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A cara ultraliberal e entreguista dos militares

Parte 4 de “Os militares no bando no poder”

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Gabriel Lecznieski Kanaan

Muitas vezes associados ao investimento estatal e à projeção do Brasil como uma potência, os militares no governo Bolsonaro tem atuado no sentido contrário, apoiando as privatizações e a entrega de empresas chave do país. Neste texto iremos apontar alguns elementos dessa nova face ultraliberal das Forças Armadas.

Cai a fantasia de nacional-desenvolvimentistas dos militares

Como levantou Pinto, os generais defendem sem cerimônias a diminuição do Estado. Mourão, em palestra para a maçonaria em setembro de 2017, disse que “ninguém pode temer os investimentos estrangeiros (…) [e apoiou a] privatização, sim. Desregulação (do controle governamental sobre o mercado), vamos liberar”. O presidente do Clube Militar Eduardo Barbosa (que substituiu Mourão na presidência do Clube quando este se afastou para as eleições) segue a mesma linha de defesa do livre mercado. Debatendo a proposta “Para um Brasil melhor” lançada pelo Clube Militar em 2018 (que propõe “acabar com TV e rádio públicas”, “alterar normas para demarcação de terras indígenas e quilombolas”, “extinção das cotas” e “suspender repasse de recursos públicos para ONGs”) em entrevista ao programa da Band Faixa Livre, Barbosa opinou que “deveríamos nos abrir mais”, já que com a globalização, “a economia mundial é muito conectada”.

Ao ocupar o governo Bolsonaro, os militares implementaram esse programa. Não à toa, o ministro de Infraestrutura e engenheiro do Exército, Tarcísio de Freitas, que leva adiante a agenda de privatização, recebeu o prêmio de melhor gestor público do Grupo de Líderes Empresariais (LIDE) no fim do ano passado. Sua fala no evento de entrega do prêmio destacou do início ao fim os leilões de empresas públicas realizados pelo seu plano de desestatização. Nas palavras do GEDES, “foi-se o tempo dos nacionais-desenvolvimentistas”.

Outro exemplo da convergência entre os militares e o empresariado ultraliberal é, como apontou Sônia Mendonça, o projeto Barão do Rio Branco arquitetado por Santa Rosa, que planeja grandes obras na Amazônia e unifica o interesse das Forças Armadas de ocupar a Amazônia ao desejo de escoar soja do empresariado rural. 

A aceitação dos militares da entrega da base de Alcântara para os norte-americanos (que durante as duas últimas décadas boicotaram o programa de lançamento de foguetes do Brasil), que controlarão áreas restritas onde só poderão entrar brasileiros autorizados por eles, simboliza o entreguismo das FFAA. A venda da Embraer para a Boeing foi o ápice dessa postura, que se comprovou desastrosa com o cancelamento da transação pela Boeing no último dia permitido pelo contrato, 24 de abril de 2020. Segundo Raúl Zibechi, o objetivo da Boeing com a compra era competir no mercado de aviões médios com sua rival Airbus, empresa francesa associada com a canadense Bombardier, concorrente direta da Embraer. Em março de 2019, duas semanas depois da compra da Embraer pela Boeing, um acidente com o 737 da Boeing levou à proibição do modelo, e a consequente desvalorização da Boeing refletiu na recém adquirida Embraer: o valor da Embraer caiu de U$ 4,2 bilhões em fevereiro de 2019 para cerca de U$ 1 bilhão no ano seguinte. Quer dizer, a movimentação da Boeing de comprar a empresa brasileira e depois desistir resultou (intencionalmente ou não) na desestruturação da Embraer, a terceira maior empresa de aviação do mundo (atrás apenas da Boeing e da Airbus) e uma das principais competidoras da Boeing. 

Mesmo assim, é importante observar algumas contradições nesse casamento dos militares com Bolsonaro. Algumas fissuras ficaram mais aparentes quando Mourão disse que o cancelamento da compra da Embraer pela Boeing pode ter sido uma “bênção disfarçada”, e que agora um casamento com a China era inevitável. No entanto, na análise de Leirner, a atuação de MOurão como moderador das relações entre Bolsonaro e os chineses é jogo de cena, pois foi justamente o crescimento da presença chinesa no continente que fez os militares optarem por aprofundar o alinhamento aos Estados Unidos. 

