Pular para o conteúdo
MUNDO

Trabalho rural imigrante: uma história de exploração humana desenfreada (entrevista)

Movimento Alternativa Socialista, Portugal

Artigo publicado no site do MAS – Movimento Alternativa Socialista, de Portugal em 26/05/20

O Pingo Doce [rede de supermercados portuguesa], em época de pandemia, tem feito uma campanha agressiva sobre a aposta do grupo no “produto nacional”, com o objetivo de evidenciar a suposta “responsabilidade social“ do Grupo Jerónimo Martins, colocando-se ao lado dos produtores locais, para ajudar o país. É uma estratégia oportunista descarada para limpar a imagem dos grandes distribuidores, que se apropriam de grande parte das margens dos pequenos produtores agrícolas, já para não falar do facto de o Grupo Jerónimo Martins ser mais um dos grandes grupos económicos nacionais sediados na Holanda.

Para além dos portugueses, muitos dos trabalhadores agrícolas, no nosso país (e em muitos outros países europeus), são imigrantes, e muitos enfrentam condições de trabalho semi-esclavagistas. No Alentejo e Algarve, são dezenas de milhares de trabalhadores das mais diversas nacionalidades. A maioria destes trabalhadores são de países asiáticos (Bangladesh, Nepal, Índia), mas também há comunidades significativas de trabalhadores da Europa de Leste (Roménia ou Bulgária), africanos (Senegal, Guiné Conacri, Ghana) e brasileiros. A produção de frutos silvestres (framboesa, amora, mirtilo e groselha) virou moda nos últimos 15 anos. A framboesa, colhida todo o ano, é destes pequenos frutos o mais rentável. Os lucros açucarados do negócio e os dinheiros públicos a fundo perdido atraíram investidores e o Alentejo e o Algarve transformaram-se numa imensidão de estufas, que plastificam a paisagem, impermeabilizam os solos e encobrem a exploração vil de quem lá trabalha.

A maioria sobrevive com salários baixíssimos e em condições absolutamente precárias, inimagináveis para a maioria dos portugueses. Vivem na sua maioria amontoados em contentores, barracas, casebres e, no melhor dos casos, em casas sobrelotadas. Numa época de pandemia, o risco de contágio é elevadíssimo. Muitos pagam balúrdios [preços elevados] por quartos partilhados, que as próprias empresas empregadoras subalugam para poderem ganhar mais algum dinheiro além das fortunas que extraem na produção. Os que não têm documentos são presas fáceis para cartéis de empresas mafiosas (nacionais e estrangeiras), que muitas das vezes não fazem os devidos descontos para a segurança social, deixando os trabalhadores sem qualquer apoio social caso fiquem desempregados. A realidade dos trabalhadores que apanham frutos silvestres no Alentejo, e também no Algarve, é bem distante da imagem cândida e virtuosa que transparece do soundbyte “produção nacional” tão apregoado por empresários e Governos.

Há trabalhadores que ganham 3,5€/hora [R$ 20,], num negócio que, só da exportação da framboesa, rendeu mais de €200 milhões/ano [1,2 bilhões/ano], em 2020. A Lusomorango, maior empresa do sector, opera com mais de uma centena de produtores, exporta quase tudo aquilo que produz, sendo os mercados principais a Inglaterra, Irlanda, Alemanha e países nórdicos. Esta empresa é propriedade do líder mundial de vendas de frutos silvestres, a norte-americana Driscoll´s.

A revista Ruptura esteve à conversa com YG, imigrante brasileiro em Portugal, ativista ambiental e antifascista, que, recentemente, trabalhou no Algarve numa destas explorações.

Ruptura: Podes descrever-nos como é o quotidiano dos trabalhadores agrícolas no Alentejo e Algarve?

YG: As condições de trabalho são, na maioria dos casos, péssimas. Inimagináveis para a maior parte dos trabalhadores portugueses. É uma dura realidade que não passa nos telejornais. O ritmo de trabalho é elevado e a pressão das chefias para aumentar a produtividade é asfixiante. Em muitas estufas as temperaturas são elevadíssimas, tempos de intervalo reduzidos ou inexistentes…

R: Como acabaste de dizer, a situação destes trabalhadores é desconhecida para a maior parte da população. Dentro dos problemas que enumeras, quais te parecem ser os problemas mais graves que estes trabalhadores enfrentam?

YG: São inúmeros os problemas, podem variar de uma exploração para outra, mas mantêm alguns traços comuns. Posso dizer, sem qualquer exagero, que o dia-a-dia é algo inacreditável. A maioria dos trabalhadores não tem carro ou meio de transporte particular e vivem distantes das plantações em outros concelhos. A dificuldade já se inicia nas primeiras horas da manhã, antes mesmo da jornada de trabalho se iniciar às 8h. Com a dificuldade nos transportes coletivos, devido aos seus horários espaçados, muitos dos trabalhadores têm que ajustar os seus horários e levantar-se até duas horas e meia antes do início da jornada de trabalho, para poder chegar a tempo e não se atrasar para iniciar o período remunerado de trabalho. O mesmo acontece no retorno às suas residências.

