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MUNDO

Dois anos depois: E se a Rússia vencer? E se a Ucrânia vencer?

Henrique Canary, da redação
Reprodução

Em seu famoso clássico Da Guerra, o general, teórico e historiador militar prussiano Carl von Clausewitz (1780-1831) afirmou que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Essa frase tem distintas camadas. Uma mais óbvia: a guerra está subordinada à política, é uma outra forma de se atingir os mesmos fins perseguidos na política. A outra camada é menos evidente: quer dizer que a guerra carrega consigo toda a complexidade das relações políticas. O fato de existir um campo de batalha dividido ao meio com dois inimigos se enfrentando não torna a análise da guerra algo fácil ou simples, pois ela é a expressão de todo o passado, dos eventos, da correlação de forças, das alianças, dos interesses, das estratégias, dos sujeitos políticos e sociais, partidos e líderes envolvidos no conflito. Como confronto militar em si, uma guerra pode ser bárbara, cruel, desumana (valores morais), mas suas determinações são muito mais complexas e residem sempre no terreno da política. Tomar partido em uma guerra é uma questão fundamentalmente política.

O exemplo mais conhecido de uma guerra com múltiplas facetas é a Segunda Guerra Mundial. Como afirmou brilhantemente o dirigente trotskista belga Ernest Mandel (1923-1995), essa guerra possuía pelo menos quatro aspectos: a) o de uma guerra contrarrevolucionária da Alemanha nazista contra a URSS, cujo objetivo era destruir a (então) única experiência socialista em curso no mundo e afogar em sangue o proletariado soviético como uma lição para seus irmãos de outros países; b) o de um conflito interimperialista entre o bloco “democrático” (EUA, França e Inglaterra) e os novos (tardios) Estados imperialistas (Alemanha, Japão e Itália), que buscavam espaço em um mercado mundial já ocupado pelos imperialismos tradicionais; c) o de uma luta dos povos colonizados contra o domínio colonial, manifestado na heróica resistência chinesa contra a ocupação imperialista japonesa; d) o de uma guerra revolucionária dos povos europeus contra a opressão fascista, fato concretizado nas resistências nacionais francesa, grega e italiana.

Assim, diante de uma guerra, qual é a tarefa dos socialistas?

Em primeiro lugar, se solidarizar com o sofrimento humano. A Ucrânia como Estado e como governo pode estar certa ou errada na guerra, mas sua população é quem sofre. São pessoas de carne e osso sendo bombardeadas, expulsas de suas casas, vivendo em abrigos e emigrando para fora do país. O mesmo ocorre com a população russa da região de Belgorod, alvo constante dos bombardeios ucranianos ou com os ativistas antiguerra perseguidos pelo governo Putin. A todos esses seres humanos, os socialistas devem solidariedade. Não merece ser chamado de socialista aquele que desdenha, debocha ou é indiferente ao sofrimento humano porque é para acabar com esse sofrimento, em primeiro lugar, que existe o socialismo.

A segunda tarefa é penetrar, por meio do pensamento, nas relações sociais, econômicas, políticas e militares para desvendá-las – entender. Não é possível compreender uma guerra se nos detivermos na superfície do conflito, unicamente no campo de batalha. A razão está sempre com o lado mais fraco? Culpado é sempre aquele que implementa os métodos mais violentos? Esse não parece um critério sólido. Tampouco é possível entender um conflito se nos restringirmos à questão “quem começou?”. Por exemplo, o Iraque iniciou a ocupação do Kuwait em 1990. Estava o Iraque errado em ocupar um enclave artificial utilizado pelo imperialismo como simples posto avançado de controle sobre a região e plataforma de extração de petróleo? A resposta não é simples. Ou ainda: a ditadura sanguinária de Rafael Videla iniciou a Guerra das Malvinas em 1982 para anexar um conjunto de ilhas que está a 600 quilômetros de sua costa patagônica e a quase 13 mil quilômetros da Grã-Bretanha. Estava errada a Argentina ao iniciar a guerra (ainda que se considere os objetivos políticos de Videla)? Também não há nada óbvio aqui.

O duplo caráter da guerra na Ucrânia

Como entender a guerra que ocorre hoje no território ucraniano? A essência da posição que aqui defendemos consiste em afirmar que essa guerra possui um duplo caráter.

