Em meio à pandemia e seu enfrentamento através do fortalecimento do isolamento social, é sabido que há uma linha de frente de trabalhadores essenciais para que seja possível uma eficácia estratégica no controle da contaminação pelo vírus. Aqui, focando na situação da covid-19 na cidade de São Bernardo do Campo, no estado de São Paulo, nos juntamos a outros autores do esquerda online na tarefa de dar voz aos trabalhadores desse grupo que atuam na área da saúde pública.
Enquanto o bolsonarismo tenta a qualquer custo boicotar a quarentena, seja através da pressão federal para reduzir o isolamento social, ou por meio da tentativa de relativizar as mortes e ignorar o já em rumo esgotamento do sistema público de saúde, os trabalhadores da saúde colocam suas vidas em riscos para salvar a nação. Mas, o que deveria ser óbvio na questão de garantir a eles as melhores condições possíveis de trabalho, muitas vezes não é sequer cumprido, colocando-os em uma dupla situação de enfrentamento. Se por um lado há o risco natural de contágio por conta do tipo de trabalho que eles prestam, por outro, esse risco é potencializado quando não há insumos hospitalares, recursos e cuidados suficientes com esses profissionais.
São Bernardo do Campo é, atualmente, uma das cidades mais atingidas pela covid-19 no estado de São Paulo, que também é o estado mais atingido no Brasil. Assim, a cidade ocupa a 16ª posição no ranking de número de contágio por cidades do país, contando com 616 casos confirmados e 40 mortes, segundo os dados de 30 de abril. Uma breve pesquisa nos veículos oficiais da Prefeitura pode indicar que medidas para o combate estão sendo tomadas na cidade, entre elas, o recém aumento do teste em profissionais de saúde e segurança, a recomendação de uso de máscaras para profissionais da saúde, entre outras. Entretanto, relatos de profissionais dessas áreas com quem tivemos contato vêm demonstrando que tais medidas parecem não estar sendo tomadas com eficiência e transparência, ou sequer, sendo de fato tomadas.
Por razões de segurança, todos os depoimentos aqui serão apresentado de maneira anônima.
Duas profissionais de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de São Bernardo fizeram um extenso relato sobre a situação de sua unidade:
“Estamos lidando com uma gestão que parece não saber o que fazer, e que não nos considera para pensar. Não considera os trabalhadores, os pesquisadores, as autoridades que o SUS formou e a própria sociedade, ou seja, todos que poderiam em conjunto arquitetar estratégias para o cuidado coletivo. As alterações no cotidiano da UBS começaram em 16 de março por iniciativa dos trabalhadores e da comunidade que foi se ausentando dos agendamentos.
Não considera os trabalhadores, os pesquisadores, as autoridades que o SUS formou e a própria sociedade, ou seja, todos que poderiam em conjunto arquitetar estratégias para o cuidado coletivo.
As deliberações foram aparecendo e mudando rapidamente, de manhã o pré-natal e vacinas foram suspensos, à tarde retomados. A cada instante uma surpresa.
No primeiro pronunciamento do governador do estado de São Paulo, as medidas: retirada todas as folgas, férias dos profissionais da saúde e o diálogo com a polícia. Primeiras medidas que dizem do modo de operar, sacrificar o trabalhador sem que haja análise devida dos casos e funções e o apoio da força policial.
Os trabalhadores da saúde, independentemente da função, mesmo sendo de potencial risco não são afastados. Na unidade em que estamos, estes ficam isolados em salas, porém convivem conosco que estamos na porta, no atendimento da população. Ou seja, cumprem o horário, correm risco, desnecessariamente. Lá, apenas uma gestante e um médico que tem mais de 70 anos e apresentou sintomas da COVID, estão afastados por tempo indeterminado, por terem buscado individualmente afastamento médico depois de não haver negociação com a gestão. A gestante inicialmente solicitou apenas EPI adequado, e nem isto foi ofertado.
