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BRASIL

Sobre o Estatuto do Estrangeiro

São Paulo – Centro de Integração da Cidadania (CIC) do Imigrante realiza 2° Feirão do Emprego. O evento tem o intuito de auxiliar os imigrantes no processo de inserção na sociedade brasileira (Rovena Rosa/Agência Brasil)

Por: Julia Scavitti, de São Paulo, SP

Entre 2012 e 2015, principalmente, a mídia brasileira começou a noticiar a tal da “crise migratória contemporânea” que teria efeitos no Brasil, principalmente com a chegada de muitos imigrantes haitianos e sírios. Os primeiros, por não se encaixarem na definição estabelecida pela Convenção da ONU de 1951 em relação ao que é ser refugiado, passaram a receber um visto especial de entrada conhecido como ‘visto humanitário’. De qualquer forma, ainda que nas últimas três décadas possamos notar um aumento nos fluxos migratórios internacionais ao Brasil, estamos longe de viver uma crise e nosso maior problema em relação à imigração está exatamente aqui dentro, é o chamado Estatuto do Estrangeiro.

O Estatuto do Estrangeiro é um documento que foi criado na época em que o país ainda se encontrava sob a Ditadura Militar – Lei de 19 de agosto de 1981 (6.815) e desde então vem sendo apontado nos estudos migratórios e nas organizações de direitos humanos e dos migrantes como uma afronta aos direitos básicos dos seres humanos – não podia ser diferente, visto a sua localização histórica – por conta de ser um documento orientado pelo paradigma da segurança nacional. É este o documento de instância máxima que versa sobre a entrada e permanência de imigrantes no país, e ele carrega em si diversos problemas do ponto de vista jurídico, técnico e prático. Aterei-me a dois deles principalmente.

O primeiro é o trato do imigrante e daquele que quer adentrar o território brasileiro como caso de segurança nacional. Atualmente é competência principalmente da Polícia Federal a realização de procedimentos desde a autorização, na ponta do processo que envolve o cruzamento da fronteira, até a regularização da situação do imigrante no país, para que ele não seja considerado ilegal e possa acessar alguns direitos. Digo alguns, porque um dos direitos básicos assegurados aos cidadãos brasileiros é expressamente negado aos imigrantes, os direitos políticos, nosso segundo problema no Estatuto.

Ao categorizar imigrante como ‘estrangeiro’, o Estatuto torna sua presença algo estranho ao país, uma constante possibilidade de ameaça ao dito “nacional”,  expressão bastante vaga e que abre brecha para situações de autoritarismo em expulsar, ou não permitir a entrada de imigrantes no país. O artigo 106 do Estatuto expressa claramente a proibição dos e das imigrantes de se organizar em associações sindicais, por exemplo, e o artigo 107 versa sobre a proibição de exercício de qualquer atividade de natureza política. Assim, a auto organização dos imigrantes, principalmente em relação ao trabalho e a manifestar suas ideologias e convicções, é completamente cerceada.

Muitos projetos de lei em relação à revogação do Estatuto vêm sendo discutidos e apresentados desde então, como forma principal de se modificar o paradigma que orienta o documento atual da Segurança Nacional para um paradigma de direitos humanos e de livre circulação em um mundo que, do ponto de vista das empresas transnacionais e do Capital, parece ser globalizado mas que, nas trajetórias cotidianas dos imigrantes não é bem assim que se apresenta a realidade.

O projeto que ganhou força, no entanto, foi apresentado em 2013 pelo senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB), o PL2516/2015 que institui a Nova Lei de Migração. Hoje, o projeto encontra-se na “ordem do dia” na Câmara de Deputados em Brasília e aguarda votação, sem maiores notícias dessa nebulosa casa grande. Funciona mais ou menos assim: todo projeto de lei tem uma casa iniciadora, nesse caso, o Senado e uma casa revisora, a Câmara de Deputados, que cria uma comissão para analisar a lei e fazer sugestões e alterações ao texto, para que este possa ser votado e ser sancionado, ou não, pelo Executivo.

Neste caso, foram realizadas dez audiências públicas em torno do texto e uma série de modificações, sugeridas e acolhidas, infelizmente, principalmente por deputados da chamada bancada da bala e ligados à polícia federal. O texto, no entanto, trazia algumas alterações que parte dos intelectuais considera progressistas, ainda que continue sendo um documento bastante nebuloso e que não retira da polícia, também pela pressão desta e dos deputados nas audiências públicas, a responsabilidade pela gestão da imigração no país e, portanto, a arbitrariedade da seleção dos que podem, ou não, atravessar as fronteiras, bem como não desburocratiza a emissão de documentos – um transtorno hoje na vida dos imigrantes. Tampouco toca nas questões de direitos políticos dos imigrantes, bem como ainda está ausente a discussão da necessidade de elaboração de políticas públicas migratórias no país. Ou seja, se a princípio era um projeto que alterava o paradigma da segurança nacional e olhe lá, hoje talvez nem isso seja mais.

Não sabemos quando será a votação, nem quais destaques e alterações serão feitos no texto já muito modificado, porém o que sabemos é que a configuração política do nosso Congresso não configura, nem de longe, o melhor cenário para se votar essa lei. Particularmente e me somando aos estudiosos da migração como Igor Machado e Bela Feldman-Bianco e diversas organizações ainda críticas a esse projeto, acredito vivermos uma contradição gigantesca no que tange à questão migratória no país. Por um lado devemos denunciar de forma incisiva a existência de um documento que remete à Ditadura Militar e que regulamenta a vida dos imigrantes no país e, por outro, denunciar que a nova lei não é ainda satisfatória como pode, inclusive, piorar – porém o Estatuto é pior.

É preciso que as organizações de esquerda comecem a debater as questões migratórias em suas agendas políticas se aproximando de organizações de migrantes, no sentido de endossar a luta pelo direito a migrar sem ser criminalizado por isso, pois sabemos que a criminalização segrega as populações, além de facilitar, em muitos casos, a exploração da força de trabalho imigrante em nome do capital e marginalizar essas comunidades em território nacional. Portanto, é também nossa tarefa fazer pressão ao poder público e ao Estado e endossar o debate sobre as leis atuais, buscando alternativas e saídas para que possamos avançar na construção de uma sociedade sem fronteiras aos seres humanos e que garanta os direitos básicos a todo e qualquer cidadão, independente da onde ele esteja.

Leia Mais: 

Site da Câmara

http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=213559

Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil

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