Sem dúvida, é uma guerra colonial ou neocolonial por parte de uma nação historicamente opressora (Rússia) contra uma nação historicamente oprimida (Ucrânia). Isso, inclusive, não constitui qualquer segredo. Putin tem sido não apenas explícito, mas até repetitivo em sua análise de que a Ucrânia não é um estado historicamente legítimo, mas sim uma “invenção de Lênin e dos bolcheviques” (vide seu famoso discurso de declaração de guerra de 24 de fevereiro de 2022 e sua recente entrevista ao jornalista norte-americano de ultra-direita Tucker Carlson). Putin se baseia no fato real do parentesco entre russos e ucranianos para afirmar que os segundos não possuem direito histórico a um Estado pelo simples motivo de que sempre estiveram sob a tutela de alguma potência estrangeira (ora a Orda de Ouro do Império Mongol, ora o Reino da Polônia [Comunidade Polaco-Lituana], ora o Império Russo [posteriormente União Soviética]). Putin mistura deliberadamente duas questões distintas: a identidade entre povos e o seu direito à autodeterminação, inclusive à separação e independência. Para Putin, os ucranianos seriam um quase-povo, uma variante ou um subgrupo dos russos. É verdade que o surgimento do povo ucraniano é um processo relativamente recente, podendo ser relacionado com o intervalo entre os séculos 14 e 17, mas o mesmo vale para os russos atuais (grão-russos). Eles também surgiram entre os séculos 14 e 17 a partir dos mesmos processos linguísticos, culturais, econômicos, sociais e políticos que deram origem a ucranianos (pequenos russos) e bielorussos (russos brancos). Na cabeça de Putin, desses três povos surgidos da diáspora dos antigos eslavos orientais, somente russos e bielorussos têm direito a um Estado. Ucranianos não.

>> Leia também: Tucker Carlson entrevista Putin para agitar o cenário político americano

Tampouco tem legitimidade o argumento putinista da luta contra o neonazismo na Ucrânia. É verdade que nos últimos anos, sobretudo após a “euro-maidan” de 2014, o neonazismo floresceu na Ucrânia. Mas também na Rússia o ultranacionalismo corre solto, inclusive com o renascimento dos pogroms contra certas populações e a opressão nacional aberta.

Assim, fica evidente o caráter neocolonial e chauvinista da atual guerra por parte da Rússia, que visa subordinar novamente a nação ucraniana ao mando do seu “irmão maior” (assim os nacionalistas russos se autodenominam em relação a todos os outros povos eslavos) e acabar com a curta experiência estatal ucraniana (o que aparece no discurso putinista como “completa desmilitarização”).

Tudo seria simples se esse fosse o único aspecto da guerra. Mas não é.

A atual guerra possui também o caráter de um conflito geopolítico que opõe o bloco Rússia-China ao bloco Estados Unidos-Europa e que se expressa no avanço da OTAN sobre o leste europeu nos últimos anos. Putin inventou muitas coisas antes e durante a presente guerra, mas a ameaça representada pela OTAN não é uma delas. É um fato real e inegável. Desde que foi criada, em 1949, a Organização do Tratado do Atlântico Norte já passou por nove ondas expansivas, com a incorporação de 15 novos países desde 1999, depois da promessa dada a Gorbatchov de que a aliança não avançaria “nem uma polegada” em direção ao leste.

Como se sabe, a OTAN foi criada como uma resposta militar do imperialismo norte-americano à expansão do bloco socialista depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Ela é, portanto, uma das organizações mais reacionárias já surgidas na face da Terra e uma ameaça real não somente à Rússia, mas também aos países do norte da África, Oriente Médio e mesmo Ásia. Alguém já viu o perfil da OTAN no twitter? Exercícios e mais exercícios, cúpulas e mais cúpulas, tanques e mais tanques, aviões e mais aviões, bilhões e mais bilhões de dólares e euros arrancados da seguridade social e desenvolvimento econômico e direcionados para a defesa dos países. Contra quem a OTAN se arma e se prepara? Não é segredo e ela mesma diz: principalmente contra China, Rússia e Irã.

