Por Felipe Demier, Historiador e Professor da UERJ
No antigo calendário bizantino (juliano), que vigorava na antiga Rússia até a vitória dos soviets, a tomada do Palácio de Inverno ocorreu em 25 de outubro de 1917. Uma vez suprimido tal calendário pela Revolução, a qual, como lembrou Trotsky, teve antes que “abolir as instituições que se empenhavam em conservá-lo”, a contagem dos dias no país passou a ser feita a partir do calendário europeu (gregoriano), segundo o qual a tomada do Palácio de Inverno teria ocorrido a 7 de novembro de 1917. Nesta terça, portanto, a Revolução completa exatamente 100 anos. Banido e esconjurado muitas vezes, seu espectro insiste em rondar entre nós. Como dizem os cautelosos torcedores de futebol, só acaba quando termina. Ainda não terminou.
No pós-Segunda Guerra Mundial, alguns, dentro do campo marxista, cogitaram que as condições históricas determinantes dos eventos russos de 1917 já não serviriam de base para pensar o contexto europeu, no qual o proletariado, gozando de serviços sociais e adormentado pela “racionalidade tecnológica”, estaria incorporado à sociedade industrial burguesa e, portanto, incapaz de se lançar em uma luta disruptiva contra ela. Não só na Europa, como também em outras partes do mundo capitalista, novos sujeitos revolucionários eram buscados entre estudantes, intelectuais e camponeses.
Para os apologetas socialdemocratas do capitalismo welfareano, por sua vez, as reformas sociais, mesmo que tendo como uma de suas causas a própria existência da União Soviética, teriam dispensado e mesmo inviabilizado a ocorrência de uma revolução. Aberto às pressões das massas populares, capazes de se expressarem por meio do sufrágio universal, o Estado já não seria mais o tal comitê dos negócios comuns da burguesia e um aparelho repressivo de dominação de classe, tal qual Marx e Engels sugeriram, e como se apresentou na Rússia diante de Lênin e seus seguidores. Tomado como algo intrinsecamente neutro, desprovido de um conteúdo de classe, ele deveria ser progressivamente ocupado pela esquerda com vistas a direcioná-lo para políticas sociais favoráveis aos setores populares. O horizonte, portanto, não ia além de um capitalismo com direitos.
Com o fim da União Soviética, discursos “inovadores” gestados anteriormente foram desenvolvidos e amplificados. Não foram poucos os que, na esquerda, açodadamente seduziram-se com a retórica prestidigitadora que afirmava a existência de uma sociedade “pós-industrial”, “da informação”, na qual o trabalho teria perdido a sua centralidade e onde a própria classe trabalhadora teria deixado de existir. A “velha” questão social já não teria mais lugar no mundo hodierno. O fim da oposição capital x trabalho e o triunfo do mercado sobre a planificação econômica encontraram correspondência na historiografia por meio da proliferação de teorias que negavam a validade de toda e qualquer teoria, assim como de teses que apontavam o colapso epistemológico da razão, da ciência, das “grandes narrativas”, das análises “totalizantes/totalitárias”, em suma, da luta de classes como uma ferramenta interpretativa da realidade histórico-social. Nas pesquisas sobre o mundo contemporâneo, o capitalismo, obnubilado por “imaginários”, “discursos”, “práticas culturais” e “atores da sociedade civil”, já não era mais um problema, uma questão.
Enorme parte da esquerda, eufórica ou resignadamente, assumiu o papel de ala esquerda do partido da ordem burguesa, nutrindo expectativas de que as contrarreformas poderiam ser ao menos combinadas com a diminuição da pobreza extrema por meio da expansão de políticas sociais compensatórias e focalizadas. De maneiras diferentes, os arautos políticos do neoliberalismo contrarreformista, a esquerda transformista e os atraentes acadêmicos do “marxismo não dá conta” vocalizavam/vocalizam o mesmo desejo não recôndito do capital: uma nova revolução é impossível, e o capitalismo é um dado natural, eterno.
