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CULTURA

Liberdades para as crianças desde bebês – 50 anos de Revolução dos Cravos.

Por Ana Maria Mello

Recentemente foi publicada no Brasil, a biografia A incrível história de António Salazar, o ditador que morreu duas vezes (Todavia, 2023), do jornalista italiano Marco Ferrari. A capa da edição brasileira – um jovem remove o quadro do Ditador Salazar da parede1 –  inspira aqueles que têm a tarefa de educar, cuidar e zelar das novas gerações.  Li com olhos curiosos de criança, como se estivesse ouvindo essa biografia pela primeira vez. Destaco nesta introdução, um fato que foi retomado pelo biógrafo e que foi motivo de chacotas entre a juventude politizada brasileira dos anos 1974 – 1980: Antonio Salazar caiu da cadeira e sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) em 1968,  para morrer  quatro anos mais tarde, em 1970. Segundo o autor, “Salazar morreu sem saber que tinha deixado o poder: sua cúpula retirava dos jornais textos que falavam de Marcelo Caetano como presidente do conselho e reuniões com personalidades importantes do país eram marcadas como se ele ainda fosse o presidente”. Com toda alegria juvenil, brincávamos com o fato  Salazar ter caído da cadeira. Foi simbólico, para marcar o fim da ditadura portuguesa.

A Revolução dos Cravos prometia os famosos “três D” – Democratizar, Descolonizar, Desenvolver, e nós, estudantes universitários, participamos da resistência contra governos autoritários, a favor da descolonização, de democracias mais duradouras e anticapitalistas. Ferrari explica em detalhes os processos que culminaram na Revolução dos Cravos em 1974, que deu fim ao regime ditatorial do Estado Novo português. Aconselho a leitura dessa obra, lendo-a, comemoraremos, ainda que timidamente, os 50 anos da Revolução dos Cravos. É preciso deixar vivas as verdades varridas para debaixo dos tapetes dos conservadores; mas considero que vale destacar nessas reflexões, a  alegria da Festa dos Cravos, o significado dela para as próximas gerações de leitores/as de língua portuguesa.

Acompanhamos virtualmente, e em permanência as dezenas de exposições e debates em Portugal, sobre os esquecimentos de pontos históricos, que deveríamos anualmente revisitar. Organizar esses esquecimentos, para tornar Memória de uma Nação, como fizeram os curadores do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (2024), é tarefa permanente, afirmamos por aqui, ser dever de quem educa. Nessa exposição parece ser possível observar o reflexo nacional e internacional, desses dias de Abril – nos interessa ainda, aquilo que respinga ou respingou ao além Mar, aqui, no caso debaixo do Equador.

Qual era a conjuntura no Brasil de 1974?

O presidente, General Ernesto Geisel foi indicado, seu mandato foi marcado pela necessidade de se administrar o avanço das oposições legais frente aos sinais de crise da ditadura. Os militares da chamada “linha dura” começaram a perceber a desaprovação popular frente ao regime. Em contrapartida, outros integrantes do regime defendiam a necessidade de flexibilização que pudesse dar maior longevidade ao governo militar. Os militares, aliados aos generais portugueses,  sentiam a falta de António Salazar, reagiram à Revolução dos Cravos e ocorreram tentativas de censura e calúnias, mas sem sucesso entre nós, estudantes.

Além desses grupos alinhados com o governo, forças conservadoras temiam a radicalização da revolução dos Cravos; e nós aqui, comemoramos as duas mortes do ditador portugues. Temos selecionado dezenas de anedotas, nos anos 1970, por exemplo, tínhamos um professor portugues, diretor da UNESP Assis/SP, Antonio Mendonça, conservador e hesitante, que encaminhava sua administração para afirmar ações com poucas liberdades. Naquela faculdade, e em plena ditadura, ele enfrentava oposição de estudantes e docentes da psicologia, das letras e do curso de história. Assim, em 1984, quando ocupamos aquela diretoria escrevemos em uma grande faixa “QUE AZAR, JÁ TEMOS NOSSO SALAZAR!”. Gritavamos a máxima para ele em qualquer oportunidade.  Eram assim os dias que nos deram para viver  – acreditávamos que tudo estava fora da ordem, e, queríamos uma nova ordem mundial!

Já tive oportunidade de contar parte dessa história em 20232 em uma palestra virtual sobre minha entrada na Universidade, justamente em 1974. Eu com meus 18 anos, chegava nesse ambiente; logo apreciei toda atmosfera de oposição, e fui ser gauche na vida3!

Tínhamos boas referências e muitas dúvidas sobre aquele mundo tão original, pelo menos para mim. A universidade pública me provocava para seguir outros caminhos, com as operárias (MELLO, 2022) poetas, filósofos, sociólogos, e psicólogos.