Na dissidência do general Juarez Cunha, contrário à privatização dos Correios, seguida da sua demissão em junho de 2019, Bolsonaro o acusou Cunha de agir como sindicalista, recrutando para o seu lugar o ex-comandante das tropas no Haiti Floriano Peixoto. Em março de 2019, o secretário de Desestatização Salim Mattar, dono da Localiza, já havia criticado o tenente-coronel Marcos Pontes, ministro da Ciência e Tecnologia, por “ter cinco estatais e não querer privatizar nenhuma”. Mattar também criticou a criação, em novembro de 2019, da estatal NAV Brasil, vinculada ao Ministério da Defesa e ao Comando da Aeronáutica, para o controle do tráfego aéreo. A proposta de criação da NAV Brasil foi elaoborada pelos militares e encaminhada por Temer no seu último mês de governo, mas em maio de 2019 foi revogada por Bolsonaro. Guedes atuou para impedir a criação, o que gerou atritos com Ramos, que coordenava o projeto. O Congresso ressuscitou a proposta em setembro, sancionada por Bolsonaro. A estatal, além de aumentar o controle das FFAA sobre o tráfego aéreo, também abriu milhares de empregos para os militares, reafirmando os laços de Bolsonaro com as Forças Armadas. Outra função primordial da estatal será a prestação de serviços aos Estados Unidos na Base de Alcântara. É uma estatal que nasce entreguista.

Os militares na quarentena

Na conjuntura da pandemia, a representação dos militares como salvadores da pátria se intensificou ainda mais. Depois de Pujol dizer que o coronavírus não era apenas uma “gripezinha”, a mídia se jogou nos braços da miragem de messias que enxergaram. Embora os militares se esforcem para transparecer responsabilidade fantasiando-se de bombeiros, sua preocupação não é apagar o incêndio, e sim manter a ordem durante a pandemia por meio da repressão às revoltas populares que surgirão com o agravamento da crise. Como a própria Folha apontou, o receio de que a escassez levasse a saques e quebra-quebras levou vários militares a se posicionarem contra a quarentena.

Essa postura não diverge dos interesses gerais da burguesia brasileira, mesmo que alguns interesses imediatos de setores específicos do empresariado sejam penalizados. No já citado documento do “Crise do COVID-19: estratégias de transição para a normalidade” do CEEEx (Centro de Estudos Estratégicos do Exército), os militares planejam, como o título sublinha, como voltar à normalidade, propondo uma quarentena por talvez mais 15 dias, mas formulando estratégias para colocar a classe trabalhadora de volta a produzir mais-valor o quanto antes. No entanto, preocupam-se com a garantia da ordem, condição básica para a extração do mais-valor. Assim, interesses imediatos podem vir a ser adiados caso possam prejudicar o ambiente de estabilidade. Foi o caso dos sinais de resistência dos militares em relação ao envio da PEC da Reforma Administrativa ao Congresso no final de 2019, pois avaliavam que poderia ser estopim de protestos como os que ocorriam no Chile naquela ocasião. A administração do isolamento deveria levar em conta, acima de tudo, a garantia da ordem, preocupação central do documento do CEEEx.

Vale retomar brevemente os posicionamentos do empresariado para compração com a atuação militar. Em análise bastante sistemática, André Valle e Octávio Passos levantaram posicionamentos do empresariado brasileiro e concluíram que há uma divisão no interior do bloco no poder entre uma ala neofascista anti-isolamento e uma direita tradicional pró-isolamento. No entanto, não assinalam que os setores apontados como “favoráveis” à quarentena reivindicam suas atividades como essenciais e/ou estão lucrando com a crise. O capital bancário, que “reagiu negativamente aos rumores de demissão de Luiz Henrique Mandetta”, é o que mais está lucrando com a pandemia, aumentando os juros logo após receberem massas gigantescas de dinheiro barato do Estado. Nos EUA, pressionam as farmacêuticas a subirem preços para lucrar ainda mais com a pandemia. Até a Veja apontou a avareza dos banqueiros no Brasil. As empresas de telecomunicações que se alinharam à OMS e aos governos estaduais também estão se apropriando de enormes lucros pelo aumento gigantesco do uso das plataformas de streaming. É o mesmo caso da indústria de alimentos e os supermercados, atividades evidentemente essenciais. 