Por uma semana recebemos o apoio da guarda municipal, apoio que não precisávamos, tendo em vista que nossas forças policiais atuam de modo repressivo e punitivo. Não havia o que eles pudessem fazer, a maioria se manteve vigilante, porém um destes, tomou o poder de sua caneta e passou a fazer anotações em um bloco de papel, quando perguntado se estava multando alguém, respondeu, sim, estava multando aqueles que pareciam suspeitos[…]
[…] A gestão não pisa nas unidades, se ausenta, faz cobranças não condizentes com a realidade, e muitos estão em home office ou afastados, enquanto os trabalhadores da ponta estão largados.
[…] A gestão não pisa nas unidades, se ausenta, faz cobranças não condizentes com a realidade, e muitos estão em home office ou afastados, enquanto os trabalhadores da ponta estão largados.
A Vigilância em Saúde não apresenta nenhum dado para a rede, tudo é restrito à gestão central, que divulga apenas os dados que aparecem nas redes sociais“.
No que diz sobre os insumos hospitalares, o funcionário relata a falta destes e também a falta de transparência quanto ao número de contaminados nas unidades:
“Inicialmente contávamos apenas com as máscaras cirúrgicas, contávamos angustiadamente, pois a cada hora se aproximava o esgotamento. Para conseguir mais máscaras deste tipo, contamos semanalmente com o esforço do gestor local, o que se faz diferente em cada unidade. No entanto, estas não são as máscaras mais recomendadas e precisamos ficar com estas por tempo mais prolongado que necessário. Apenas uma máscara N95, a mais recomendada para a situação chegou por volta da primeira semana de abril. Na semana passada a nova recomendação foi de utilizar máscaras de tecido, que compremos ou façamos.
Obviamente muitos trabalhadores compraram máscaras de diferentes níveis de proteção para usar durante o expediente.
Além dos trabalhadores dos grupos de risco, há muitos outros que ficam internos, que poderiam realizar boa parte dos trabalhos em casa. Todos os trabalhadores em risco, sendo que poderia ser diminuído se fosse feito um rodízio dos mesmos. Evitando o contágio simultâneo e a exaustão emocional. Mas isso não é permitido, e precisamos mostrar serviço, mostrar produtividade colados em telas, de forma totalmente alienada[…].
Não há diálogo entre os departamentos e setores, o que resulta numa falta de informação entre os trabalhadores. Não sabemos e não recebemos nenhuma informação sobre os casos confirmados (a não ser os que passam diretamente por nós), não sabemos a porcentagem de internados, de assintomáticos, de sintomáticos leves, moderados e graves. Não sabemos se há comorbidades nos casos graves e de morte. Não temos testes, e recebemos informações de que deve-se evitar ao máximo realizá-los. Em abril chegaram 3 testes por UBS, do tipo PCR (swab), mas não havia equipamento de proteção para os profissionais da saúde coletar, logo, se torna figurativo. Quando há sintomáticos, foi nos orientado para que as pessoas fiquem em casa e esperem “melhorar” ou “piorar “, havendo condutas apenas para casos graves. Ainda assim, nas UPAs os casos moderados a graves não são testados, apenas internados. Os únicos dados que começaram a chegar nos últimos dias são daqueles que se encontram ou estiveram em maior gravidade. Os familiares tampouco são testados.
Os profissionais da saúde também não foram testados pelos equipamentos da rede municipal quando apresentaram sintomas, até semana passada apenas os que evoluíssem ao ponto de chegarem a internação seriam testado. Há um pedido do departamento para que evite afastamentos, e que os profissionais busquem atendimentos de fora para poder afastar ou algo similar. Em final de março houve o anúncio do ministério que haveria testes rápidos para os trabalhadores, até o momento não chegaram. Hoje foi anunciado testes de sangue para a testagem dos trabalhadores, na mídia, pois ali no serviço, nenhuma informação oficial. O afastamento que pela portaria de fim de março era de 14 dias, agora passa a ser de 7 dias, caso os sintomas persistam e alcancem os requisitos passam para a testagem. Não sabemos se estamos infectados e assintomáticos, e estamos na porta da frente fazendo acolhimento, triagem e orientação de cerca de 300 usuários por dia.
Junto a tudo isso, não há nenhum suporte emocional, ou de saúde do trabalhador, ficando aos próprios profissionais da equipe cuidarem uns dos outros”.