No entanto, passados cem anos dos dez dias que abalaram o mundo, se é verdade que os artífices intelectuais, os dirigentes políticos e as formas de organização popular responsáveis por Outubro de 1917 – assim como a nação por ele criada, a União Soviética – já não se fazem mais presentes, o mesmo não pode ser dito das determinações mais gerais do processo que conduziu à primeira revolução vitoriosa dos trabalhadores na história, as quais explicam a permanência, no século XXI, do espectro de Outubro.
Contrariando “constatações” e vaticínios mencionados aqui, o capitalismo, a despeito de todas as suas revoluções tecnológicas e informacionais, segue sua marcha de expropriações e, com isso, aumenta exponencialmente a quantidade de despossuídos cuja única mercadoria a ser vendida numa sociedade produtora de mercadorias é a sua própria força de trabalho. A promessa de novos “empreendedores” não é senão a ideologia de um processo que tem gerado mais e mais trabalhadores. Para desgosto de uma esquerda cool, dedicada a performances digitais e lutas comportamentais, o crescimento acelerado da classe trabalhadora à escala mundial e seu protagonismo nos embates sociais contemporâneos são fatos incontornáveis. Cada vez mais heterogêneo, feminino, negro, asiático e, sobretudo, precarizado, o proletariado se expande numericamente. Em quase todos os países, os trabalhadores, como classe social, são, hoje, em termos absolutos e proporcionais, muito maiores do que o eram na Rússia de 1917. Sua crescente densidade social oferece uma incrível força política potencial, anunciando um novo tempo de lutas.
A inexistência ou fracasso de alternativas ordeiras que pudessem oferecer alguma melhoria para a vida dos trabalhadores foi, como alguns estudiosos corretamente apontam, um elemento decisivo para se explicar o porquê daqueles homens e mulheres sem nada a perder terem aceito o convite bolchevique à insurreição. Como indicamos, para alguns teóricos do pós-Segunda Guerra, as reformas e direitos presentes na Europa do “bem-estar social” teriam dispensado a necessidade de revoluções anticapitalistas no continente. Ora, se, na periferia do capitalismo, as possibilidades de reformas sociais e ampliação de direitos sempre foram e continuam sendo bloqueadas pelas classes dominantes nativas atreladas ao imperialismo, a própria Europa welfareana, por sua vez, em função das contrarreformas e sucessivos planos de “austeridade”, já não existe mais. Em todas as partes do sistema, portanto, a era dos direitos sociais parece encerrada, mesmo que em algumas delas esta mal tenha existido de fato. O centro do sistema se periferiza, e a periferia se torna um verdadeiro inferno terrestre.
Sem a possibilidade de ampliar ou mesmo garantir direitos sob o capitalismo, as classes trabalhadoras ao redor do mundo parecem ter um cardápio político não muito diferente daquele que teve o operariado fabril russo em outubro de 1917. Lançando mão de uma analogia histórica mais livre, pode-se dizer que o capitalismo mundial, em seu afã contrarreformador, se russifica, na medida em que, tal como na velha Rússia de 1917, dá fortes indícios de não dispor mais de condições que possam oferecer alternativas ordeiras aos que vivem ou tentam viver do seu próprio trabalho. Se antes não se podia ainda gozar de direitos sociais, hoje não se pode mais. Diante dessa situação, o proletariado parece só poder se portar tal qual o Mefistófeles de Goethe, cuja tarefa é constantemente negar, pois tudo o que existe merece perecer. A revolução socialista coloca-se, cem anos depois, como uma necessidade.
Nesse cenário, o interesse de investigação sobre a centenária Revolução Russa mostra-se prenhe de sentido. Os temas da organização sindical e política, da consciência e cultura de classe, das formas de luta, da direção partidária, da tomada do poder, da vanguarda, da burocratização etc., todos presentes quando nos debruçamos sobre a calorosa Rússia de 1917, adquirem total importância nos tempos de hoje. Aqueles que se mantém revolucionários neste 7 de novembro de 2017 devem lançar seus olhos para o passado, manter suas mentes no presente e depositar suas esperanças no futuro. Há exatos cem anos, os famélicos da terra mostraram que era possível.
Foto: Comitê Militar Revolucionário
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