalão das Forças Armadas a acompanhá-la, com o risco de, caso não a sigam, se descolarem das suas bases. Por outro lado, Moro foi na contramão de ao menos parcela das Forças Armadas, que não veem com bons olhos a proliferação das milícias e a ameaça que sua atuação representa à hierarquia militar.

2) Moro também endossou a política do presidente quando praticamente não agiu em relação ao motim da polícia no Ceará. O motim foi visto por Bolsonaro como uma oportunidade de comprovar sua capacidade de dirigir as polícias, mas, de acordo com o GEDES, as Forças Armadas o pressionaram a autorizar logo a intervenção militar para acabar com o exemplo de insubordinação e quebra de hierarquia. Na visita que fez ao Estado durante o motim, Moro comentou que não havia desordem e que os policiais deveriam ser valorizados.

3) Outro caso em que o ex-Ministro da Justiça se posicionou contra um setor das Forças Armadas foi quando assinou (junto com o Ministro da Defesa general Azevedo) a revogação de três portarias do Comando Logístico do Exército, que criavam regras para facilitar o rastreamento de armas e munição. As portarias foram uma ação desse setor do Exército para conter a expansão das milícias. Bolsonaro justificou a revogação, uma medida nitidamente pró-milícias, como resultado da “pressão feita pela categoria dos caçadores, atiradores e colecionadores”. Com a publicação da reunião ministerial dia 22 de abril pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, foi revelado que Bolsonaro pressionou Moro e Azevedo a assinarem a revogação das portarias, dizendo com todas as letras que queria armar a população para que ela enfrentasse as decisões dos governadores e prefeitos (deixando nítido como seu governo protofascista se sustenta a partir da mobilização de bandos armados nas ruas). Embora Moro tente aparentar discordar da política armamentista do presidente, o ex-Ministro a seguiu durante todo seu mandato: em maio de 2019, ele já havia assinado decreto que flexibilizou as leis para o porte de armas.

Além de cruzar os braços enquanto bandos milicianos se multiplicavam e policiais se amotinavam, Moro blindou a familícia de todas as evidências que apareceram dos laços dos Bolsonaros com milícias e com o assassinato de Marielle Franco e Ânderson Gomes. Embora agora finja manter distância, o ministro Moro ecoou as ordens do capitão, mesmo quando estas eram contrárias aos generais.

Fissuras na base bolsonarista-lavajatista

É evidente que a saída do ministro mais popular do governo abalou as bases bolsonaristas, apoio que garante, em última instância, a sustentação do presidente pelos militares. Os movimentos bolsonaristas-lavajatistas racharam. Enquanto o Direita Paraná atacou Moro, o Curitiba Contra Corrupção rompeu com Bolsonaro. Segundo pesquisa da FGV encomendada pela Globo sobre os tweets em relação à saída de Moro, a maioria da base bolsonarista teria ficado do lado do líder lavajatista. A recepção a Moro no prédio da PF de Curitiba dia 2 de maio, quando o ex-ministro foi depor contra Bolsonaro, ilustra essas fissuras. Bolsonaristas aglomeraram-se na frente da PF usando lenços com a frase “fechados com Bolsonaro” e carregando cartazes onde estava escrito “Moro Lixo”, enquanto do outro lado da rua um grupo menor de “amigos da Lava Jato” manifestavam-se usando máscaras e vestindo a camiseta da República de Curitiba.

Essa disparidade das manifestações pró-Bolsonaro e pró-Moro em frente à PF sugere que, nas ruas, as hordas verde-amarelas parecem continuar “fechadas com Bolsonaro”. No primeiro domingo (dia 26 de abril) após a saída de Moro, atos bolsonaristas em Belo Horizonte queimaram camisetas do ex-ministro com máscaras do rosto de Moro marcado com “traidor” na testa, e o “acampamento Lava Jato” em Curitiba rebatizou-se de “acampamento com Bolsonaro”. Nos atos do domingo seguinte (dia 3 de maio) em Brasília e São Paulo, as fantasias de Moro como super herói foram substituídas por cartazes que o retratavam como “traíra” e “fofoqueiro”.

Na análise dos camaradas do Movimento Revolucionário dos Trabalhadores (MRT), abriu-se uma disputa entre o bonapartismo de toga (Lava Jato, STF e mídia burguesa que faz oposição ao governo) e o bonapartismo militar (Bolsonaro e os generais). As recentes tensões entre os militares e o STF aponta para essa divisão. Quando o ministro do STF Alexandre de Moraes impediu a posse do delegado e Diretor da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) Alexandre Ramagem no comando da PF (para substituir Valeixo), os militares do governo e os comandantes do Exército, da Aeronáutica e da Marinha concordaram que o STF atacou a independência do poder Executivo.  Braga Neto, Ramos e Azevedo acompanharam a comitiva de Bolsonaro e empresários da Coalizão Indústria ao STF para pressioná-lo a pôr fim à quarentena. Também se irritaram quando Celso de Mello ameaçou condução coercitiva aos generais para deporem sobre as acusações de Moro a Bolsonaro (Mello já protagonizou outras tensões do STF com Villas Bôas e Eduardo Bolsonaro). E quando Mello sugeriu à Procuradoria Geral da República (PGR) que o celular de Bolsonaro fosse apreendido, Heleno escreveu uma nota dia 22 de maio ameaçando o STF de “consequências imprevisíveis” caso investigassem Bolsonaro, apoiada por Azevedo, por militares da reserva do Exército e pelo Clube Naval