No fim das contas, todos setores do empresariado são contra a quarentena – das suas próprias atividades. É o que mostraram Rejane Hoeveler e Elaine Bortone em “Os mercadores da morte”. Defender quarentena para os outros é fácil. Guedes sintetizou essa postura ao dizer que “como cidadão, gostaria de ficar em casa, mas como economista, gostaria de manter a produção”. Até empresas de locação de carros, como a Localiza de Salim Mattar, defendem suas atividades como essenciais, e tiveram suas demandas atendidas pelo último decreto de Bolsonaro. Outro exemplo emblemático são as mineradoras, que defenderam a quarentena mas se mobilizaram para incluir a mineração como “atividade essencial” (sendo que é voltada majoritariamente para exportação…). Também o agronegócio, pois enquanto um dos seus maiores representantes, Ronaldo Caiado, defendia a quarentena em um carro de som, uma das suas maiores entidades, a ABAG, criticava o fechamento do Porto de Santos defendendo esse “essencial, prioritário e estratégico setor da economia” (de exportação de soja?). 

Planejando a volta à normalidade e uma flexibilização da quarentena, os militares no governo levam em consideração esses interesses do empresariado, mas se distanciam deles o suficiente para evitar o cenário caótico que a aplicação irrestrita dessas vontades causaria. Embora a ingênua ideia dos militares como “moderadores” das forças sociais seja uma falácia, pois eles têm lado, o do capital, é verdade que pretendem desempenhar a função de sintetizar os interesses das diferentes frações burguesas e moderar o imediatismo e o setorialismo que, como André Guiot analisou, tem dominado a atuação empresarial na pandemia. 

O “Plano Pró-Brasil” – coordenado por Braga Netto, Tarcísio Freitas e pelo ministro do Desenvolvimento Regional do PSDB Rogério Marinho – foi apontado como motivo de discórdia entre “militares estatistas” e o ultraliberalismo de Guedes. O ministro da Economia disse à Veja, sua parceria ultraliberal, que reclamou com Bolsonaro sobre a interferência dos generais na economia, posto que “os militares começaram bem e acabaram mal. Acabaram mal porque não privatizaram as empresas. Não abriram a economia. Não fizeram a transformação do Estado que nós queremos fazer”. No entanto, como pontuou Everton Rosa, o Pró-Brasil é em essência um programa “liberal” de “entrega de ativos públicos ao setor privado” pois, dos R$ 250 bilhões anunciados pelo programa, 88% são para concessões e privatizações. Guedes aparenta discordar do (ainda que mínimo) planejamento de investimentos estatais. Entretanto, com a realidade da pandemia e a gritante necessidade de investimentos públicos despencando na sua cabeça (até os mais liberais, como o presidente do BC no governo FHC Armínio Fraga, começam a defender essa necessidade), Guedes descobrirá que precisa do Estado para recuperar a economia e tornar possível a reeleição do seu capitão. 

A partir desses apontamentos, observamos que não houve unanimidade entre as Forças Armadas sobre o alinhamento ao núcleo ultraliberal, e vários militares foram defenestrados do governo devido aos conflitos com Guedes e companhia. Mas de modo geral, as Forças Armadas estão mais próximas da agenda ultraliberal do que imaginam os que esperam um conflito dos “militares estatistas” com os liberais. O expurgo nas Forças Armadas durante a ditadura bloqueou o espaço para a disputa entre nacionalistas versus entreguistas. A existência de eventuais tensões singulares não alteram a atuação das Forças Armadas entreguistas como o braço armado do ultraliberalismo de Guedes, já acostumado com tal braço desde os tempos em que ajudou Pinochet a sangrar a classe trabalhadora chilena.