E não nos referimos aqui à possibilidade teórica de um “futuro” conflito, mas sim ao fato de que a OTAN já participa da guerra na Ucrânia. Desde 24 de janeiro de 2022 (ainda antes da guerra) até 31 de julho de 2023, a Ucrânia já recebeu US$ 233 bilhões em ajuda financeira, humanitária e militar, distribuídos da seguinte maneira: US$ 90 bilhões das instituições da União Europeia, US$ 73 bilhões dos Estados Unidos, US$ 22 bilhões da Alemanha, US$ 15 bilhões do Reino Unido, US$ 8 bilhões da Noruega, US$ 7 bilhões do Japão, US$ 6 bilhões do Canadá, US$ 5 bilhões da Polônia, US$ 4 bilhões da Holanda e US$ 4 bilhões da Dinamarca – valores arredondados (Fonte: Trebesch et al. (2023), “The Ukraine Support Tracker”). Pode-se pensar que se trata fundamentalmente de ajuda humanitária, mas isso não é verdade. A ajuda financeira e militar é a maior parte do dinheiro. A ajuda humanitária é praticamente desprezível, ainda que se considere que parte da ajuda financeira seja depois gasta em fins humanitários dentro do país.

O fato inegável é que a Ucrânia é hoje um campo de batalha entre a Rússia e a OTAN não apenas no sentido literal, mas também figurado. O imperialismo não se envergonha de publicar em suas revistas especializadas artigos projetando a “Ucrânia 2.0” (Ver o artigo em The Economist: “Building Ukraine 2.0”), ou seja, a Ucrânia pós-guerra, que será uma plataforma econômica, militar, política e diplomática contra a Rússia, uma espécie de vitrine da democracia para o deleite dos povos do Oriente Médio e Ásia, a exemplo do que foi, a seu tempo, a Alemanha Ocidental para todo o bloco socialista. O novo Plano Marshal já está preparado. Aliás, já está em curso.

O que o imperialismo tem a ganhar na Ucrânia? Muita coisa: incontáveis bilhões em propriedade não-privatizada e privatizável, um dos parques industriais com maior potencial do mundo, as terras mais férteis do planeta (o chamado “solo tchernoziom”), uma das maiores reservas de carvão mineral do mundo, a possibilidade de hegemonia sobre o Mar Negro, os gasodutos que levam gás russo para a Europa e uma plataforma de lançamento de mísseis colada em território russo. Com a atual dívida externa ucraniana fruto da guerra, não será difícil para o imperialismo reivindicar o todo ou parte dessas enormes riquezas. Não é a toa que os Estados Unidos pressionaram fortemente e já obtiveram o aumento dos orçamentos militares europeus para fins de sustentação imediata da OTAN.

de qualquer ponto de vista que se analise esse lado da guerra, surge como evidente seu caráter de “guerra por procuração” por parte da OTAN, que treina militares ucranianos, fornece armamentos, apoio político e diplomático, consultoria militar e principalmente dinheiro, muito dinheiro.

Ou seja, de qualquer ponto de vista que se analise esse lado da guerra, surge como evidente seu caráter de “guerra por procuração” (proxy war) por parte da OTAN, que treina militares ucranianos, fornece armamentos, apoio político e diplomático, consultoria militar e principalmente dinheiro, muito dinheiro. O investimento está sendo grande e será cobrado em breve.

É o cenário ideal para a OTAN: uma guerra fora de seu território direto, lutada com o exército de um país não-membro e sob o manto da defesa contra a agressão chauvinista russa. E os frutos já estão sendo colhidos, vide incorporação da Finlândia e pedido de ingresso já protocolado pela Suécia.

As saídas para a guerra e a posição dos socialistas

É preciso reconhecer o fato de que a presente guerra não possui saída militar progressista. Mantidas as atuais condições de tensão e financiamento, o conflito caminha para o que se costuma chamar de “guerra de atrito”, ou seja, um longo enfrentamento que exaure os seus participantes sem uma mudança qualitativa dos ganhos e posições conquistadas. A guerra se torna, cada vez mais, parte da paisagem. A outra hipótese – pelo menos no cenário atual – é a vitória russa, dada a fragil situação do exército ucraniano e as recentes vitórias táticas de Putin. Uma reviravolta no sentido da vitória ucraniana está praticamente descartada.