No entanto, os autores apontam que há divisões internas no STF, ilustradas pelo questionamento de Marco Aurélio acerca da decisão de impedir a posse de Ramagem e pela ação de Dias Toffoli, nos bastidores, para garantir a posse do diretor da ABIN na PF. Toffoli faz a ponte do STF com os militares. Em setembro de 2018, por indicação de Villas Bôas, convidou o general Fernando Azevedo para assessor especial, função que passou ao general Ajax Pinheiro quando Azevedo virou ministro da Defesa de Bolsonaro.

A própria Lava Jato teve fissuras. Marcelo Bretas, o juiz da Lava Jato do Rio de Janeiro, manteve-se alinhado ao bolsonarismo. Seu twitter, repleto de passagens bíblicas, exaltações ao Exército e elogios à Trump, evidencia seu engajamento na agenda bolsonarista. E, na briga de Bolsonaro com o governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel, Bretas ficou do lado do presidente, ou ao menos é o que disse o governador, que acusou o juiz de atuar em nome do presidente para difamá-lo através da “Operação Favorito” da PF, que envolve o governador em desvio de dinheiro público. 

Por outro lado, como tem observado Danilo George, parece haver uma tensão entre Bretas e o procurador da Lava Jato do Rio Eduardo El Hage, que ainda no fim do ano passado acusou Bolsonaro de se afastar do combate à corrupção e de interferir na Polícia Federal quando tirou o comando da superintendência da PF no Rio das mãos de Ricardo Saadi em agosto de 2019. 

fissuras inclusive entre a Lava Jato e o STF. El Hage atacou o STF quando Toffoli acolheu o pedido da defesa de Flávio Bolsonaro e suspendeu as investigações com base nos dados do COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), que apontavam a rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro. Um exemplo recente do alinhamento de Toffoli aos militares, além da sua já citada ação pró-Ramagem, foi a decisão de manter no ar a nota das Forças Armadas comemorando o golpe de 1964.

Apesar desse emaranhado de tensões, o que podemos observar é que a base bolsonarista permanece mobilizada em torno do seu capitão e manteve parcela da base lavajatista que não se centralizou em Moro.

Uma prótese é costurada no lugar da pata lavajatista

A amputação da perna lavajatista deixou o corpo do governo temporariamente manco. Para substituir essa pata, Bolsonaro costura alianças mais firmes com a pata militar e com suas bases sociais fundamentais. O uso dos cargos públicos para fins pessoais e familiares silencia o tema da corrupção.

Para substituir Moro, chegou-se a cogitar o atual Secretário da Presidência Jorge Oliveira, que como apontamos, é policial da reserva muito próximo da familícia. Chegou a ser aventado que o almirante Flávio Rocha, atualmente na Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), assumiria o cargo de Oliveira. Mas quem assumiu a cadeira de Moro foi o pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil André Mendonça, o que representou a fortificação da aliança de Bolsonaro com as grandes igrejas evangélicas. 

Para substituir Valeixo, depois que o STF barrou Ramagem por ter sido o chefe da equipe de segurança da campanha de Bolsonaro, o presidente emplacou o indicado de Ramagem, o delegado Rolando de Souza, também da ABIN. Com isso, a pata armada ganhou mais uma posição no governo, em estreita relação com a familícia.

No início de abril, Bolsonaro discursou à sua base evangélica que a hora de alguns ministros “estrela” ia chegar (a referência era, na época, a Mandetta). A demissão do Ministro da Saúde seguiu o padrão de demissões do presidente, que como apontaram Hoeveler e Fontes, consiste no “descarte de lideranças políticas dotadas de algum prestígio e articulação por figuras, digamos, mais ‘inofensivas’”. Agora, com a demissão de Moro, a observação das autoras de que “o miliciano não está mesmo disposto a admitir quaisquer atores políticos no páreo”.

O governo Bolsonaro desfez-se de um de seus esteios, ainda que Moro tive apoio entre os militares. É uma ilusão imaginar que os militares, embarcados no navio a todo vapor do capitão Bolsonaro, cogitaram saltar dele atrás de Moro e nadar contra a correnteza. O “alto preço” que Santos Cruz previu que seria pago por Bolsonaro caso rompesse com Moro já está sendo pago em parcelas não tão altas quanto Santos Cruz imaginou. 

É verdade que os militares devem evitar se indispor com Moro, afinal de contas, ele pode vir a ser candidato nas eleições de 2022. Mas enquanto Bolsonaro mantiver as condições de governabilidade pelo apoio da sua base fiel, os militares seguirão governando com quem possibilitou que retomassem um poder que não tinham desde a ditadura, por enquanto sem um golpe militar, mas por meio de eleições – com a ajuda fundamental de um juiz que agora tornou-se incômodo.