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TEORIA

Contra a guerra e pelo direito à independência e unidade da Ucrânia sem oligarquias capitalistas

Henrique Carneiro

Os enormes protestos que derrubaram o governo de Yanukovich na Ucrânia têm um sentido democrático de reivindicar liberdades sufocadas pelo governo, de denúncia da corrupção e de reivindicar a autodeterminação nacional. Começaram contra leis repressivas, enfrentaram a polícia com dezenas de vítimas fatais, levaram à fuga do presidente e obrigaram o parlamento a votar a deposição do presidente, cujos palácios nababescos foram abertos ao povo.

A Rússia, no entanto, aparece como um polo imperial que ameaça com um enorme exército uma guerra invasora repetindo incursões anteriores, como na Chechênia ou na Georgia. A sombra de uma guerra desencadeada pelo exército russo é o maior risco de uma escalada de violência.

Há dois conflitos atravessados na crise ucraniana. O primeiro deles diz respeito à condição de afirmação nacional de um país submetido à uma histórica dominação estrangeira.

A União Europeia ainda desperta esperanças e ilusões fora de si própria, enquanto em seu interior uma crise grave acumula uma pressão social enorme. No leste, as ditaduras de um capitalismo com métodos de KGB, como na Rússia, Bielo-Rússia, e na Ásia Central, continuam com regimes autoritários, baseados em aparatos de segurança e com ideologias fascistas de nacionalismos extremistas e personalismos acentuados cujo conteúdo é o de um capitalismo mafioso explícito pilhando as riquezas energéticas para o enriquecimento de castas de milionários.

A união de parte da Ucrânia com a Rússia, celebrada oficialmente em 1654, manteve esse país como província imperial. A revolução russa levou também à revolução na Ucrânia e alevantes sociais, mas nesse período também durou pouco a autonomia, pois, a partir da época de Stálin, todas as nacionalidades da União Soviética  sofreram opressão grão-russa, com deportações em massa, confisco de alimentos provocando fome generalizada, especialmente no período conhecido como Holodomor, entre 1932 e 1933.

As fronteiras nacionais são obstáculos para a união mais ampla de todos os povos em alguma federação mundial e o ideal é que se enfraqueçam, até algum dia desaparecerem. Mas para que chegue essa nova era de uma cidadania global e igualitária que supere os imperialismos e opressões, é preciso que todas as nações tenham direito à autodeterminação.

O outro conflito ocorre entre as diferentes oligarquias capitalistas que se digladiam na disputa pela renda dos recursos naturais, especialmente o gás russo que passa pela Ucrânia.

A Ucrânia é um dos países que mais sofreu com as políticas econômicas de austeridade, corte de salários e de direitos e altíssima concentração de renda, com o surgimento de uma oligarquia bilionária capitalista que se apropria das rendas nacionais, especialmente dos recursos energéticos.

Após o fim da URSS, a Ucrânia foi declarada independente e dois sucessivos presidentes, Leonid Kravchuk (1991-1994) e Leonid Kuchma (1994-2005), conduziram uma política de abertura capitalista com colapso inflacionário no caso do primeiro, e uma longa gestão corrupta do segundo, da qual se originam quase todos os protagonistas principais até hoje da política ucraniana.

O que se vive na Ucrânia são os estertores da reconversão da burocracia stalinista dos antigos PCs em capitalistas selvagens em disputas entre si, especialmente entre os herdeiros de Kuchma, mas, no fundo sem grandes diferenças no seu receituário econômico privatista, que conduziram o país ao desastre econômico e social, endividados com a banca e com uma florescente casta de milionários ao lado de uma enorme e crescente miséria.

A origem de praticamente todos os envolvidos é no partido comunista que, após o fim da União Soviética e a independência, em 1992, viu seus quadros dirigentes se lançarem numa corrida do ouro pela pilhagem da propriedade estatal, que foi saqueada por diferentes clãs, especialmente a riqueza da energia do gás, do petróleo e da indústria nuclear.

O presidente derrubado, Viktor Yanukovich, nasceu em 1950, não fala ucraniano bem. Teve uma infância extremamente pobre e atualmente um de seus filhos é um dos maiores milionários do país e seus palácios exibiam requintes de zoológicos e coleção de carros particulares. Seu passado inclui três anos de cárcere na juventude acusado de crimes aos vinte anos de idade e uma graduação em engenharia mecânica por correspondência aos trinta. Aderiu ao PC em 1980 e foi governador da região de Donetz de 1997 a 2002, quando se tornou o primeiro-ministro de Leonid Kuchma, posto que antes tinha sido de Yuschenko, entre 1999 e 2001.

Sua vitória nas eleições de 2004, na disputa da sucessão de Kuchma, foi acusada de fraude e desatou uma onda de protestos populares, a Revolução Laranja, que levou a novas eleições e à vitória de seu rival, Viktor Yuschenko, que sofreu envenenamento com dioxina no meio dessa crise.

O governo de Yuschenko, ex-diretor do Banco Central e de carreira no sistema bancário desde a época soviética, foi um desastre, rompeu a aliança com Yulia Timoshenko e chegou a reatar com o rival Yanukovich que foi seu primeiro-ministro de 2006 a 2007, e só teve 5,45% dos votos na eleição de 2010, que Yanukovich voltou a ganhar, num segundo turno contra Yulia Timoshenko, economista, que enriqueceu com a privatização do gás e se tornou uma das maiores milionárias do país.

Ela também entrou na política ao final dos anos de 1990, como apoiadora do presidente Leonid Kuchma e, após romper com Kuchma, formou o partido “Pátria” e foi primeira-ministra no governo Yuschenko até este denunciá-la como corrupta em 2006.