O que acontecerá se os russos ganharem? Depende do que conseguirem conquistar. Chegarão a Kiev? Ocuparão todo o leste do país? Estabelecerão um governo fiel a Moscou? Ou, ao contrário, se restringirão à atual ocupação das províncias de Lugansk, Donetsk, Zaporojia, Kherson e Crimeia, talvez com uma ou outra cidade importante a mais? De qualquer forma, Putin se fortalecerá e o regime russo se fechará ainda mais. Se fortalecerá também a ultra-direita europeia e mundial, em geral aliada de Moscou. A Ucrânia enfrentará uma derrota histórica, perdendo sua independência e parte significativa de seu território e potencial econômico. Não está descartado um desmembramento do Estado ucraniano e seu fim de fato, com pedaços importantes do oeste indo para as mão de Polônia e Hungria. A Ucrânia se tornaria uma sombra do que é hoje ou até deixaria de existir. A Rússia emergeria como uma opositora decisiva do imperialismo norte-americano e europeu, mas politicamente seria um antro da reação e do conservadorismo mundiais, um ultracristianismo bárbaro com traços fascistizantes, cumprindo mundialmente um papel semelhante ao que cumpriu ao longo século 19 – o de gendarme contrarrevolucionário e prisão dos povos.

E se a Ucrânia (OTAN) vencer? Resultado mais improvável e cenário mais indefinido. Mas também depende do tamanho da vitória. Retomarão as quatro regiões ocupadas? Chegarão à Criméia? Se instalará uma crise no regime putinista em função da derrota? Putin cairá? Aqui o resultado é mais caótico porque quanto mais o tempo passa e mais a Rússia avança, mais essa guerra se torna “existencial” para ela. Ou seja, menos margem para o recuo. Duas ideias são muito presentes no imaginário e na tradição militar russa: “Russos não se entregam” e “Nenhum passo atrás porque às nossas costas está Moscou”. Essas duas ideias foram muito usadas e funcionaram muito bem na Segunda Guerra Mundial.

E não devemos esquecer da bomba atômica. Como dizia o grande escritor e dramaturgo russo Anton Tchékhov, se uma espingarda aparece pendurada na parede ou sobre a mesa da sala no primeiro ato de uma peça, isso não pode ser à toa, ela precisa disparar no último ato. Alguns podem argumentar que as bombas nucleares foram feitas para jamais serem usadas. Estamos seguros disso? Já esquecemos Hiroshima e Nagasaki? De qualquer forma, se a Ucrânia (OTAN) vencer, a não ser que comece uma guerra nuclear (nesse caso, o resultado poderia variar desde a destruição de um país até o fim da vida humana sobre a Terra), fortalece-se o imperialismo norte-americano. O estabelecimento de uma nova ordem mundial será atrasado ou terá ainda mais mediações do que tem hoje. A China pensará melhor sobre Taiwan. Israel se sentirá ainda mais livre na Cisjordânia e a Faixa de Gaza será apenas uma lembrança na memória do povo palestino. Aumentará a dependência da Europa em relação aos Estados Unidos. A Ucrânia será uma colônia norte-americana e europeia amarrada por uma dívida impagável.

Enfim, nada de bom em nenhum dos dois cenários, uma guerra sem saída e sem final feliz.

Os socialistas devem levantar a bandeira da paz justa, democrática e sem anexações. Pelo cessar-fogo imediato rumo à paz e ao restabelecimento de relações fraternas entre os dois povos. Pela retirada da Rússia das regiões ocupadas junto com a retirada da OTAN de todo o leste europeu e fronteiras com a Rússia.

Por isso, soam como utópicas, infantis e mesmo perigosoas as posições do tipo “guerra até a vitória!” de um e de outro lado. Os socialistas devem levantar a bandeira da paz justa, democrática e sem anexações. Pelo cessar-fogo imediato rumo à paz e ao restabelecimento de relações fraternas entre os dois povos. Pela retirada da Rússia das regiões ocupadas junto com a retirada da OTAN de todo o leste europeu e fronteiras com a Rússia.

Mas mesmo essas palavras de ordem tão modestas se encontram hoje no terreno da pura propaganda para uma reduzida camada de ativistas. Na prática, somos testemunhas impotentes de um jogo que se desenrola sem a nossa participação e sobre o qual não temos qualquer ingerência, mas que recairá a qualquer momento como uma avalanche de rochas sobre as nossas vidas. Isso até que as coisas mudem e possamos agir. E elas sempre mudam.