Lembro do encantamento de muitos, com o pôster acima, ele me tocou imediatamente. A criança busca fazer o que sempre faz: atribui a arma a uma outra função social (VIGOTSKI, 1984) ou seja, um vaso para o cravo vermelho, para marcar a Revolução dos Cravos. Grande percepção do artista sobre infância – imagem que ficou consagrada para minha geração. Durante as décadas seguites foi comum observar muitos movimentos estudantis vendendo esse material para angariar fundos, ou ainda vê-lo em todas as repúblicas de estudantes politizados. Durante o movimento pró-anistia brasileira também era comum citarmos as estratégias portuguesas; para nossas ações: lembranças como os presos políticos foram libertados no dia seguinte à festa da Revolução dos Cravos, lembranças ainda da música “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso, cantadas com tanta alegria também pelas crianças.

Assim, são incontáveis os ‘causos’ contados sobre essa Revolução, importantes para as liberdades democráticas em todos países de língua portuguesa, colonizados com tantas opressões. Mas minha tarefa aqui, é refletir sobre liberdades, onde crianças desde bebês e jovens aproveitaram a alegria de  festas, como as dos Cravos, e ampliaram ou traduziram para outras tantas festas: sabem aquelas festas, leitor/a, que foram sucesso até o fim? Aquelas que lembramos, pois a alegria estava presente? Pois bem, são estes os momentos que temos o direito de viver, particularmente quando somos crianças e jovens. São lembranças que foram contadas e recontadas pelos adultos, que medeiam relações entre eles e as crianças, neste processo de nos tornarmos humanos.

Essas lembranças boas podem nos mobilizar para sermos melhores cidadãos/cidadãs e educadores/as. Muitos são as/os educadores/as preocupados em planejar o dia-a-dia sem confinamentos, muitos organizaram e publicaram vários gêneros de expressões; linguagens plásticas, musical, rimas e parlendas4 contam a história da Revolução dos Cravos, não só informam, mas problematizam o tema das ditaduras. Os brasileiros, cantam e batucam os peixinhos do mar5, com jeitinho e gestos lusitanos; brasileirinhas e brasileirinhos contentes, gostam de música e dança, adoram corpos livres, sem confinamentos e opressões. Editoras especializadas em filosofia, sociologia e política, publicam bons livros infantis – fruto de pesquisas e investigações, sobre o que pensam crianças, quando a conversa é ditadura, guerra ou revolução.  A Editora brasileira Boitempo, por exemplo, em sua série Boitatá6, organizou vários títulos para provocar as crianças abaixo de dez anos, desde bebês,  e ouvi-las com atenção sobre temas necessários para serem contados e recontados.

As crianças põem-se a cantar e dançar o modo de pensar – liberdades. Eu reparo, eu tenho um hábito antigo de observar e ficar com crianças em manifestações políticas, particularmente aquelas reuniões menos tensas, onde os adultos responsáveis apostam na formação e/ou nas festas democráticas. Observo os miúdos com satisfação. Reparo que as crianças não ficam esperando começar o discurso, a música e a passeata. Elas querem ajudar na confecção das faixas, querem segurá-las; brincam em paralelo, elas brincam no chão, em canto longo, onde a vista do adulto não alcança. Como de hábito, elas já percebem que algumas tutelas são contra indicadas. Se protegem daqueles olhares adultos comprometidos de recados. Passado algum tempo, algumas recorrem à atenção do adulto, a demandar algo, ou comentar sobre as novas relações que acabaram de fazer. Em certa altura, as crianças sabem sobre os espaços e sobre os adultos. Imitam os tons dos discursos, repetem as máximas, dançam e rebolam seus corpos. Foi comum observar as confidências entre elas; as ideias dos miúdos estavam organizadas para a autoria, para a argumentação, para o protagonismo. Havia investigações alegres entre olhares e sorrisos escondidos nos cantos dos lábios das crianças. Ao se sentirem inseguros se abraçam, se agarram, mesmo não tendo intimidades; no limite correm para a figura de apego, junto aos adultos que deles se ocupam.  A imitação imediata se dá daquela experiência que se iniciou muitas vezes naquela manifestação. Chegando em casa e na escola a imitação diferida pode acontecer; e pode se dar uma boa brincadeira de faz de conta – o discurso, a música, a dança ressurgem no enredo ampliado com  repertório das diferentes linguagens (oral, corporal, musical) da criança. Essas expressões vivenciadas dão confiança,  os miúdos ficam seguros, tomam iniciativas no meio onde os inserimos. Lembranças boas dessas experiências aparecem nas rodas de conversas dentro das unidades de educação. Eu gosto de ouvi-los em detalhes, em associações livres, cruzam seus movimentos excitantes, de meninas e meninos. Nessas prosas alegres, eles trazem muitas expressões, para compartilhar conosco.