Buscamos também ouvir profissionais de outras unidades e fica evidente o déficit que há no que se diz aos insumos hospitalares necessários. Uma profissional do CAPS ( Centro de Atenção Psicossocial) nos relata que a direção passa ordens para os funcionários de que o uso de máscara não é obrigatório, uma vez que não há a capacidade de fornecer para todos os profissionais na quantia adequada, isso é, uma máscara a cada duas horas de uso. Dessa forma, as ordens são de recomendação de uso, porém, não de obrigatoriedade, e muitas vezes são os próprios funcionários que têm que trazer de casa tais insumos para seu uso próprio.
Este triste cenário que é imposto aos nosso trabalhadores da cidade não é possível de ser visto na mídia oficial da Prefeitura. Ali, apenas há as indicações das supostas medidas que estão sendo adotadas, as que nos referimos anteriormente, como também, a propaganda da entrega do Hospital de Urgência. Entrega que também está atrasada há meses e seria fundamental neste período de pandemia.
Esta posição dupla não é estranha na politicagem burguesa. Com uma mão se dá, com a outra, escondida, se mata. O mesmo comportamento é notado na figura do prefeito Orlando Mourando, que, apesar de ter apoiado Bolsonaro nas eleições presidenciais, juntamente com o governador João Dória, nos últimos dias apareceu em lives criticando as posições bolsonaristas. É claro que, dada a situação, críticas às medidas irresponsáveis e violentas do presidente são sempre bem-vindas, até mesmo quando vindas de setores reacionários como aquele que Orlando faz parte. O problema é quando isso ocorre somente como um discurso vazio que esconde uma administração medíocre que coloca em risco a vida dos profissionais da linha de frente, e por consequência, a vida de todos. Tal posicionamento hipócrita e mentiroso da Prefeitura já é bem conhecido na cidade. Uma quantia imensa de dinheiro público é investida em publicidade para polir a imagem do prefeito diante da opinião pública. Desde o final do ano passado, não é incomum encontrar pela cidade desde banners até carros de som anunciando as políticas tomadas pela Prefeitura, numa tentativa evidente de manter uma boa aparência em face das eleições previstas para 2020. Maquiam as denúncias feitas pela Polícia Federal na Operação Prato Feito em setembro de 2019, que pediam o afastamento de Orlando Mourando e o indiciava por crimes de corrupção passiva e fraude em licitação, envolvendo desvio de recursos públicos em contratos de alimentação para escolas, hospitais públicos municipais e a Fundação ABC.
Não há como enfrentar a pandemia da covid-19 sem garantir qualidade de trabalho e de vida para os profissionais da saúde pública. Qualquer discurso que ignore a real situação desses trabalhadores é, no mínimo, criminoso em uma situação dessas. Muito pouco adiantam as posições supostamente antagônicas ao bolsonarismo que figuras representantes do capital vêm recentemente adotando, quando na verdade é compartilhado um mesmo projeto de desmonte e asfixia do estado brasileiro, que é refletido diretamente no despreparo para se enfrentar uma crise como essa que estamos vivendo. Longe de cair no despolitizante “eu avisei” que permeia de maneira irresponsável as redes sociais, a questão aqui é a de saber qual a posição de figuras como a de João Dória e Orlando Mourando na luta de classes brasileira. Por mais que, à primeira vista, estes possam parecer mais preocupados com questões importantes no enfrentamento da covid-19, como saúde pública, ciência e cidadania, o projeto político liberal que estes defendem jamais trata esses temas visando uma melhoria da vida da maioria da população, sendo tais apenas ferramentas de fins eleitoreiros ou de reprodução alienada sob o capital. O esforço que é feito para passar uma mensagem de responsabilidade na cidade de São Bernardo do Campo em meio à pandemia, enquanto os trabalhadores sofrem na linha de frente do combate, evidencia tal tendência.
Equipe: Rhaysa Ruas, Tatianny Araújo, Carolina Freitas , Karine Afonseca e Bruna Martins
Texto enviado por: Núcleo Resistência de São Bernardo do Campo (SP)
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