Um processo revolucionário começa ou termina pela subversão dos símbolos da sociedade anterior. Não dá pra saber ainda a dimensão dos acontecimentos que estamos vivendo, mas eles sinalizam que mudanças profundas estão ocorrendo, resta saber quantas placas tectônicas da sociedade elas vão movimentar. Quando vemos uma estátua de um traficante de escravos ser arrancada pela população de Bristol, sendo a Inglaterra um país construído em cima do sangue da escravidão africana e do tráfico negreiro, é porque a sociedade não tolera mais esses símbolos e seus significados.
Edward Colston, o que teve sua estátua arrancada e jogada no rio, fazia filantropia na Inglaterra com a riqueza acumulada através do comércio das vidas negras capturadas na África. Na Bélgica, os moradores da cidade de Antuérpia jogaram tinta vermelha na estátua do rei Leopoldo II, que, quando colonizou o Congo Belga, exterminou 10 milhões de congoleses. Nos EUA, a estátua de Cristóvão Colombo, símbolo da invasão das Américas, foi arrancada do Capitólio de Minnesota sob aplausos.
A revolta com o assassinato de George Floyd está produzindo, além de manifestações multitudinárias em vários países, uma consciência de que é insuportável a permanência e a convivência com os símbolos do racismo que produziram a morte e o genocídio de milhões de africanos e indígenas em séculos de escravidão e colonização. Justiça para George Floyd se tornou justiça para os milhões que foram capturados, vendidos, torturados e assassinados durante séculos. Este movimento está fazendo com que alguns prefeitos e autoridades se antecipem e eles mesmos proponham a retirada das estátuas de maneira “civilizada”. O prefeito de Londres, Sadiq Khan, disse que criará uma comissão para garantir que as ruas e parques reflitam a diversidade da cidade e retirará homenagens relacionadas à escravidão.
Já há uma polêmica se os tais monumentos históricos deveriam ser mesmo removidos. Há alguns historiadores que dizem que, como são patrimônios históricos, deveriam ser preservados e a presença deles serviria para mostrar para a sociedade as contradições da época em que foram produzidos. Eu penso que as estátuas são produzidas para simbolizar mais do que patrimônios. Elas existem para sinalizar para a sociedade aquilo que é venerável e admirável. Portanto, se a sociedade não suporta mais os símbolos da escravidão, que sejam derrubadas. Assim como existiram os processos históricos que produziram as estátuas de escravocratas e racistas, hoje temos um processo histórico que não as tolera mais.
Acredito que as ruínas das estátuas devam ser preservadas. Que os bustos sem cabeça, que os corpos quebrados nos rios e que as pedras pintadas de vermelho fiquem expostas para que a sociedade veja que o racismo deve ser banido e que isso não vai acontecer sem que que os oprimidos se levantem.
Derrubar os símbolos do racismo deve ser só o começo das transformações estruturais que precisam acontecer.
Aqui no Brasil teríamos que derrubar ou mutilar (porque muitas são muito pesadas) muitas estátuas, a começar pelo Monumento às Bandeiras, pela estátua do Borba Gato ou pela do Duque de Caxias, em cima do seu cavalo em pleno centro de São Paulo. Será preciso também mudar o nome de todas as ruas de escravocratas e mercenários. A rua Domingos Jorge Velho, o assassino de Zumbi dos Palmares, continua impávida no Bom Retiro.
Em nosso país, além dos genocidas do século XVI, XVII, XVIII e XIX, temos ruas e patrimônios em homenagem aos torturadores da Ditadura Militar do século XX. Como professora de História, sempre mostro aos estudantes como os símbolos da colonização, da escravidão e do genocídio dos povos indígenas e africanos continuam fazendo parte da paisagem como se não tivessem sido construídos sob o sangue de milhões.
Há algum tempo atrás, alguns desses monumentos foram pintados de vermelho. Os “artistas” foram chamados de vândalos. Eu continuo afirmando: vândalos foram os bandeirantes, os traficantes de escravos, os senhores de engenho, as sinhás das casas grandes, os generais e o capitão!
*Silvia é historiadora, professora da Rede Municipal de São Paulo, da Resistência Feminista e da direção Nacional do PSOL
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