R: Numa época de pandemia, com a redução dos transportes públicos, tudo se torna mais difícil…

YG: Sim, é verdade. Diversas vezes, principalmente durante o período do Estado de Emergência, os horários de término nas plantações não eram compatíveis com os horários dos comboios. E mais uma vez os trabalhadores tinham que esperar durante horas ou voltar caminhando, numa distância de até 15km, debaixo de sol, após cumprir sua jornada. Ainda com relação ao transporte, nem os donos das produções, nem intermediários (empresas temporárias), auxiliam os trabalhadores com pagamento no transporte público.

R: Se as notícias apontam Portugal como um dos maiores produtores de frutos silvestres, ocultam sistematicamente as formas como a produção é executada.

YG: Dentro das plantações, no Algarve e Alentejo, ocorre uma das mais grosseiras explorações da mão-de-obra em favor dos lucros de grandes corporações. Este tipo de trabalho, como sabemos, é maioritariamente realizado por mão-de-obra imigrante. Os empresários do sector aproveitam-se das dificuldades dos trabalhadores com a língua, com o desconhecimento total das leis laborais e a dificuldade em obterem autorizações de residência. São muitas empresas, num esquema mafioso, que utilizam todos os mecanismos possíveis para espezinhar a nossa dignidade e poder sacar o máximo de lucro do nosso trabalho.

R: As jornadas de trabalho diárias são, por norma, superiores a 8 horas?

YG: As condições nos locais de trabalho são desumanas e inadmissíveis, sem contar com o assédio moral cometido pelos donos das produções. Estes começam, desde as primeiras horas, a exigir dos trabalhadores uma produção média por hora de 3,5kg de fruta colhida. Não há água potável para o consumo dos trabalhadores e há apenas duas cabines com urinol e sanita para atender a quase 100 trabalhadores. As jornadas de trabalho variam e em diversos casos chegam a alcançar as 10 horas em um dia, com 30 minutos de pausa para almoço. O pior é que muitos destes trabalhadores, principalmente vindos de países onde o capitalismo é bem mais agressivo que em solo europeu, acabam, involuntariamente, por normalizar estas condições de precarização do trabalho. É a divisão internacional do trabalho, a favor da classe burguesa, que nos explora a todos, em diferentes patamares. O calor dentro das estufas definitivamente deveria ser um fator decisivo para a não autorização destas longas jornadas.

R: Ao contrário do que sugerem algumas reportagens, os salários também são baixos…

YG: A remuneração é mais incrível ainda. As empresas temporárias fazem contratos com os donos das plantações e negociam quanto vale a hora de trabalho dos seus funcionários. Não satisfeitos em negociar valores baixíssimos, algumas destas empresas tiram de 35%/45% do valor destas horas que deveriam ser pagas aos trabalhadores, para seus lucros. Ainda há empresas que pagam migalhas aos trabalhadores semanalmente como 20€/40€, e no início do mês, onde deveria ser feito o pagamento do salário, dizem-nos que não temos mais nada a receber. São inúmeros os atropelos, aproveitando-se do desconhecimento, do medo e da miséria a que estamos sujeitos.

R: Obrigado pela entrevista YG! Queres deixar uma palavra para os teus colegas que trabalham na produção agrícola?

YG: No momento atual, em que o mundo luta contra a pandemia da COVID-19, fica claro que nada do sistema produtivo existe sem nós trabalhadores dos serviços essenciais. Sejamos nós no campo ou sejam os trabalhadores da cidade. É notório que a maior parte dos trabalhadores nos campos agrícolas, aqui em Portugal, são imigrantes. Também sabemos que há um medo diante das ameaças constantes realizadas pelos patrões, devido ao risco de não concluir com sucesso o processo de imigração por nos faltar vínculo laboral. Esta questão é fulcral e devemos exigir a regularização imediata de todas e todos os que vivem no país. Só assim poderemos resolver seriamente o aproveitamento que os patrões fazem desta situação. Só será possível com a unificação de forças dos trabalhadores imigrantes e nacionais por condições dignas. Só assim conseguiremos garantir que as nossas vozes sejam ouvidas e só assim conseguiremos conquistar a segurança de todos para a permanência no país, já que estamos todos aqui participando diretamente na produção interna do país e, automaticamente, contribuindo para a economia local. Todas as conquistas que os trabalhadores obtiveram à escala mundial foram alcançadas com muito sacrifício. Devemos lutar pelos nossos direitos e fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para melhorarmos as nossas condições de vida. No entanto, devemos ter a consciência de que dentro do sistema capitalista não obteremos a justiça social nem a igualdade que almejamos. Precisamos de um novo sistema social e económico.