Em 2011, como presidente da empresa privada ucraniana que era a maior importadora de gás da Rússia foi acusada de violar um contrato de gás, presa, julgada e condenada a sete anos de prisão onde fez greve de fome e ficou em prisão domiciliar até a derrubada de Yanukovich.

Tudo mudou, no entanto, com a irrupção da rebelião da praça Maidan, com um novo e instável fator, das multidões em ação, que levou a que, mesmo após o massacre a tiros dos manifestantes, os líderes dos três partidos de oposição (Pátria, Udar e Svoboda), ainda tentassem firmar um acordo com Yanukovich, depois rechaçado pela praça.

O novo governo continua, porém, a ser composto pelos mesmo que já governaram antes. Um membro do Pátria, de Timoshenko, como presidente, Oleksandr Turchynov, que foi chefe da juventude comunista até 1990, depois se tornou assessor econômico de Kuchma. Em 1993 se tornou sócio de Yulia Timoshenko e criou um partido aliado dela. Em 2005, no governo Yuschenko, foi o primeiro civil a chefiar os serviços de segurança do estado. Hoje, devoto da União Evangélica Batista da Ucrânia é conhecido puritano abstêmio de álcool e tabaco.

E outro membro do Pátria, Arseniy Vatseniuk (de origens remotas judaicas, o que já foi usado contra ele), ex-ministro da economia e chanceler de Yuschenko, ex-vice-presidente do banco da Ucrânia, é o atual primeiro-ministro.

O Pátria governa também com ministros da extrema-direita do Svoboda, cujo extremismo se apresenta como nacionalismo, embora no plano da política econômica esteja no mesmo consenso dos planos neoliberais, de rolagem do alto endividamento estatal com novos empréstimos e planos de austeridade.

Os fascistas do Svoboda receberam entre outros cargos o ministério da educação, mas foram rechaçados por um movimento estudantil que ocupou o prédio do ministério como protesto. O peso dos grupos fascistas ucranianos é um enorme perigo para a Ucrânia e a Europa, mas é preciso que se tenha claro que há também fascistas na Rússia de Putin, que já desencadearam guerras racistas como na Chechênia.

O governo ucraniano atual, de transição, não tem um programa alternativo e está em rota de colisão com as massas que esperam novas eleições para breve e querem o fim da corrupção, desigualdade social e miséria. Tanto o governo atual como o anterior são todos partes do mesmo sistema burocrático-policial-estatal que se tornou capitalista reconvertendo os burocratas em proprietários milionários.

A recusa da praça Maidan ao sistema político tem uma dimensão de protesto social contra a pilhagem da riqueza pelos novos-ricos das privatizações das últimas décadas, daí a exigência de que nenhum milionário ocupasse postos no novo governo.

O conflito com a Rússia, no entanto, é a maior fonte imediata de legitimidade imediata que esse governo poderá conseguir ter, pois a invasão russa tende a criar um polo de unidade nacional inevitavelmente. Sua política econômica, entretanto, não oferece qualquer saída, ao contrário, aprofunda a crise com novos empréstimos.

E a Crimeia é o ponto de tensão mais premente. Essa região exemplifica a confusa situação de opressões nacionais sobrepostas que foi criada na periferia do Império Russo e depois agravada pela tirania stalinista.
A Crimeia tinha povos originais diversos e foi povoada ao longo de muitas migrações e invasões, como a dos tártaros, turcomanos islamizados que tiveram seu canato subordinado aos turcos derrotado ao final do século XVIII por Catarina a Grande. Desde então foi uma república russa até Kruschev passá-la para a Ucrânia em 1954.

Sua secessão, garantida por meio da ocupação militar russa, reproduz o que ocorreu na fronteira ocidental da Ucrânia, com a Moldova, onde existe a Transnístria, um estado pró-russo independente na prática, garantido por uma forte presença militar russa, mas não reconhecido por ninguém.

O imperialismo ocidental fez algo semelhante no Kosovo e o imperialismo grão-russo atual vem fazendo o mesmo com a Ossétia, na Geórgia, com a Moldova, na Transnístria e agora, pode fazê-lo com a Ucrânia, na Criméia, cuja primeira guerra, em 1853, foi desencadeada pelo Czar sob pretexto cruzadístico de libertar Jerusalém para os cristãos invadindo o Danúbio.

O que complica todos os planos imperiais é que a Ucrânia é um enorme país que está vivendo uma enorme mobilização social e vai resisitir.

A definição política desse processo não está definida. A volatilidade e a insatisfação das massas buscará alternativas. O movimento social operário, estudantil e popular vai se ver com desafios em cada local de trabalho e na escala de uma alternativa nacional e internacional.

A Rússia vai viver uma luta terrível entre as poderosas forças ultranacionalistas, de tipo fascista, não só em partidos como o de Jirinovsky, mas no próprio partido de Putin querendo levar o país a uma nova guerra de agressão, e o movimento democrático, antimilitarista, e de solidariedade com a Ucrânia.

O exemplo das barricadas de Kiev pode se refletir em Moscou e outras cidades, onde nasceu desde o ano passado o maior movimento de massas de oposição ao regime, desde a ascensão de Yeltsin, que vem sofrendo forte repressão do governo Putin/Medvedev.

A oposição à guerra e a defesa do direito à independência e unidade da Ucrânica será a causa comum tanto do povo ucraniano como do povo russo e de todos os povos oprimidos do mundo.

(Artigo publicado na revista R.)