Em outro extremo, muitas das crianças pequenas preferem silêncios, não escolhem os espaços desamparados pelos adultos, preferem as construções negociadas por eles mesmos. Observo pelas mídias, sem satisfação alguma, e com muita tristeza, onde estão as crianças nas comunidades periféricas – quando traficantes, milicianos e policiais se disputam, sem pensar nas crianças e suas interações. Reparem quando há catástrofes climáticas.  Prestem atenção, o abandono, os carrinhos e brinquedos, em cantos cheios de entulhos, olhem as cenas das crianças dos povos Yanomamis7, observem o grau de extermínio consolidado alí.  Isso em diferentes territórios urbanos e rurais  (florestas, matas e ribeirinhas); são ataques considerados por nós adultos, como disputas territoriais, mas são guerras permanentes, guerras brasileiras contra as próximas gerações, já condenadas aos sofrimento psíquico e físico.

Já no Mundo sempre houveram guerras oficiais, nesse momento acontece um extermínio de um povo, no ano que comemoramos os 50 anos de uma Festa revolucionária, com músicas e cravos vermelhos… Ficamos estarrecidos, impotentes em acompanhar o massacre das crianças palestinas; escutá-las em suas aflições e medos, são tarefas humanitárias – depoimentos de crianças e seus cuidadores; deixam marcas trágicas para as crianças abaixo de dez anos8, deixam marcas para as próximas gerações em todo o Mundo . É assim para a infância pouco reparada – faltam urgentes reparações para que não as condenem em um futuro desastroso.

Crianças têm tempo, prestem atenção, leitores; às vezes com o olhar à toa, sentem-se desabrigadas nesses cantos abandonados. Crianças preferem os ambientes que não confinam, os espaços de liberdades.

Talvez em tempos de avanços de desumanidades nossa tarefa urgente é emancipar as crianças, suas/seus educadoras/es e suas famílias, não em suas vaidades e desejos consumistas e conservadores, e sim para ações coletivas, e solidárias, colaborando na construção de um novo mundo. Será uma exigência para as próximas décadas de quem se ocupa das infâncias em qualquer lugar do Mundo – esse não é o único mas é um bom motivo, para celebrar a herança  de uma festa bonita, que foi a Revolução do Cravos.

Esse extrato, em comemoração aos 50 anos da Revolução dos Cravos, faz parte de um artigo maior que será publicado pelo Centro de Investigação em Estudos da Criança, Universidade UMINHO, Braga, Portugal, abril 2024.

Notas:
1 Foto: Eduardo Gageiro.
2 Palestra Virtual – Centro de Investigação em Estudos da Criança Universidade UMINHO – Braga, Portugal: Grupo de Estudos e Pesquisas em Pedagogias e Culturas Infantis (UFAL, Brasil) 17/05/2023.
3 Poema de Sete faces: https://www.letras.mus.br/carlos-drummond-de-andrade/460830/
4 Links para as crianças: A Revolução dos Cravos (25 de Abril para Crianças – Poema Animado em Português de Portugal) , 25 de Abril (para crianças) e https://www.youtube.com/watch?v=vmytBdlanbQ.
5 Peixinhos do mar : Peixinhos do Mar – Barbatuques – Tum Pá, DVD Ao Vivo
6 Boitatá Https://www.boitempoeditorial.com.br/home-boitatá
7 Yanomamis de nove aldeias assediadas pelo garimpo estão contaminados por mercúrio, (03/04/9 2024) e https://globoplay.globo.com/v/10040433/ (Globo, 2021)
8 A guerra de Israel contra as crianças palestinas em Gaza – Esquerda Online (02/04/24)

Bibliografia
FERRARI, Marco. A incrível história de António Salazar, o ditador que morreu duas vezes, Editora Todavia, SP: 2023
MELLO, Ana Maria de Araújo. Roda dos expostos, asilos, guarderias e creches hospitalares: O que é isso companheiras? In: 50 anos da Paulistinha: Conquistas, Memórias e Desafios, pp. 33-50, Pedro & João Editores, São Carlos, 2022.  https://pedroejoaoeditores.com.br/2022/wp-content/uploads/2022/11/EBOBOK_50-ANOS-DA-PAULISTINHA.pdf
VIGOTSKI, Lev S. O papel do brinquedo no desenvolvimento. In: A Formação Social da Mente, São Paulo: Martins Fontes, cap. 7, 1984.
Ana Maria A. Mello milita em movimentos em lutas por creches, desde 1976,  psicóloga, Doutora em Ciências, Faculdade de Filosofia, Ciências  e Letras da USP RP.   Currículo